No entrelaçamento da crise da subjetividade contemporânea com a crise da psicanálise : o que a desmedida do amor passional e o funcionamento-limite têm a dizer ?

Mônica G. T. do Amaral

Resumo
A presente reflexão propõe-se a discorrer sobre o alcance do trabalho analítico, bem como sobre os desafios que se colocam para a Psicanálise, em uma sociedade que sofre do "declínio da experiência" ( Cf. W. Benjamin,1989) e da "desrealização do real" ( Cf. F. Herrmann,1998), exigindo, segundo Adorno (1992), a "demissão do sujeito". O tratamento de tão intrincada questão se fez sob os ângulos, epistemológico - a partir das noções de "estranho" e de "absurdo"- e ontológico, analisando as incidências dos destinos do sujeito na modernidade sobre os destinos do eu e da própria sexualidade. A abordagem da dimensão ontológica apoiou-se em uma reflexão oriunda da clínica dos chamados "casos -limite", a partir da qual se procurou obter novos esclarecimentos a respeito de questões candentes do debate filosófico e psicanalítico da contemporaneidade.

Muito se tem discutido a respeito da "crise de da psicanálise", cuja credibilidade se vê condicionada a uma noção de "eficácia terapêutica", definida, na maioria das vezes, segundo critérios que lhes são absolutamente extrínsecos e contraditórios quanto a seus fins, uma vez que se encontram mediados por uma racionalidade tecno-burocrática, em que a questão da verdade se vê submetida a uma mentalidade preditiva e manipuladora, fazendo ressurgir, desse modo, o mito da ciência positivista. Esta passa a ser vista como solução para uma sociedade, cujo projeto de modernidade se vê ameaçado por aquilo que lhe é imanente - ou seja, uma tendência da economia e da cultura que tende à globalização e exige a demissão do sujeito, no sentido moral e até mesmo ético, como condição de sua não exclusão da comunidade social . Ocorre que, como conseqüência dessa situação-limite, vêm se produzindo profundas mutilações na vida cotidiana, em que se ouvem gritos abafados de sujeitos impotentes e explosões motivadas por uma verdadeiro ódio primitivo, tanto no campo histórico-social ( com as inúmeras guerras étnicas e religiosas a que assistimos neste final de século), como na intimidade da vida psíquica individual. Diante de uma problemática como essa, bastante tematizada por filósofos e cientistas sociais, teria a psicanálise algo a dizer ? E não seria esta, inclusive, a condição de sua sobrevivência, ou seja, imiscuir-se em questões para além dos divãs analíticos?

No que se refere à crise de credibilidade da psicanálise, o debate no interior do próprio meio psicanalítico tem se remetido, na maioria das vezes, ou a um problema de natureza econômico-social, ou a uma possível inadequação do processo analítico à realidade do homem contemporâneo, o que vem suscitando calorosas discussões a respeito das tensões e convergências entre os campos da psicoterapia e da psicanálise. Embora o debate tenha apresentado nuanças bastante fecundas sobre o método psicanalítico - que extrapolam a questão do "setting", remetendo esta e outras questões, como a regularidade das sessões, o tempo de análise, ou até mesmo o "timing" da interpretação, às exigências da clínica - corre-se o risco - a meu ver, inadvertidamente - de reduzir os problemas enfrentados pela psicanálise a uma questão de aprimoramento, ou pior, de "adaptação" da técnica ao "mal-estar" que se lhe tem sido imposto na atualidade.

A "crise de realidade/identidade" da psicanálise remete-se a uma questão muito mais de natureza ontológica, que incide sobre uma problemática da modernidade: ou seja, o entrelaçamento dos desejos latentes de morte e de destruição subjacentes à racionalidade do bem-estar social e uma existência que exige a demissão do sujeito. Uma crise que envolve, pois, discussões aprofundadas de natureza epistemológica, mas que reenvia a questão dos fundamentos do método psicanalítico ao processo real de constituição do sujeito psíquico; ao mesmo tempo, não se pode negligenciar a idéia de que esse processo se encontra mediado por uma problemática da cultura - a própria crise da subjetividade moderna.

Considerando, portanto, que as discussões acerca da identidade da psicanálise se remetem, em última instância, às possibilidades de subjetivação do homem contemporâneo, não se pode negligenciar a idéia de que se convertem em reflexões críticas sobre a sociedade e a cultura. A questão é de como proceder para que tais reflexões se façam a partir de uma problemática oriunda da clínica e que possam, ao mesmo tempo, iluminar questões tão candentes do debate filosófico contemporâneo.

Adorno, desde a "Dialética do Esclarecimento" (Zahar,1985), publicada originalmente em 1947, salienta que, sob o jugo do Capitalismo Tardio, produz-se uma falsa reconciliação entre o particular e o universal, entre os interesses do indivíduo e os da sociedade, em que os princípios da Razão Esclarecida que findam por negá-la ( ou seja, a irracionalidade nela presente), só se explicitam na psicologia do "sujeito cativo". Este, aprisionado pelos mecanismos psíquicos de sua doença, pode ser revelador da situação de desespero da sociedade. Daí o interesse do autor pela psicanálise, que nela identifica potencialmente uma espécie de " Aufklärung", de esclarecimento.

O autor refere-se a uma identificação imediata dos indivíduos com o mundo admnistrado, atingindo até mesmo os recônditos da alma humana. Idéia que é apresentada em "Minima Moralia" (Adorno,1992) em sua forma mais radical: decreta-se definitivamente a sentença de morte do sujeito, afirma o autor. Paradoxalmente é a absolutização do indivíduo que engendra as condições de seu desaparecimento.

Observe-se que preocupações semelhantes às de Adorno, no que se refere à regressão da subjetividade moderna, surgiram na literatura psicanalítica, particularmente no período entre-guerras, com a emergência e posterior delineamento dos chamados "casos-limite" ou "casos-fronteiriços" como focos clínicos. Não se pode esquecer que tanto Adorno, em sua ênfase na regressão da Razão ocidental, como os clínicos, cujos estudos se voltavam para o tipo de psicopatologia derivada desse mesmo processo regressivo, apontavam os escritos de Freud sobre o narcisismo como sendo essenciais para a compreensão das modernas configurações da subjetividade.

É verdade que Freud antecipou muitas dessas questões desde o seu artigo "Introdução ao Narcisismo", publicado em 1914, ao fornecer uma série de pistas a respeito das relações entre as frustrações na esfera da constituição dos ideais e o caráter paranóico, não apenas do ponto de vista da psicologia do indivíduo como da psicologia coletiva. Muitas das teses levantadas nesse artigo sobre os mecanismos de idealização, sublimação e de identificação foram posteriormente repensadas pelo autor a propósito "dos motivos pelos quais", como bem salientou Adorno (Cultrix,1973), "as massas se convertem em massas", salientando a economia libidinal subjacente a esse processo regressivo. Uma análise empreendida por Freud em "Psicologia de Massas e Análise do Ego", publicada em 1921, onde, embora tenha se restringido a analisar os momentos arcaicos das massas como simples manifestações primárias das mesmas, tinha como pano de fundo o esgarçamento do tecido social provocado por uma série de acontecimentos históricos, como , aliás, salientou muito bem Mezan (1985) : o fim da 1a GM, o início da revolução soviética e a ascenção dos movimentos de natureza fascista.

Uma questão que chama a atenção, como curiosamente assinalara Otto Rank (1915), é o surgimento reiterado da temática do "duplo", no campo literário-ficcional, em períodos de maior comoção da sociedade. Aliás, ele mesmo publica uma obra sobre o tema pouco tempo depois de estourar a 1a GM, perguntando-se se não são em períodos como esses que os homens se põem questões fundamentais acerca de sua identidade e até mesmo de sua fragmentação. O interessante é que Freud, em 1919, além de abordar sob diferentes ângulos a temática do narcisismo na mesma época ( Freud,1911; Freud,1914; Freud,1921) - à luz da qual O. Rank, por sua vez, trata o tema do "duplo"- retoma as reflexões deste último para explorar a questão do "estranho", que reintroduz a temática narcísica sob o viés da pulsão de morte, ao mesmo tempo que parece apontar para as fissuras do eu, como aquilo que retorna de fora ( o duplo, o místico) e acende a chama das angústias infantis mais primitivas relacionadas com o medo, o silêncio e a solidão.

