Quando o bebê dispensa o cobertor

Paulina Schmidtbauer Rocha

Há dois anos publicamos um livro denominado Autismos, uma coletânea de trabalhos escritos pela equipe de Terapia intensiva do CPPL, instituição que trabalha com crianças autista. No artigo "O terror do mundo novo ou a interpretação autista do velho mundo" sugeri uma mudança básica no posicionamento teórico sobre o autismo de dizer que os autistas tinham um mundo povoado e rico, porém diferente, e que era impróprio tratar estas crianças como "fortaleza vazia". Como esse mundo funciona e a partir de que se constitui era o desafio a ser enfrentado. Meu artigo foi só o início de uma longa jornada de trabalho. Cada mudança de posicionamento teórico em psicanálise, acredito, implica em mudanças na técnica e trazem para prática clínica novas questões.

Existem acasos que se impõem numa situação dada e permitem mudanças ou melhor ocasionam os inícios das mudanças. Assim aconteceu, também, na construção deste trabalho que me foi encomendado há meses para esse encontro sobre os bebês. Aproveito a oportunidade para agradecer aos organizadores pelo convite que me foi de grande utilidade, como espero fique visível para todos aqui presentes.

Comecemos pelos acasos. O primeiro deles aconteceu na ocasião da visita a Denis Ribas, psicanalista francês, há um ano e meio em Paris. Ele me recomendou a leitura de Dona Williams, livro autobiográfico de uma jovem autista australiana, publicado em 1992, dizendo que considerava muito interessante para quem trabalha com autistas a leitura dos textos escritos por eles ou suas mães. Fiquei intrigada pela recomendação, mais nada me protegeu do impacto da leitura. Confesso, para vocês, que ando com livro no bolso. Sempre que abro e leio, sua leitura consegue produzir em mim uma estranha sensação, composta de um sentimento de proximidade, como se já o tivesse lido, e ao mesmo tempo um atordoamento. Muito do que li sobre a vida de Dona, contado por ela com talento e habilidade, me parece estranhamente conhecido, como se já tivesse imaginado tudo isso na minha experiência, na clínica psicanalítica dos autismos. Parece que é essa proximidade que origina o atordoamento, mas também, as possibilidades do que já foi sabido porém não articulado.

Por mais que o livro de Dona seja apresentado com claras intenções de classificar autismo como um distúrbio da comunicação de origem neurológica, sem etiologia conhecida, e a sua autora como alguém que luta bravamente contra a sua deficiência, considero a sua leitura extremamente proveitosa para os psicanalistas.

Vejamos como o mundo de Dona é estranhamente povoado:

"As pessoas sempre diziam que eu não tinha amigos. Mas o meu universo era preenchido de amigos. E esses amigos eram maravilhosos, dignos de confiança, previsíveis e reais, diferente de todas as outras crianças. E sobretudo, sobretudo, eles vinham oferecendo as garantias de uma perfeita segurança. Era um mundo que eu tinha criado, onde não precisava me violentar para me controlar. Era um mundo onde os objetos, animais, a natureza podiam se contentar de existir em minha presença. Tinha dois outros amigos que não pertenciam ao mundo físico e os quais eu tinha aceito no meu: os fios mágicos, certamente , mais também, um par de olhos verdes que se escondia em baixo da minha cama e que batizei com nome de Willie.

Mas o que eu quero chamar atenção de vocês agora é sobre o título do livro de Dona "Se me tocarem, não existo mais". Este título provocou nesta velha leitora de Winnicott intrigantes associações: Puxa, um bebê dispensando seu cobertor! Para imediatamente ressoarem, nos ouvidos as palavras do Winnicott : "Um bebê, isso não existe, nunca ninguém me apresentou um bebê sem a presença da mãe ou de uma substituta, uma babá, um berço, um cobertor. Mas dos cobertores falaremos depois...

A conferência, e esse é o segundo acaso, feita pelo Luís Cláudio Figueiredo, em setembro, no Rio de Janeiro e que veio parar nas minhas mãos, via Internet, enviada pelo seu autor para apreciação visando as futuras discussões. Chama se "O caso - limite e as sabotagens do prazer". Neste artigo Luís Cláudio constrói sua teoria sobre casos-limites a partir de vários autores como Green, Meissner, Bergeret, Kernberg, Horner, Fairbairn e Federn e enfatiza os processos de constituição inicial do psiquismo onde parece situar-se a problemática dos casos-limites.

Me chamou atenção a formulação de Federn, ressaltada por Luís Cláudio. Para ele, no início da vida do bebê, as fronteiras são amplas e incluem seus objetos primordiais, incluem tudo que é significativo para o bebê. Me lembra essa formulação, a fita de Moebius da qual fala Lacan, e estou apenas emprestando a bela imagem da fita para incitar a imaginação de vocês acerca dessa unidade bebê-mãe, bebê-entorno, como chama Luís Cláudio, para que possam visualizar essa unidade de dois. Deixarei de lado, neste trabalho, a minha concepção da função paterna, que terei de verificar a luz do que estou formulando, mas isto, me concedam, fazer só depois.