Percorrendo, pois, de um lado, os debates filosóficos sobre os destinos do sujeito na modernidade e, de outro, os ensinamentos da psicanálise, é possível relacionar a "crise de realidade/ identidade" da psicanálise com o momento em que a regressão da subjetividade, tal como anunciada por Adorno desde os anos 30, atinge o seu auge - no período entre-guerras. Falo de crise de realidade, tomando de empréstimo um termo utilizado por Herrmann para se referir à crise na crença do cotidiano e , por conseguinte, do próprio Homem Psicanalítico (1992; 1998), que o autor denuncia ser um dos grandes desafios suscitados pela contemporaneidade. Embora este seja um problema da atualidade, acredito que se possa identificar fortes indícios nesse sentido desde os anos 40.

Herrmann (1998) sustenta que a verdade da representação - objeto da crença do sujeito na conjunção entre o real e o desejo- consiste em uma relação de adequação entre o direito e o avesso da representação, entre as dimensões de identidade e de realidade. Uma noção, pois, de representação, que, embora pertencente ao campo da ideação, é retomada pelo autor a partir do tecido da própria experiência. E é entre esse avesso e esse direito, como aliás salientara Merleau-Ponty (1971) a propósito do corpo objetivo e o corpo fenomenal, ou seja, na fenda que se abre entre essas duas dimensões, é que há visibilidade. Aproveitando-se dessa estranha aderência do campo representacional, que parece "pinçar" o desejo ao real que o constitui, Herrmann provoca-lhe uma ferida, uma ruptura, ao introduzir a noção de absurdo como forma de denunciar a mútua perversão a que ambos se encontram submetidos no mundo contemporâneo - o sujeito e o real.

No livro " A teoria dos campos na psicanálise" ( 1999), há um artigo interessante, de Cecília Orsini, salientando a centralidade da idéia de "absurdo" para a crítica da cultura promovida por Herrmann, por meio da qual o autor denuncia o modo como a desrealização da realidade ( representação consensual) tem desrealizado o real e, em última instância, a própria subjetividade ( fruto do seqüestro do real interiorizado), deslocando, desse modo, o alvo do trabalho analítico, dos destinos da libido para os destinos do eu. No artigo "Mal-Estar na Cultura e a Psicanálise no fim do século" (Escuta,1994), Herrmann precisa essa questão, demonstrando como a crise de realidade (uma das dimensões da representação do real) atinge necessariamente o cerne da identidade, criando as chamadas patologias do eu : o "novo paciente", afirma o autor, "é, antes de tudo, um ser em confusão"(Herrmann,1994, p.321).

Neste fim de século, portanto quase 50 anos depois dos escritos de Freud e Adorno, esse deslocamento do interesse da psicanálise tem sido abordado sob diversos ângulos. Herrmann sugere no artigo " Creme e castigo - sobre a migração dos valores morais da sexualidade à comida" ( 1998) que, se a moralidade repressiva na época vitoriana incidia sobre a sexualidade, hoje parece ter se deslocado para o reino da dieta alimentar. Na verdade, procede a uma crítica da cultura contemporânea, denunciando particularmente como o avanço tecnológico, que tem se autonomizado em relação às forças sociais, acabou fazendo com que o sujeito mantivesse uma relação de exterioridade, não apenas para com seu próprio corpo, mas com o próprio gozo. Cria-se um verdadeiro paradoxo : aumentam-se as possibilidades de gozo, ao mesmo tempo que se opõem obstáculos à sua realização efetiva.

Embora, é preciso observar, o quão cuidadoso Herrmann se apresenta em sua crítica a uma leitura historicista da psicanálise freudiana, salientando, por exemplo, a atualidade da idéia de um corpo psíquico prenhe de sexualidade. A diferença é que, com o estilhaçamento da história a que deu lugar o mundo contemporâneo, fragmentou-se a própria dimensão erótica do corpo psíquico, para utilizar a terminologia com que o autor se refere à teorização do velho mestre.

O que Herrmann (1994) denomina "perda da substancialidade" da comunidade sobre a qual se assenta a ação individual e, em última instância, o próprio sentimento de identidade, mantém pontos de contato com o que o filósofo Walter Benjamin, particularmente em seu artigo "Experiência e Pobreza"(Taurus,1989), ou ainda, em "O Narrador"(em "Os pensadores",1980), remete à estranha dialética que se estabelece, no mundo contemporâneo, entre a redução da experiência coletiva (Erfarüng) e o empobrecimento da arte de narrar e, consequentemente, da própria dimensão privada da experiência ( Erlebnis).

Não se pode deixar, ainda, de estabelecer relações entre a formação dos estereótipos e do preconceito, o fundamento da intolerância para com o diferente, e o depauperamento da experiência coletiva, mencionada por W. Benjamin . O fascismo acabou acentuando o que passará a ser típico da emergente sociedade de massas : a destruição da esfera pública e a conseqüente tendência dos indivíduos a se retraírem para o refúgio da experiência privada . Um processo que em nada tem contribuído para o aprofundamento da experiência subjetiva, pois , segundo as palavras de Adorno : " A profundidade interna do sujeito não consiste em nada senão a delicadeza e a riqueza do mundo da percepção externa. Quando o entrelaçamento é rompido, o ego se petrifica " ( Adorno e Horkheimer, 1985, p.176).

A "pseudo-formação socializada" promovida pela atual arte de massas, cuja marca é a onipresença do espírito alienado, este calcado no esvaziamento do sentido histórico da experiência, pode ocasionar, conforme estudos mais recentes da psicanálise, sérios comprometimentos no processo de simbolização que, por sua vez, é condição para o viver criativo e para a própria produção cultural.

Entre a regressão do Espírito anunciada por Adorno (Ática,1992) e a crise de irrealidade salientada por Herrmann (1994), foi-se delineando uma existência que exigia, cada vez mais, a demissão do sujeito, na medida em que se anunciava a subsunção progressiva dos indivíduos ao existente, tornando-os incapazes de se singularizarem; ao mesmo tempo, seus efeitos pertubadores sobre a constituição do sujeito psíquico ( ou no dizer de Herrmann, do Homem Psicanalítico) foram assinalados por mais de um autor.

A questão é de como esse processo de regressão do sujeito promovida pela redução da experiência e pela desrealização do real foi incidindo na clínica psicanalítica. O que hoje identificamos como casos difíceis, aliás cuja prevalência é admitida por muitos analistas, começou com o delineamento dos chamados "casos-limite" ou "casos - fronteiriços" pela clínica psicanalítica - e isso, desde a década de 40 - cujas configurações se viam marcadas por fortes desestruturações egóicas, pela dependência absoluta do outro e pela quase impossibilidade de individuação ( em oposição a toda forma de auto-reflexão e de auto-consciência crítica); a meu ver, como um efeito especular das tendências sócio-culturais à fragmentação e das angústias narcísicas que têm acometido o homem contemporâneo.

Considerando, pois, que os casos-limite referem-se a sujeitos marcados pela dependência absoluta do outro, o que , como veremos, determina, inclusive, o tipo de ligação amorosa, a transferência com o analista e o tipo de angústia que acomete esse tipo de paciente - tratando-se, pois, de indivíduos praticamente impossibilitados de se individuarem e que se apresentam, muitas vezes, como sujeitos incapazes de sustentar uma análise - é que me fez pensar que a investigação em torno do tratamento teórico-clínico de tais configurações psicológicas pudesse vir a elucidar as próprias dificuldades por que passa a psicanálise na atualidade.

Quer dizer, numa sociedade em que o avanço tecnológico entra, muitas vezes, em descompasso com a própria possibilidade de absorção/metabolização por parte das forças sociais, a questão que se coloca é se o esgarçamento do tecido social e o empobrecimento decorrente da experiência coletiva, não estariam deixando de oferecer as bases para o processo de individuação . E, ainda, se os sujeitos que podem ser caracterizados como casos-limite, em sendo vítimas desse descompasso, não seriam mais prejudicados ainda ao se verem exigidos de acordo com os padrões de eficiência da sociedade tecnológica altamente desenvolvida e, como não poderia deixar de ser aos olhos de um analista, bastante perversa. Outra questão que levanto é em que medida a incidência desses padrões de eficiência nas expectativas desses pacientes ou de suas famílias quanto aos próprios resultados da análise estariam contribuindo para os novos impasses que se tem colocado quanto ao alcance do trabalho psicanalítico.

Essas são algumas das questões que pretendo abordar nesse artigo, cujo tratamento envolve uma reflexão de natureza epistêmica - ou seja, de como tratar a questão da desrealização do real a partir das noções do "estranho" ou do "absurdo"- e outra, de natureza mais propriamente ontológica - ou seja, analisar as incidências dos destinos do sujeito na modernidade sobre os destinos do eu e da própria sexualidade.

Começo minha exposição pela segunda questão, já que foi o tema suscitado pela pesquisa que venho realizando junto ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, coordenado pelo Prof. Dr. Manoel Berlinck, sob o título "Adolescentes sem limites ou "funcionamentos-limite" diante de uma existência que exige a demissão do sujeito?".

Os casos-limite e o amor passional - uma questão para a clínica contemporânea?

Os casos-limite, conforme salienta Masud Khan (1984), foram sucessivamente objeto de investigação nos trabalhos de Fairbain (1940), depois de Deutsch (1942), Winnicott (1945;1955), Erikson (1946), Anna Freud (1952), dentre outros, estendendo-se até os estudos empreendidos pelo próprio autor durante a década de 60. Todos apontavam o mesmo : o paciente médio dos consultórios de psicanálise havia mudado. Portanto, a análise devia sofrer uma mudança de ênfase. O interesse nos desejos inconscientes do paciente ( sexual-eróticos) deveria ser deslocado para as suas necessidades, ou seja, para os aspectos auto-conservativos do eu ( a meu ver, sexual-narcísicos).

Preocupações semelhantes têm movido psicanalistas europeus e, mais recentemente também alguns brasileiros, no que se refere à psicopatologia do eu, em que o narcisismo se põe à frente da cena psíquica, como bem salienta Jacques André, no artigo "L'unique objet", não por amor de si, mas pela dor de si. Ou como salienta André Green, em seu artigo "Genèse et situation des états limites", são pacientes cujas dinâmicas psíquicas se vêem pautadas por mecanismos de clivagem que atentam contra a unidade do eu fazendo com que o mesmo, para não sucumbir, apresente fissuras, verdadeiros buracos na representação de si ( o eu-rendado).

Esses artigos fazem parte de uma coletânea, "Les états limites" (1999), organizada a partir de um seminário promovido por Jacques André sobre o tema, em Sainte-Anne, de pós-graduação em Paris VII, onde se discutiu uma questão que me parece essencial a esse respeito : se os estados-limite representam um novo paradigma para a psicanálise, dos pontos de vista do método, da técnica e da teoria. Um tema dos anos 40, que se insurge novamente neste final de século, passando a ocupar o centro das preocupações de diversas correntes psicanalíticas.

Nos casos-limite, parece haver, pois, uma espécie de insuficiência, de falha na constituição do ego-narcísico ou mesmo das instâncias ideais. Uma falha nos mecanismos da repressão primária, que muitos autores atribuem a uma espécie de insuficiência nos cuidados maternos na primeira infância, responsável pelas carências do objeto primário.

Eu me pergunto se essas fissuras no eu, ou mesmo as dificuldades de associar do paciente boderline não se devem a falhas, ou à insuficiência do duplo processo originário "tradutivo-repressivo"( fundante do Eu), que impediriam a metaforização do amor sexual materno, fundamental para a constituição do eu narcísico ( a mãe, ou o olhar materno sobre o bebê concebido como espelho constituinte dos primórdios do eu). Essa má constituição egóica resultaria de uma sombra falhada do objeto sobre o eu. Restaria apenas a dimensão metonímica da percepção- consciência : o eu, como pedaço do corpo materno, o qual também se veria prejudicado em seus contornos - o eu-pele de Anzieu (1985;1991), ou o ego-corpóreo, de Freud (1923) -, devido a falhas no investimento narcísico ( a nova ação psíquica mencionada por Freud, necessária à reunião das pulsões auto-eróticas em torno do eu). Daí a característica porosidade do eu, tão presente nos casos -limite.

São pacientes que apresentam um tipo de angústia sem igual na história clínica e social que, em um trabalho recente (Amaral,1999), associei à tela " O Grito", do pintor expressionista Munch, cujo valor consiste, a meu ver, em conferir uma forma contemplável à tensão entre o desejo e o medo de viver, ou melhor, ao pavor do sujeito de ter que se haver com a ameaça de anulação de si experimentada pelo homem contemporâneo. Ou seja, uma angústia marcada pela onipresença do horror do indivíduo de se ver destituído da condição de sujeito. Quero dizer com isso, que essa mudança na clínica não é algo à parte da sociedade, mas antes é um sintoma da regressão em curso no mundo contemporâneo.

É preciso discriminar, entretanto, o tipo de quadro clínico que emerge em razão do momento do desenvolvimento psico-sexual infantil em que ocorrem as falhas na provisão ambiental. Conforme Winnicott (1988;1983), há uma diferença entre a privação emocional propriamente dita e a que ocorre anteriormente à capacidade infantil de perceber a falha ambiental. No primeiro caso, a privação emocional é assim identificada pela criança porque esta chegou a ter acesso a uma experiência emocional positiva ( até os dois anos de idade), mas que por algum motivo lhe foi retirada. Desenvolve-se, nesse caso, o que se entende por tendência anti-social, cujo comportamento é pautado por roubos, mentiras, destrutividade, como tentativas de encontrar a provisão ambiental que fora perdida.

No que diz respeito às psicoses e casos -limite, as falhas do ambiente se deram anteriormente à capacidade da criança de apreendê-las como tais. Em conseqüência disso, o processo de constituição do mundo simbólico se vê prejudicado ( fragmentado), o que induz o sujeito a uma falsa existência. É preciso observar, entretanto, que nos casos em que o sujeito sofreu muito precocemente um verdadeiro sufocamento de sua existência, não se trata propriamente de uma falsa existência. Minha experiência com esses pacientes demonstra tratar-se da vivência do mundo de relações como uma situação-limite: o outro passa a ser visto como fonte de vida para o sujeito e, por isso mesmo, diante do mais leve movimento de afastamento, ou da não correspondência às suas necessidades por parte do objeto amado, o sujeito vê sua existência ameaçada de aniquilamento. É o que uma de minhas pacientes demonstra em uma carta endereçada ao namorado, mas que jamais lhe fora enviada, fazendo parte muito mais de uma tentativa de comunicar a mim, sua analista, a dimensão de seu sofrimento :

" M., quero lhe dizer por quê não posso mais continuar com esse namoro...Como você resolveu que vamos nos encontrar ao acaso, sem fixar nenhum encontro, meu sofrimento tornou-se insuportável. É como se eu dependesse de você para que a cortina pesada que me separa da vida, do prazer, pudesse se abrir...E enquanto você não vem, contorço-me de dor, tomada por um imenso desespero, aprisionada que me sinto entre estas quatro paredes do meu quarto...à espera de um telefonema seu...Não, eu não posso suportar mais esse tipo de relação que você me impõe..."

Demonstrando uma verdadeira impossibilidade de fazer o luto de um objeto, que ela mesma reconhece estar muito distante daquele que lhe daria segurança e conforto, busca na analista, não apenas o que não consegue obter do namorado, mas também alguma luz que a ilumine. A questão é que procura obter de M. o que sempre lhe fora recusado em casa, ou seja, as condições de efetiva participação em um projeto de vida compartilhado. Mas o que o jovem lhe oferece, a cada demanda de atenção de minha paciente, é um modo de relação cada vez mais restrito a prazeres pontuais e passageiros. Os pais, por sua vez, respondem à sugestão da analista para abrirem um espaço para a filha : " Mas nós também não temos projetos!"

Levantando-se das cinzas que restaram dos escombros do final de semana, depois de ter mobilizado intensamente a analista, as amigas e os pais, a paciente vem, de mansinho, se aconchega no divã e me diz: " Mônica, você gostaria que eu lhe desse um bolo de presente? Sei fazer um de maçã, que é uma delícia!" E a cortina, que já não parece tão pesada se abre...Lembranças de um natal de "Babette" ( referindo-se ao filme dinamarquês, " A festa de Babette", sob a direção de Gabriel Axel ) em casa de uma prima em Paris, as festas de final de ano cuidadosamente preparadas pela mãe, vêm-lhe, sucessivamente, à mente. E... curiosamente, recorda-se de um debate na faculdade sobre o filme "Kaspar Hauser", dizendo ter notado que o que mais a impressionou das histórias relatadas por ele, no final, foi que parecia sugerir que um guia cego estaria mais habilitado para conduzir os homens à verdade do que toda aquela gente letrada. Quer dizer, recém-saída das trevas - pois se desinteressara até mesmo por seus primeiros passos no campo filosófico, embora tenha alcançado bom êxito - identifica-se com a metáfora criada por Herzog do "ser criado nas trevas", por meio da qual o cineasta procura demonstrar a inutilidade e a decadência dos ideais iluministas que vinham se consolidando na Europa, particularmente desde a Revolução Francesa. E a paciente, sensível como é, tanto para os sentimentos do outro, como para a expressão plástica ou artística do drama humano, reconhece a mensagem de Herzog, que opõe à linguagem científica, a sensibilidade do jovem pela música e pela poesia; que, à lógica formal, opõe o pré-logicismo de Kaspar Hauser, tão peculiar ao pensar infantil. E como o personagem do filme, exatamente devido à sua grande sensibilidade, é tratada como ninguém, tanto em casa, como pelo namorado.