Este estado de indiferenciação, sugerem os autores, bebê-entorno, das fronteiras dos limites do eu, cito: "...está na base dos sentimentos de tédio e futilidade, de irrealidade e desperdício que dominam a vida subjetiva de muitos pacientes borderline. Tédio que, parece, só pode ser quebrado pelas turbulências afetivas, ideativas e comportamentais que pontuam a existência destes indivíduos. Uma turbulência vã que acaba funcionando como uma pobre caricatura e patética substituição da vida quando a única tarefa é existir, existir penosamente".

Nos casos-limites, como uma proteção contra a "precariedade" emergem os fenômenos como-se, falso self, através da adesão submissa ao outro, de um mimetismo incontrolável e ou de um auto-esvaziamento afetivo e ideativo. De caráter defensivo estes fenômenos são usados para evitar a separação do objeto que deixaria o self não coeso, entregue à sua fragilidade radical.

Se me interesso tanto o artigo de Luís Cláudio é porque a historia narrada por Dona traz surpreendentes semelhanças de funcionamento, com os borderlines, como se a partir de uma certa idade começasse a funcionar como eles. O que Dona descreve como Willie e Carol, que por muito tempo dominam a sua cena psíquica e que representam as personalidades adotadas por ela para se comunicar com mundo e para se proteger do contato, parecem uma dramatização do texto de Luís Cláudio. Cito: "houve uma ampliação desmesurada das fronteiras do Eu e o paciente atua no território deste Eu expandido. Da mesma forma, nos movimentos para "dentro" é que se atualizam as surpreendentes possibilidades de auto-observação que tive a oportunidade de encontrar em pacientes borderline. Aparentemente, seriam introspecções, mas creio que, assim como as atuações não eram "para fora, as observações não são "para dentro", embora possam ser muito apuradas e refinadas. São as observações que o Eu contraído faz de uma cenário que neste momento, embora "seu", lhe parece externo e pode ser observado e descrito com uma lucidez extraordinária. Daí decorre, também, esta característica paradoxal: os borderline são tanto impulsivos quanto excelentes observadores de si mesmos. Muitas das idéias que pude elaborar sobre eles me vieram quase que prontas de relatos de auto-observações de alguns pacientes nesses momentos de redução acentuada das fronteiras do Eu...".

Descreve Dona:
......Willie era uma mistura de palavras raivosas e injuriosas da minha mãe e tinha por missão de sustentar o mundo longe de mim. Carol era uma boneca vazia de olhos mortos , mas que fazia todo que os outros queriam. ...

Foi a esperança que matou Dona, ela que onde quer que fosse tinha nada que pudesse preencher seus desejos e suas aspirações. As criações da sua imaginação, ao contrario, tinham ganho uma existência própria e tido sucesso onde ela tinha fracassado. Meu eu real, ainda, estava deixando se hipnotizar com as cores, quando Carol aprendia a dançar e Willie a brigar. Era o mesmo que dizer, que eu estava morta para o "mundo". Aliais tudo mundo estava morto quando Dona desapareceu, mas ninguém percebeu. Bem ao contrario, as pessoas que conviviam com Carol e Willie acreditavam que ela tinha enfim aparecido surgido para a vida."

Mas o que me mobilizou ainda mais na leitura deste artigo é a incapacidade do borderline, contrariamente ao autista, de estar só. Quase que diria que o borderline nunca desenvolve a capacidade de estar só tal qual definida pelo Winnicott. Só para lembrar: para Winnicott ser capaz de estar só é ser capaz de estar só na presença da mãe, (que é um paradoxo ), o que significa poder relaxar, sem se sentir invadido na sua presença, mas também não prescindir desta presença, que implica que a mãe, por sua vez possa estar só junto do bebê sem exigir nada. Mais uma vez Dona é expert no assunto:

Neste quarto cego onde tu te escondeste
Em companhia das sombras,
Sabes que ELES não te esquecem e que virão te buscar.
Não perguntes porque tens o coração partido,
Engole tuas lagrimas e te levante.

Tu olhas o outro mundo passar
Atras da vidraça do teu mundo,
E te achas segura
Tu que ninguém pode tocar.
Mas toma cuidado, sopra um vento gelado
Nas profundezas da tua alma,
E já será muito tarde
Quando acharas estar fora do alcance.

Então, segui este conselho, palavra de intendido.
Não reflita duas vezes, mas abra teus ouvidos:
Corre e te esconde nus recantos da tua alma,
Reencontra a solidão,
Tu que em nenhum lugar es alguém.