Na verdade o que eu tenho observado é que o cenário vivido e atuado por esses jovens, particularmente nos casos como os de minha paciente, representam nada mais do que a mímeses de um ambiente familiar sem contornos e de uma vida fantasmática prejudicada pela pouca delimitação de seus eus. Ou seja, um ambiente familiar que já é revelador da estrutura psicopatológica de seus filhos.

Considerando que a constituição do eu-real narcísico do sujeito e de sua capacidade de julgar a realidade depende da perda originária do objeto, no caso em que o objeto primordial é incapaz de oferecer uma satisfação real, algumas questões podem ser levantadas:

Nesses casos, será possível ocorrer a perda do objeto originário, o luto do mesmo e seu posterior reencontro ? Em caso contrário, encontrar-se-á a escolha objetal do sujeito submetida ao paradoxo de buscar no outro o irrealizável? E não consistiria nisso as principais dificuldades de realizar o luto do objeto amado?

Uma questão que eu gostaria de discorrer ainda refere-se às relações que se pode estabelecer entre as falhas na constituição egóica e os destinos do prazer, ou melhor, das formas de amar.

Freud (1911), em seu famoso estudo sobre a paranóia, O Caso Schreber, faz a seguinte afirmação : " Não se pode negar que as pertubações da libido possam incidir sobre os investimentos do ego, do mesmo modo que não se pode negar a possibilidade inversa, isto é, que modificações anormais do ego possam levar a pertubações secundárias ou induzidas nos processos libidinais" ( Freud,1992, p.318).

Pois foi levando em consideração tal afirmação é que pensei em algumas questões a propósito dos três destinos do prazer sugeridos pela psicanalista Piera Aulagnier (1979) - a alienação , o amor e a paixão.

A autora descreve os estados de alienação e paixão como sendo oriundos de relações assimétricas, reservando apenas ao amor as relações de simetria. Também associa aos dois primeiros, a estranha propriedade de satisfazer conjuntamente os objetivos de Eros e Tânatus, produzindo-se um precário intricamento pulsional, que impõe um silêncio ao conflito identificatório e, consequentemente, a toda possibilidade de sofrimento psíquico que dele possa advir.

Na verdade, é o que me faz pensar essa paciente: que, ao correr em direção ao objeto amado que a rejeita, deixando-a, muitas vezes, aturdida com suas mensagens dúbias, e, ela, por sua vez, ainda recusando qualquer alusão de minha parte de que o conforto que procura nele é apenas momentâneo, parece, desse modo, lutar desesperadamente para não ter de se haver com a falta de um lugar dentre as pessoas que lhe são significativas, isto é, de um espaço para se constituir como um ser desejante. Quer dizer, uma paixão que a impede de enfrentar questões candentes relativas às suas possibilidade de vir a ser sujeito de sua própria existência e que , em última instância, a aliena , a afasta da busca de um projeto para si.

Aulagnier ressalta que o estado de alienação seria uma patologia da idealização e, portanto, da identificação. Trata-se de um estado que tende à abolição do conflito entre o eu, seus desejos e os desejos dos outros investidos pelo eu ( seus ideais). A esse respeito, adverte a autora, alienar seu próprio pensamento à ideologia identificatória defendida por uma outra pessoa, de modo algum significa optar por uma via mais enriquecedora; implica, outrossim, anular ou desinvestir seus próprios ideais identificatórios . É fazer morrer todas as partes de sua própria atividade do pensar, por meio da qual o sujeito poderia distinguir o que não é pura repetição, memorização e retomada daquilo que já foi pensado por outra pessoa.

O estado de alienação pode ser desencadeado por duas situações diferentes: ou por uma situação objetiva alienante, ou, por razões subjetivas, em que o sujeito pode alienar suas idéias em prol de uma ideologia , seja de uma seita, seja de um grupo ou de um micro- grupo. E eu acrescentaria, ou por amor...

Mas, o que sustenta tal alienação?

É a necessidade, afirma a autora, de preservar intacta a idealização da imago dos pais, que é mantida em suspenso até que se encontre alguém que possa servir de suporte para tal imago e sobre a qual o sujeito possa projetá-la. É desse modo, muitas vezes, que se obtém certo nível de narcisização, à custa do outro ( que funciona como prótese), na medida em que a valorização de si se faz por intermédio do outro idealizado maciçamente.

Eu me pergunto se no caso dessa paciente, ou mesmo de outros que se poderia considerar como casos-limite, a análise não passa por essa narcisização, sem no entanto se restringir a ela, introduzindo sempre que possível outras possibilidades identificatórias, além de elementos que lhes permitam pensar a falta como uma vivência não necessariamente catastrófica, mas capaz de lhes propiciar um maior desenvolvimento e liberdade internas.

Analisemos a relação passional, da qual a alienação é apenas uma das variantes. A relação passional é uma relação em que o outro se converteu em fonte exclusiva de prazer, passando a funcionar no registro da necessidade (sexualidade aditiva, termo empregado por Joyce Mc Dougall, conforme salienta a autora e que seria equivalente à relação que liga o toxicômano com a droga e o jogador com o jogo). Nos três casos, afirma Piera Aulagnier, se há uma relação passional, então o prazer se torna exclusivo e se converte em necessidade.
É, pois, um grave erro considerar a paixão como um excesso de amor : a diferença é qualitativa e não quantitativa. A relação passional exclui a relação compartilhada e recíproca. O eu do apaixonado toma o eu do outro como uma necessidade que só será suprida pelo amado. Mas, para que o sujeito projete no outro todo o poder, é preciso que o outro idealizado se apresente como possuidor de todo o poder, como se não precisasse de nenhum investimento e, desse modo, sejam-lhe ocultados os mecanismos projetivos em jogo. O eu do apaixonado se imagina capaz de oferecer todo o prazer ao objeto, mas jamais ser fonte de sofrimento, daí a dependência passional e o sofrimento que esse tipo de relação supõe. O eu do apaixonado acaba satisfazendo conjuntamente a Eros (prazer sexual) e a Thânatus ( na medida em que se encontra exposto a um excesso de sofrimento).

O lema não é : "Eu gozo, então eu amo", mas sim : "Eu sofro, portanto, eu amo".

Quer dizer, nos três casos - no jogo, na toxicomania e na paixão amorosa- o objeto satisfaz simultaneamente a Eros e a Thânatus. Na verdade , Eros vai se servir de Thânatus para obter prazer, sexualizando e narcisizando os objetivos tanáticos. É graças a este compromisso entre o fim narcísico e o sexual, que a antinomia entre as duas pulsões é silenciada, evitando-se, desse modo, um conflito identificatório insustentável.

Por fim, teríamos as relações amorosas, como protótipo das relações de simetria. Nesse caso, o que o eu espera do outro é se tornar destinatário de seu amor e de ser reconhecido como enunciador de uma palavra desejante. Quer dizer, uma relação amorosa que aponta para uma relação intra-psíquica necessária, permitindo a passagem da representação fantasmática à representação ideacional, do processo primário ao secundário, que encontra sua razão de ser na exigência de comunicação do eu, corolário de sua relação com a realidade, representada pela relação do eu com o ser amado (numa relação, pois, de reciprocidade).

Bollas ( 1996) sustenta, a partir de sua clínica com pacientes "borderline", que estes procuram inconscientemente estabelecer relações turbulentas - seja com o analista, seja com seus objetos de amor ( preferencialmente com a mesma configuração psíquica) - como forma de obter uma relação de proximidade, o que significa uma tentativa desesperada de constituir o objeto do desejo, sob a sombra dos efeitos disruptivos produzidos pelo objeto primário. Cria-se, desse modo, um triste paradoxo: o colapso do ego borderline, embora terrivelmente ameaçador, é inevitavelmente a forma desejada de ir ao encontro do objeto primário. O objeto do "borderline" incita o campo sensório, tanto quanto tumultua o self, situando-se, à semelhança do objeto primário, no limite entre o externo e o interno. Acreditando estar em busca da verdade, a mais profunda, as ofensas dirigidas pelo paciente "borderline" ao outro ( analista ou amante) escondem " o fantasma intangível do 'outro' profundo e familiar que habita o self e se torna indistinto dele mesmo"( Bollas,1996,p.09).

Este artigo de Bollas me foi extremamente esclarecedor para pensar aquilo que eu pretendia articular, isto é, a precariedade da estruturação egóica dos pacientes borderline e suas formas passionais de amor, ou melhor, a relação entre os destinos do eu e os destinos das pulsões libidinais. Como bem anunciara Freud (1911), há que se atentar para as incidências das "modificações anormais do ego" nas perturbações dos investimentos libidinais. A questão que fica para mim é como se produzem tais modificações ditas anormais do ego, a não ser como resultado da sombra falhada do objeto primário, fruto de investimentos libidinais maternos ( e paternos) inconstantes e mesmo falhos, os quais podem resultar no famoso "eu-rendado" dos casos-limite. Se o mecanismo utilizado é, como afirma Green (1999), a clivagem, no sentido freudiano do termo, como resultado, pois, de uma relação metonímica com o objeto parcial, parece-me que um dos efeitos disruptivos assinalados por Bollas na busca tumultuada do objeto do desejo "borderline" é o amor passional, tal como descrita por P. Aulagnier, em que a intangibilidade da relação assimétrica significa a única via possível de "reencontro" com o "outro", que o constitui , ao mesmo tempo que o "desfaz" ( o duplo, de O.Rank).

Uma experiência muito próxima do "estranho"- como tematizara Freud (1919) a propósito dos efeitos disruptivos do "duplo" - transmitiu-me minha paciente Paula, ao trazer para a sessão a terrível sensação experimentada por ela diante de uma senhora maltrapilha, de cuja proximidade na rua, emergiram sensações aterradoras relacionadas com as bruxas apavorantes dos contos infantis. A bruxa, "o lado invisível do mundo", como costuma dizer, mas cuja interferência em sua vida cotidiana parecia conferir-lhe um estatuto de realidade, ressurge em um sonho, que denuncia, a meu ver, o lugar ocupado pela paciente na cena edipiana:

"- Avistei logo de início uma menininha, pura, linda, deitada numa cama redonda de casal, junto com uma velha, uma bruxa horrorosa...as duas faziam sexo...e eu, observando a cena, perguntei à menininha : 'Como você tem coragem de fazer sexo com esta velha? Ela tem pinto?'. Em seguida, a bruxa se transforma em um homem horroroso, um bruxo. Ele se pôs a fazer sexo com aquela menina linda, pura...E eu lhe disse ainda : 'Como você pode fazer isto com este homem horroroso? Por que você deixa?'."

Paula, sem conseguir ocupar um lugar de sujeito na cena edipiana, procura desesperadamente em sua primeira relação amorosa, uma vivência que a retire dessa condição de menininha, de "ninguém" e lhe permita experimentar a posição de sujeito desejante. O trabalho analítico se faz no sentido de lhe proporcionar uma experiência de continuidade de sua existência (uma experiência falhada de infância), ao mesmo tempo que lhe permite ter alguns lapsos de consciência de que esse seu primeiro relacionamento amoroso, longe de satisfazer seus reclamos de amor, a reenvia repetidamente a uma situação de passividade ante o sadismo da cena primária por ela fantasiada. Uma passividade que só pode ser investida sob a forma de um apelo desesperançado/desesperador de vir a ser objeto do desejo do amado como condição para ser "alguém".

Caberia pensar, inclusive, se é possível estabelecer relações amorosas do tipo simétrico em uma sociedade que tende à desindividuação, à constituição de egos frágeis, extremamente dependentes do investimento do outro, condição até mesmo de suas existências. Ora, eu me pergunto se diante de uma existência que exige a demissão do sujeito, ou melhor, cuja condição de existência é ser "ninguém", se o que resta a ser experimentado como relação amorosa, não é apenas uma versão fátua da mesma, pautada por paixões alienantes e fugazes.

Considerando que a relação transferencial se apresenta como uma relação de amor assimétrica, cuja peculiaridade consiste em oferecer ao paciente uma noção de amor e de si capaz de lhe propiciar que transcenda o vivido e passe a concebê-lo com relativo distanciamento de modo a que venha ser sujeito de seu próprio desejo, pergunto-me se diante dos obstáculos que se impõem na atualidade à subjetivação, se este não se constitui em um dos maiores impasses impostos à intervenção analítica, mas que podem paradoxalmente representar um verdadeiro desafio para o pensar psicanalítico.

Proponho-me, em seguida, a analisar essa questão sob outro ângulo, procurando depreender o que há de estranho e até mesmo de perverso e ameaçador no contato com as fendas que se abrem em meio à fragmentação do tecido social, que parecem obnubilar a emergência do sujeito na história clínica e social do mundo contemporâneo. Ou seja, analisar a partir de Freud e da psicanálise pós-freudiana, as incidências do recalcado na desrealização da realidade e do próprio real , de onde emerge o campo simbólico das representações e o próprio sujeito psíquico.

Do estranho ao absurdo? Eis a questão da desrealização do real...

Freud, logo no início de seu artigo, O 'Estranho' (1919), salienta que se trata de um tema afeito ao olhar estético, considerando que este possa se referir também a uma "teoria das qualidades do sentir". Está se referindo, na verdade, às dificuldades que se impõem à lógica discursiva para a apreensão do que se apresenta como estranho e até mesmo assustador no contato com o retorno do recalcado, que, paradoxalmente, nos remete ao que há de mais familiar em cada um de nós. Uma reflexão que convida a pensar o inconsciente psicanalítico, ou mais específicamente, a dimensão dos afetos inconscientes, não sob o viés energético, mas em suas formas qualitativas de expressão, cujos deslizamentos de sentido se fazem melhor conhecer pelas linguagens poética e literária. É assim que Freud, após um longo percurso sobre os diferentes matizes semânticos da palavra alemã "unheimlich", recorre a um conto de Hoffmann, " O Homem da areia" (Imago,1993), para demonstrar a gênese dos sentimentos de estranheza.

Segundo Freud, Hoffmann produz no leitor o contato com o estranho, despertando de modo fantástico, por meio da figura do "duplo", não propriamente os medos infantis, mas os desejos e até mesmo crenças infantis, que um dia foram objeto da ação do recalque e que retornam do exterior de modo ameaçador ( ou seja, que são revividos por meio de alguma impressão exterior), produzindo no sujeito uma sensação de estranheza, sobretudo quando se aproximam da idéia de castração. Não se pode esquecer que o "Homem de areia" era a história de um homem que arrancava os olhos das crianças, cujo relato na infância provocou uma impressão terrificante em Natanael, personagem central do conto. É como se tal experiência tivesse lhe provocado uma fenda narcísica, que se via reaberta a cada nova experiência que lhe suscitasse impressão semelhante, sobretudo porque fora associada à morte do pai, cujas lembranças, conforme assinala Freud, o remetiam a algo tão misteriosamente apavorante quanto a história do "Homem de areia".

A figura do duplo vai se multiplicando no desenvolvimento da narrativa, com as personagens do advogado Copélio e do vendedor de óculos, Coppola, que se impunham a Natanael, de volta do exterior, como o cenário vívido e traumático das histórias infantis que tanto penetraram em seu imaginário. É assim que Hoffmann - claro que, como salienta Freud, como todo bom ficcionista, expande de modo infindável as possibilidades de se produzir estranheza - produz no leitor uma espécie de apreensão primária do retorno do reprimido, propiciando-lhe uma abertura para uma experiência de invasão do real na realidade, de início apenas parcialmente, até atingir a totalidade desta, que o autor tem o cuidado de ir desvelando com tamanha acuidade, produzindo uma espécie de aprisionamento na emoção, entre o personagem e o leitor, capaz de nos dar a dimensão "exata" da fantasia terrível de morte que acomete Natanael no final e o faz suicidar-se. Uma vivência experimentada diante do duplo (ao avistar Copélio em meio à multidão), que intercepta, mais uma vez, sua experiência amorosa com Clara e o reenvia ao abismo do narcisismo de morte, como diria Green (1983).

É interessante observar, portanto, que o mesmo aprisionamento na emoção a que estão sujeitos, leitor e personagem, que torna tão vívido o conto fantástico, é também condição da "fusão simbólica" entre analista e paciente, para que este apreenda-se concebido por outrem, conforme sustenta Melsohn (1995;1991). Uma fusão que permite uma espécie de apreensão originária das emoções que, de acordo com este autor, é muito mais mítica do que estética, embora admita que o artista ao conferir uma dimensão expressiva aos objetos acabe se aproximando da experiência analítica.