Se o autista dispensa o cobertor para estar só e cria os mecanismos de proteção contra a invasão, o borderline não pode dispensar a presença por estar num estado permanente de não diferenciação. Cada um autista e borderline do seu modo revelam uma incapacidade de ascender à capacidade de estar só de Winnicott e consequentemente do caminho para subjetivação.

Neste momento me vi num impasse teórico porque se os autistas tem os problemas com os limites não são da mesma ordem que os borderline. E foi aqui que encontrei um amigo, Thomas Ogden e seu artigo "Isolamento pessoal: o colapso da subjetividade e da intersubjetividade" que nos mostra como autista constitui sua subjetividade em outras praias.

Mas antes de apresentar as contribuições de Ogden gostaria de ler para vocês uma passagem do livro de Dona que nos introduz no mundo muito particular e sensorial de inicio de vida:

Me lembro do meu primeiro sonho, no mínimo do primeiro que minha memória registrou. Estava vagando no branco, tudo branco e me encontrava rodeada das pequenas manchas coloridas. Estava rindo muito isso me fazia rir. Assim que acordava tentava dar continuidade ao mundo do sonho, olhava a luz de frente que entrava pela janela e batia na minha cama, esfregava com força os olhos, esfregava e lá vinham elas as pequenas manchas coloridas e eu ficava rindo. Para! Lá vinha o intruso. Mas eu o ignorava voltava para minhas manchas, ria e esfregava .... Uma tapa descia. Começava a fazer a aprendizagem do "mundo". Aprendi rapidamente, se os intrusos passam na frente posso me concentrar no desejo de ver as manchinhas e de novo tudo o resto desaparecia.

Voltemos um pouco as afirmações de Winnicott que postula : um bebê isso não existe a que não seja sempre acompanhado pela mãe ou seus substitutos, ou mesmo pela atmosfera geral do ambiente imediato e a associação que fiz a partir do titulo do livro de Dona : o bebê está dispensando o cobertor. Em outras palavras: nossa questão seria se o bebê está em um com a mãe-entorno ou o bebê está separado? E a experiência em um, dilui a experiência de estar separado? Para Ogden esta questão não se coloca, pelo contrário, supõe que estar só, ou com a mãe coexistam dialeticamente, da mesma forma como admitimos a existência do consciente e do inconsciente.

Se continuarmos com interessantes propostas do Ogden devemos admitir a possibilidade "que a vida psicológica não desabrocha exclusivamente dentro do contexto da mãe como entorno." Em suas palavras cito "desde os primórdios da vida psicológica ( e ao longo da toda vida) existe uma forma de experiência na qual a mãe, na condição de matriz psicológica é substituído por uma matriz sensorial autônoma." E continua, "ao substituir a mãe-entorno por uma matriz de sensação autônoma, o bebe cria uma pausa essencial na tensão ( e no terror intermitente) inerente ao processo de vir a luz no âmbito de seres humanos vivos".

Utilizo a metáfora do cobertor para falar das primeiras relações mãe bebe, dessa unidade para poder enfocar as relações que provem do senso tátil, olfativo, auditivo do mundo das sensações, esse absolutamente individual, mundo interno, que no entanto é o primeiro veículo com o mundo externo. Lembram da fita do Moebios. As relações "iniciais" mãe-bebê é um território da comunicação, das trocas, afinal território precursor da comunicação a distância. Mas para que a distância seja possível é preciso que a presença entre em descontinuidade, parece que só a ausência pode afirmar a continuidade e a experiência do ser.

Pensar no cobertor, também, como aquilo que envolve o bebe o sustenta e maneja. Vejo-o tendo várias funções como aconchego, limite, e apresentação do objeto, que, me parece, se for a contento dos envolvidos, permitiria que o sujeito psíquico aceite e usufrua da sua condição de solidão que é a condição humana.

Concordo com Ogden de que deixar o bebe rejeitar o cobertor, deixá-lo nessa forma de isolamento e resgata-lo de modo compassado e periódico, é uma parte essencial da qualidade rítmica precoce do desenvolvimento humano. No processo de um bebê se isolar a mãe deve permitir que ele a substitua, exclua (oblitere sua existência tanto como objeto quanto como entorno).

Com muita freqüência, uma das facetas mais difíceis de ser mãe escreve Ogden "....é a dor acarretada pelo sofrimento de não poder ser mãe. A mãe precisa tolerar a experiência de não existir para seu bebê sem ser tomada pelo sentimento de depressão, medo ou raiva. Ao invés disso, deve ser capaz de esperar enquanto seu ser mãe - como - entorno está suspenso. Como diz Ogden deve consentir que o seu filho tenha seu santuário."

Mas como vimos não foi assim que a mãe de Dona pode agir.