Aliás, Freud, no artigo sobre "O estranho" (1919), demonstra-se bastante inclinado a admitir até mesmo a superioridade das criações fictícias na apreensão e produção de efeitos do estranho, o que me faz pensar que estivesse intuindo, não apenas o que tematizará posteriormente em o "Mal Estar da Cultura"(Freud,1930), ou seja , a incidência da pulsão de morte na cultura, mas também sobre o que as experiências estética e literária nos tem a dizer a respeito das contribuições do método psicanalítico para a crítica da cultura.

É preciso atentar para o fato de que Freud explora a questão do estranho relacionando-o, não apenas com o retorno do mesmo, ou seja a repetição ( uma das vicissitudes da pulsão de morte), mas também com a temática do "duplo', estudada por Otto Rank (1914). Retomando as pesquisas realizadas por este sobre a evolução da idéia de duplo, Freud interessa-se particularmente pela transformação de uma noção inicial de 'enérgica negação da morte', em que o duplicar se faz como defesa contra a extinção, portanto, uma garantia de imortalidade, para uma idéia que sugere o contrário, funcionando como uma espécie de anunciador da morte. Quer dizer, se de início o duplo se apresenta como algo amistoso, sentido que Freud atribui ao amor-próprio ilimitado do narcisismo primário que, na ânsia de defesa contra as ameaças de perecimento, levou o ego a projetar esse material no exterior, causando-lhe uma sensação de estranheza, opera-se, em seguida, sua conversão em algo terrificante. Embora nos faça atentar para a estranheza causada pelas idéias que mantêm alguma proximidade do complexo de castração e da idéia de morte, não as articula propriamente com a cisão narcísica implícita na noção de duplo e muito menos com a de pulsão de morte, questões que me parecem essenciais para a compreensão da conversão apontada.

Em " O Ego e o Id" (1923), Freud esclarece, do ponto de vista não apenas libidinal como sugere em "Introdução ao Narcisismo"(1914), mas de acordo com sua última versão da teoria das pulsões, o motivo pelo qual o excesso de investimento libidinal no ego conduziria à doença, impedindo o ato criador, na medida em que poria em risco a unicidade do eu devido à própria liberação da pulsão de morte. O problema é saber o que ocorre na dinâmica pulsional quando o narcisismo se põe à frente não por "amor de si", mas movidos pela "dor de si", como parece ser a tendência imposta pela precariedade constitutiva do processo de subjetivação contemporânea.

Estudos mais recentes sobre os casos-limite têm reforçado a idéia sustentada por Ferenczi, em seus últimos artigos de 1928 a 1933, de que o trauma poderia advir não apenas do que ocorreu, mas do que deixou de ocorrer, provocando verdadeiros momentos de estagnação do eu devido às carências do objeto primário. Eu diria, devido a falhas nos investimentos narcísicos do eu em constituição, que, por dor de si, provocariam uma espécie de deficiência na preservação do objeto identificatório, sucumbindo à deflexão das pulsões .

A questão que nos resta pensar é se a noção de "estranho", tal como formulada por Freud, é capaz de elucidar, para além da dimensão individual da desagregação de si, também o fenômeno de alienação presente nas tentativas do Homem contemporâneo de (des)construção de um projeto identitário, que exige, paradoxalmente, a demissão do sujeito. No caso brasileiro, esse processo tem se manifestado por meio da adesão irrefletida a toda sorte de idéias, valores e projetos, impostos pelos países do primeiro mundo, o qual vem se agravando com a globalização da economia e da cultura.

Freud associa a noção de "estranho" à fenda narcísica que se reabre a cada momento em que a experiência toca o solo das angústias infantis ( como a da castração, por ex.) e que põe o sujeito em contato com o que há de mais aterrador - o medo, a solidão, o silêncio e a morte. Portanto, retoma a temática do duplo, de Otto Rank (1915), para sublinhar que o retorno do reprimido, no caso, produz estranheza no momento mesmo em que faz "retornar de fora" as angústias mais primitivas, que no mundo contemporâneo se convertem, a meu ver, em angústias de aniquilação de si . De algum modo, quando reinterpreta o conto de Hoffmann, está tematizando as intersecções e superposições entre o real (simbólico) e a realidade, além de por em questão o próprio estatuto do real , na mesma linha de preocupação que o induziu a pensar as diferenças entre a psicose e a neurose ( Freud, 1924).

Green ( Imago,1988) identifica no artigo de Freud, de 1924, e particularmente no artigo " A negação" ( Freud,1925) , não apenas uma tentativa de pensar a especificidade da psicose, mas uma antecipação do estudo da dinâmica do fronteiriço, em que o par de opostos - sim e não - coexiste com a estrutura mental - nem sim, nem não - que, no que diz respeito à realidade externa, coincide com o sentimento de que o objeto é e não é real, assim como com a idéia de que o objeto não é, nem real nem irreal. Em sua reinterpretação das proposições de Freud neste artigo, Green nos faz supor que do mesmo modo como parece haver uma coincidência entre o domínio consciente da realidade psíquica e o real externo, pode-se supor que exista algum nível de correspondência entre o inconsciente e o desconhecido do mundo externo.

Ora, considerando que o artigo " A negação" procura abordar, portanto, não apenas o fracasso na constituição do sujeito psíquico, como as falhas em sua constituição (incidindo sobre a formulação dos juízos de atribuição e de existência), parece-me essencial articular essas idéias com as proposições de Green acerca do que há de estranho, de incognoscível (recalcado) no próprio mundo da cultura, questão aliás pouco explorada pelo autor.

Será através da noção de "absurdo", presente na Teoria dos Campos, formulada por Herrmann que, a meu ver, tal articulação se fará possível , na medida em que este autor avança, a propósito da presença do estranho no mundo exterior, em direção a uma crítica psicanalítica da contemporaneidade.

Herrmann(1994) sustenta que estamos vivendo um momento carente de substância e que é exatamente por isso que a Psicanálise ganha em importância, em sua função de crítica da cultura, visto que, por lidar com representações, pode auxiliar a desfazer a ilusão de autonomia da individualidade. A própria noção de Homem Psicanalítico, concebido como o "sequestro do real" que constitui o desejo, pode servir como uma lupa para analisar na intimidade do sujeito desejante a crise de identidade e realidade. O autor, embora proceda, diferentemente de Green, a uma leitura fenomenológica da psicanálise, desenvolve à semelhança daquele uma noção de equivalência entre realidade externa - que Herrmann define como um "sistema de representações que tende a mimetizar o real" - e a identidade , que seria "um sistema de representações que tende a mimetizar a interioridade do sujeito" (1994, p.320). É sob essa ótica que nos convida a pensar o modo como a crise na crença da realidade afeta a própria identidade do sujeito. A seu ver, o empobrecimento da experiência que se faz presente com a aceleração das imagens e versões do real impostas pelos meios de comunicação de massa, acaba como que traindo a possibilidade de conferir sentido a uma interioridade capaz de sustentar a identidade. Considerando que o real, de outro lado, seria o análogo da dimensão inconsciente do desejo que incide sobre o campo das representações da realidade, sustenta a potencialidade crítica dessa noção para a análise das ilusões e equívocos gerados pela crise da crença na realidade.

Em sua obra "Psicanálise do Quotidiano" (Herrmann,1997), o autor observa que na impossibilidade de sustentar "o mundo em que vivemos", instaura-se o regime da farsa que nada mais é do que a forma lógico-emocional que subjaz à moralidade autoritária da contemporaneidade. Em outros termos, poderíamos dizer que aquilo que Adorno apontava na década de 50 como sendo constitutivo da cultura ocidental, isto é, suas tendências autoritárias e à univocidade das formas de pensar, que o autor já identificava como uma tendência que se encontrava mediada pela própria personalidade autoritária, Herrmann pretende fazer avançar em direção a uma compreensão crítica dos rumos assumidos por essa tendência à totalização diante da globalização da economia e da cultura no mundo contemporâneo. Observa a esse respeito: "O sistema econômico internacional é obviamente filho do processo autoritário, na medida em que pretende organizar a totalidade das relações entre seus componentes: o capitalista tradicional é apenas um figurante marginal da cena e prescindível como a vaca, o capital, inserido nos sistemas de macroplanejamento informatizados, é autônomo o bastante para criar a moralidade da produção global e da indução de necessidades" ( Herrmann,1997, p.150). Um de seus sintomas mais evidentes é, como afirma o autor, proferir a "mentira mentirosamente", cuja essência manifesta-se claramente no modo como, por exemplo, se articula o sistema financeiro mundial: outorgando aos mais fortes o direito de não apenas definir as regras do jogo, como de modificá-las ao seu bel-prazer.

A questão, portanto, é analisar em que medida o próprio tecido social sobre o qual se tentou construir um determinado projeto de modernidade - em que o moderno e o civilizado se combinam com o que há de mais arcaico e retrógrado - não estaria falhando em oferecer possibilidades efetivas de continuidade e permanência de uma existência; pilares, a meu ver, de um processo de subjetivação. No caso brasileiro, some-se a isto a fragilidade na formação da identidade sócio-cultural, que tem sido sucessivamente retomada por Schwarz (1977;1997) e Antônio Cândido (1998), os quais têm salientado as conseqüências nefastas para a sociedade brasileira da "feição moderna" que se conferiu ao desconjuntamento colonial, ao se manter o modelo familista-patriarcal como base de sutentação dos projetos de modernização do País. Uma questão muito bem abordada, no campo literário, por outro grande escritor, Machado de Assis, que denuncia a vida em declínio de uma sociedade burguesa em constituição, dada a prevalência das dimensões autoritária e patriarcal, em fins do século XIX.

No conto "O espelho - esboço de uma nova teoria da alma humana", publicado originalmente em 1882, na coletânea Papéis Avulsos ( Ed. Ática, 1982), o escritor apresenta a sua versão acerca das incidências desse processo de esgarçamento do tecido social, devido à falta de um projeto de identidade sócio-cultural, na constituição e, até mesmo, permanência da própria identidade do sujeito individual. Considerando a atualidade do tema, visto que no Brasil, o processo de aceleração tecnológica engendrado pela globalização é sustentado pela frágil resistência do tecido social e de suas mediações ( tradição familista-colonial associada a políticas culturais nacionalistas e autoritárias), recorro a este conto como forma de iluminar uma temática que tem sido motivo de preocupação de filósofos e psicanalistas - ou seja, os obstáculos que se interpõem à subjetivação no mundo contemporâneo. Vejamos, resumidamente, no que consiste o enredo do conto " O espelho" ( Assis, 1882).

Em uma casa de Santa Teresa, reuniam-se cinco amigos para debater assuntos diversos. Um deles, Jacobina, mantinha-se em um silêncio obstinado, recusando-se a entrar na discussão. Aliás, este silêncio, segundo comentários dos organizadores da coletânea, sugere uma explicação : discutir supõe 'unidade de consciência', e é essa unidade que o conto vai por em xeque.

Jacobina, homem de 45 anos, 'provinciano, capitalista', pobre de origem, conseguiu subir na vida graças à sua nomeação a um posto militar. Muito reservado, de pouca conversa, de repente surpreende a todos fazendo um relato longo a respeito de um episódio de sua vida. Pretendia defender a idéia de que existiriam duas almas : a alma exterior, ou aquilo que é interiorizado, e a alma interior. Mas, como veremos no relato do episódio do espelho, a alma interior de Jacobina ( sua auto-imagem e autoconsciência) constitui-se invariavelmente de fora para dentro, ou seja, a partir da imagem que os outros faziam dele.

Aos 25 anos, Jacobina foi nomeado "Alferes da Guarda Nacional". Isto foi suficiente para que todos de sua família passassem a elogiá-lo e dele se orgulhar, não mais por ser "Joãozinho", e sim pela patente militar que ostentava em sua farda. Oriundo de uma família humilde, todos reconheciam no novo posto uma mudança significativa de status. Passou a ser o " Sr. Alferes", nomeação que lhe conferiu uma nova imagem de si e que foi ganhando prevalência em relação às imagens originárias.

Um dia foi chamado por sua tia Marcolina que morava em um sítio distante. Essa tia, em reconhecimento dos méritos do sobrinho, ofereceu-lhe o que havia de melhor da mobília da casa : um grande espelho, que logo foi colocado em seu quarto. Jacobino relata que tudo começou a mudar em sua vida. O mundo exterior que antes lhe restituía um sentido humano, acabou fazendo com que deste se afastasse, ao ver a valorização de sua pessoa ser substituída pela exclusiva valorização do cargo que assumira. Ele, por sua vez, foi ficando frio, sem compaixão pelo outro.

Mas, logo após sua chegada no sítio, essa sua tia teve que fazer uma longa viagem, deixando-o a sós com os escravos. Acontece que, no dia seguinte, estes também fugiram. Jacobina ficou na mais completa solidão. Desapareceu a "alma exterior", mesmo aquela que só o reconhecia pela patente militar. Durante o dia, sua alma interior foi perdendo as referências externas, restando-lhe apenas os sonhos noturnos. Foi se apavorando ante a dilaceração que sentia em seu interior. O silêncio, a solidão, tornaram-se-lhe enlouquecedores. Após oito dias, resolveu olhar-se no espelho e o susto foi maior ainda: "não se estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumaçada, difusa, sombra da sombra"(Assis, M. de,1982,p.148). Refletia-se ali, no espelho, a sensação que o invadia - a de mutilação de si.

Estava resolvido a ir-se embora do sítio antes que enlouquecesse, quando teve uma idéia : vestir a farda de alferes e olhar-se novamente no espelho. Reapareceu, assim, sua imagem : nítida, forte e unificada. Eis como a próprio personagem explica o fenômeno : " essa alma ausente, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho" ( Assis, M. de, 1982,p.148). E foi desse modo que Jacobina conseguiu enfrentar a solidão por mais alguns dias.

Machado de Assis é brilhante, neste conto, em sua apreensão dos males causados até mesmo para a construção da identidade pessoal, em uma sociedade calcada em princípios autoritários e alienantes, que propõe como única saída para a construção de um projeto de vida, "um viver nos outros", sustentado, na maioria das vezes, por insígnias identitárias , cujo valor simbólico se vê destituído de uma tradição histórica apoiada em uma experiência coletiva realmente substantiva. É interessante como, por intermédio do recurso do espelho, o autor, sem o saber, trabalha com a idéia de narcisismo primário, que, aliás, Lacan (Ed. Arcádia,1977) remete à noção de espelho, como sendo a matriz do registro imaginário que será responsável pelas demais identificações.

Ora, Machado de Assis apresenta ao leitor um processo de desconstrução de uma identidade ( ou de subjetivação) possível, a qual se vê minada na medida em que as relações de objeto aparentemente significativas (na intimidade da vida familiar) são substituídas por relações vazias de sentido, embora muito valorizadas socialmente. Um processo calcado na valorização do sujeito a partir, única e exclusivamente, de insígnias institucionais ( a patente militar), que o conduz cada vez mais à perda de sua capacidade de se identificar com o outro ou mesmo de amar alguém. Evidencia-se um paradoxo: o estado de despersonalização que Jacobina experimenta quando perde o referencial externo ( as 'almas exteriores') só é superado por meio da reapropriação das mesmas insígnias que o alienaram de sua existência, sendo obrigado, pois, a vestir o uniforme de Alferes, como forma de restituir a unidade do eu. Unidade que, mesmo na vida adulta, Jacobina parece não ter garantido, o que lança dúvidas quanto ao grau de coesão da vida íntima familiar brasileira, de fins do século XIX, sobre a qual se constituiriam as bases de um processo identitário.

O interessante a ser observado é que autores de diferentes épocas foram apontando algo semelhante à idéia de desrealização do real proposta por Herrmann, mas cuja efetivação parece se dar " a ver", ao menos de modo escancarado, somente na atualidade. No conto " O espelho", Machado de Assis anuncia por intermédio do recurso ao espelho, não apenas o risco de se desmanchar uma interioridade que não se vê mais reposta por uma experiência significativa, como o que Herrmann (1994) chama de "a morte da metáfora", que se traduziria pelo descompasso entre a realidade e as imagens veiculadas pela realidade consensual.

Adorno e Horkheimer (Cultrix,1973), por sua vez, já nos anos 50, sustentavam que o novo sistema de dominação ideológica não mais se fazia pela simulação de uma pretensa autonomia, ou de um discurso enganoso, visto que a ideologia era ela mesma a própria realidade, constituindo-se em um sistema coeso, em que a cultura, a economia e a política se fundiriam em um único sistema onipresente capaz , não apenas de paralisar a crítica e as forças de oposição, como penetrar nas esferas mais íntimas da consciência e da cultura. É preciso observar, no entanto, que a compreensão profunda das determinações societárias, segundo Adorno, só poderiam ser apreendidas no interior da cisão fundamental do sujeito psíquico, a única capaz de denunciar o irreconciliável que a razão autoconservadora tentara negar.