Agora podería tentar responder a pergunta com a qual iniciei esta comunicação como é povoado o mundo do autista? Estou sugerindo que o autista constrói sua subjetividade nos descompassos da qualidade rítmica precoce do desenvolvimento humano.

Como vimos, a possibilidade de volta do santuário depende da presença sem exigência da mãe, ou seu substituto, depende da qualidade da atmosfera imediata na qual poderia aterrissar sem se chocar. O grau de tensão provocado pela presença deve ser proporcional, penso, a capacidade da mãe de sustentar a sua própria vida pulsional. O que estou sugerindo é que no caso do autismo, o bebê e a mãe pouco se encontram para constituir um lugar ou um limite, sem mencionar a apresentação do objeto, ou do mundo, que seria uma das tarefas da função materna.

O que o bebe pode sentir ou perceber, captar do mundo externo parece ser num primeiro momento tão inexistente, tão existente que lhe da a possibilidade de reconhecer o que é de fora como seu. Depois e só depois poderia reencontrá-lo fora. Podemos imaginar um bebe com seu cobertor, algo que o envolve, como algo que também assinala os limites do corpo ou melhor torna os contornos do corpo aceitáveis, ou melhor sensíveis, ou melhor agradáveis. Funcionando como um cobertor, é o corpo da mãe que permite a constituição dessas sensações. Se o Bebê e o cobertor, para ele, são a mesma coisa, vamos ter que pensar que o que mais importa é aquele adjetivo agradável. Não sendo assim, a superfície corporal do bebe sofrerá e podíamos dizer criara uma algerisá ao toque, contato com o mundo e ele, o bebe, não vai "querer" voltar do seu santuário.

A partir daí podemos pensar que para sobreviver será preciso fazer uma serie de manobras extremamente complicadas e as descobertas do mundo vão se processar com os cuidados do bebê atento para evitar a proximidade. Com certeza criara como Dona muitos amigos, produções mentais, a partir das sensações provocadas por ela mesma, que ela pode controlar, que não criam as tensões próprias ao mundo intersubjetivo, imprevisível. A descrição de Dona, do seu adormecer, no qual ela fabrica seu cobertor, que a envolve dando as sensações apaziguadoras, o cobertor que a protege quando pressupõe que a proximidade é invasora. Invasão assinalada pelas quantias de excitação não sustentáveis, presentes.

Tinha medo de dormir, sempre tive medo. Dormia de olhos abertos durante longos anos.......Minha primeira lembrança de fios mágicos data de época que foi dormir numa cama. Eu deveria ter estado na nosso nova casa, apesar que ela se confundia no meu espirito com a velha. Nesta casa , não conseguia encontrar os cômodos nos lugares esperados e isso me perturbava muito. Gostava de conhecer o lugar de cada coisa , como também o lugar dos meus pais. Tinha necessidade de saber onde cada um estava, como também de esperar que tudo mundo adormecesse. Esticada na minha cama, dura e silenciosa, espreitando os barulhos atenuados da casa, ao mesmo tempo que meu olhar se refugiava nos fios mágicos transparentes que voavam em cima de min.

Esses fios mágicos eram minúsculas criaturas........Os fios eram quase transparentes mas bastava elevar o olhar para além deles que eles se tornavam extremamente presentes.

Minha cama ..... totalmente coberta pelas pontinhos minúsculos, que eu chamava de estrelas, como uma espécie de caixão de vidro a uso ritual e místico...... onde eu me sentia segura...".

No fim para reafirmar o que vem sendo dito: existe no inicio de vida ao mesmo tempo que se configura a unidade mãe - bebê no sentido definido pelo Winnicott um modo de funcionamento mental do bebe que dispensa a mãe como entorno, e onde o bebe se refugia como diz Thomas Ogden no seu santuário, nas suas sensações autogeradas. Essa descontinuidade na relação mãe bebe faz parte daquilo que um bebe humano precisa para ascender ao mundo das relações intersubjetivas e a sua subjetividade. Esse seria o primeiro momento onde o bebe dispensa o cobertor, para continuar com a minha metáfora, sem a necessidade nem da presença perceptiva da mãe nem da representação psíquica dela. Essa idéia de Ogden me é interessante e útil na medida que permite povoar o mundo do autista, e para alem desse interesse muito focado, contribui para fortalecer as minhas idéias sobre descontinuidade como uma experiência fundamental em vários processos da constituição de subjetividade tal como a experiência da continuidade de existência, constituição da representação do objeto, espaço transicional, ou como prefiro chamar espaço potencial, e linguagem.

Penso também que existem mais duas outras ocasiões que o bebe se da luxo de dispensar o cobertor: quando é capaz de estar só (paradoxalmente na presença da mãe) e depois quando poder dispensar a presença (percepção) da mãe e poder achar, que longe dos olhos não significa longe do coração.

Paulina Rocha
paulina@cppl.com.br