Enquanto Adorno recorre às categorias do método dialético, apontando a mediação recíproca entre indivíduo e sociedade, com vistas à crítica da cultura, Herrmann procura igualmente proceder à crítica da cultura pondo em ação, entretanto, o método psicanalítico, embora o conceba dialéticamente e, desse modo, procure repensá-lo em consonância com as transformções que se lhe impõem a partir de seu próprio objeto - ou seja, a dimensão inconsciente subjacente às ações humanas. Daí defender a necessidade de se apreender o princípio ordenador e até mesmo produtor do real autoritário, que se traduz pela unicidade de sentidos que lhe são impostos, modo encontrado pela civilização de sobrevivência à crise de irrealidade do real contemporâneo. Denuncia, desse modo, o Princípio do Absurdo que o constitui. O autor alerta-nos, ainda, para o perigo que se instaura com o regime da farsa - quando o "pensamento refugia-se no ato puro"(Herrmann,1997, p.158). Ou de forma mais sutil e, nem por isso menos danosa, em que "o ato simula um pensamento" - é o caso da opinião pública, que a mídia cuidadosamente forma, convertendo a penúria da existência em fato.

Questão, aliás, que me parece bastante elucidativa da matriz "inconsciente" - bem como do princípio do absurdo que a constitui - produtora da mais recente rebelião dos jovens da FEBEM, em São Paulo, a quem fora atribuída a pecha de "nossos bárbaros adolescentes". Esta foi a designação corrente atribuída a esses jovens por nossa mídia semi-cultivada que converteu o ato - cerca de 1000 jovens se insurgem contra o sistema de "proteção carcerária", cometendo assassinatos horrendos de seus próprios companheiros - em verdade do todo. Nada se diz, no entanto, que se trata de uma das conseqüências mais perniciosas da nova ordem mundial imposta pela globalização aos países do terceiro mundo - ou seja, a miséria, não apenas material - que é desnudada por aqueles que vivem uma situação-limite. E o fazem recorrendo aos mesmos princípios que os excluíram do sistema - a barbárie ( transvestida de neo-liberalismo) não admitida pelas nações ricas e muito menos por nossos governantes que seguem seus ditames sem grandes conflitos de consciência. Situação que agudiza de modo alarmante os fundamentos autoritários e excludentes sobre os quais vem se construindo, há mais de um século, o projeto brasileiro de modernização.2

É a realização escarninha na esfera da cultura daquilo que fora denunciado como sintoma do indivíduo semi-cultivado e que um dia tornou possível o holocausto, cujo princípio ordenador, Adorno e Horkheimer trataram de denunciar, em 1947, na "Dialética do Esclarecimento" . Nesta obra, alertavam-nos os autores para a " tendência à falsa projeção", o sintoma do indivíduo semi-cultivado, que ameaçava invadir toda a esfera da cultura. Para ele, afirmam os autores, "todas as palavras convertem-se num sistema alucinatório, na tentativa de tomar posse pelo espírito de tudo aquilo que sua experiência não alcança, de dar arbitrariamente um sentido ao mundo que torna o homem sem sentido, mas ao mesmo tempo se transformam também na tentativa de difamar o espírito e a experiência de que está excluído e de imputar-lhes a culpa que, na verdade, é da sociedade que o exclui do espírito e da experiência" ( Adorno e Horkheimer, 1985, p. 182). Uma problemática que atinge a todos - e evidentemente não apenas os excluídos - que Herrmann (1997) denuncia continuar sendo o princípio ordenador da representação do mundo em que vivemos, "que alardeia ser este o melhor mundo possível na prática", mas que nada mais é do que a declaração de sua impotência : "a opinião comum é o ato de impotência disfarçado em pensamento", afirma o autor. Eu me pergunto se não encontraríamos na versão dada pela mídia dos atos de violência cometidos pelos adolescentes da FEBEM, a cabal inteligência das possíveis conseqüências nefastas da farsa convertida em ato, que Herrmann nomeia "desrealização delirante do real".

Sem pretender dar conta de problemáticas tão candentes de nosso mundo contemporâneo, procurei sustentar a idéia de que a noção freudiana de "estranho"(1919), embora tenha avançado em direção à apreensão daquilo que retorna de fora, ou seja da cultura, como irrupção do recalcado que suscita crenças e angústias infantis, faltava-lhe a dimensão propriamente do recalcado no campo social, que Green(1983) parece ter procurado ressaltar por meio da noção do "desconhecido". O que Adorno e Horkheimer denunciavam como uma verdadeira invasão do idioma (e, evidentemente, de toda a cultura) pelo estilo vazio da indústria cultural, Herrmann assinalará o "absurdo" da desrealização delirante do real promovida por aquela, cujas mais recentes configurações imporiam um desafio à Psicanálise neste fim do milênio, não apenas na clínica, como no plano da crítica da cultura, considerando a mútua perversão implicada nas duas faces do real - a identidade e a realidade. Salienta três características do mal-estar na cultura contemporânea : " perda da substância histórica do contato interpessoal, equalização cultural em torno de uma civilização de meios em acelerada produção e incredibilidade do cotidiano, condições que convergem", a seu ver, "para promover a grande crise da representação da realidade"(1994, p.329).

O futuro da Psicanálise no mundo contemporâneo : crônica de uma morte anunciada?

Herrmann (1994) sustenta que a Psicanálise deva ocupar um lugar privilegiado na crítica da cultura contemporânea, por se tratar de uma "ciência da desilusão", cujo método consiste em proceder à "crítica das aparências" . Esta se faria pela "ruptura de campo" e a conseqüente recomposição de sentidos suprimidos em razão da crise, dentre outros fatores, na crença da realidade, cujas fissuras se fazem sentir apenas no momento em que se esvai a representação identitária de uma interioridade esvaziada de sentido. Processo esse que se vê acelerado ante a problemática que se impõe no mundo contemporâneo, ou seja, a aceleração de meios eficazes de produção de sentido ( por meio de imagens pré-fabricadas que sugerem fornecer informações), sem que se permita qualquer ancoragem no campo da experiência individual ou coletiva, o que produz um estranho paradoxo : crê-se mais do que nunca, embora nada permaneça como referência de uma interioridade em busca de sentido.

Acontece que esse "excesso de vestes representacionais" a que o corpo sexual-psíquico está sujeito, conforme assinala o autor, acabou tendo uma incidência extremamente danosa, a meu ver, no que diz respeito tanto aos destinos do eu, como nos destinos da paixão amorosa, impossibilitando não apenas a permanência de um sentido de continuidade de existência, mas também compartilhar projetos e sentidos comuns a uma existência. E não é este o grande desafio colocado pela clínica dos casos-limite, pautados pelo sofrimento diante de uma existência sem promessa de continuidade?

Volto, pois, à questão inicial levantada por mim neste artigo, cujo esclarecimento podemos tentar obter com o auxílio do vértice apresentado pela idéia do "absurdo", conforme sustentada por Herrmann. A crise de identidade da Psicanálise não estaria sofrendo da mesma crise de realidade à qual se submete o sujeito psíquico na contemporaneidade, considerando ainda que a multiplicidade de sentidos defendida pelas diversas escolas de psicanálise responde menos a uma exigência de rigor epistemológico, e mais a uma sorte de adaptação técnica às imagens que se produzem quanto à sua eficácia terapêutica?

Ora, se o mundo contemporâneo tem promovido um verdadeiro descompasso entre as exigências da técnica e a realização do sentido humano da existência, sobretudo ao impor uma espécie de esvaziamento da interioridade e, como afirmara Adorno, a conseqüente "demissão do sujeito", não há como impedir o fim de uma "ciência da desilusão", se esta não procurar refinar seu instrumental de análise da crise da contemporaneidade, pelas vias metodológica e ontológica. Esta última levanta uma questão essencial para o pensar psicanalítico : que, para além da crise das representações, impor-se-ia uma crise do próprio "ser" do Homem Psicanalítico.

São questões que, dada a complexidade do assunto, me fizeram recorrer a diferentes campos do conhecimento, desde a Filosofia, a Literatura até a Psicanálise, sem que com isso tivesse sequer a pretensão de tratá-lo tão extensamente quanto o exigiria a abordagem do mesmo em seus mais diversos matizes. O esforço se fez no sentido apenas de inserir o debate atual sobre os rumos da Psicanálise na discussão contemporânea acerca da crise da subjetividade moderna.

Mônica do Amaral
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