A ética, o Pró-Ética e o futuro da ética ?

Laurice Levy

"Liberem a ação política de toda forma
de paranóia unitária e totalizante; façam crescer
as ações, pensamentos e desejos por proliferação
e não por subdivisão e hierarquização piramidal"
Michel Foucault

Os Estados Gerais da Psicanálise estão surgindo num momento crucial em que se faz necessário um questionamento mais sério e profundo a respeito do "status quo" vigente nas instituições psicanalíticas.

Esta Senhora-Psicanálise, como a chama Joel Birman, calcado em Lagache, com cem anos de idade vem mudando e se transformando através do tempo.

Certamente a psicanálise atual tem muito pouco a ver com a psicanálise de Freud. Não por estar se adaptando, como muito bem sinalizado por Elisabeth Roudinesco no Jornal do Brasil de 2 de maio de 1999, afirmando que esta é uma característica da psicanálise:

"... o que a torna durável é esta
incrível capacidade de adaptação"

mas sim porque, infelizmente, ela se tornou uma anciã esclerosada e absolutamente reacionária. Perdeu seu vigor fazendo concessões impensáveis, muito mais preocupada com questões de poder, políticagem ou narcísicas do que realmente com a ética ou com a herança deixada por Freud: o caráter libertário da psicanálise foi se perdendo ao longo do tempo.

As críticas feitas à psicanálise, infelizmente, muitas vezes procedem. Apesar de já em 1975 quando começaram os rumores sobre o "caso" Amilcar Lobo, numa carta a David Zimmerman, assinada pelo Dr. Leão Cabernite (analista didata de Lobo e Presidente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro) e outros, eles se queixam dizendo: "O "caso" Amilcar surgiu numa mesa redonda sobre psicoterapia como "exemplo" (aspas dos autores) de que a psicanálise seria reacionária". Hoje não é mais possível negar que às vezes ela assim se comporta.

Ela está sendo duramente questionada dentro e fora do âmbito psicanalítico. Psicanalistas da maior competência como Maud Mannoni e outros denunciam faltas graves na ética, prática e transmissão da psicanálise.

Sabemos todos dos absurdos cometidos em nome da "seita" psicanalítica. Vamos dos mais simples aos mais graves que atingem não somente a clínica e o setting correspondente, mas também a questão da ética e de nossa cidadania frente ao mundo e ao nosso semelhante. Senão vejamos:

1. Psicanalistas rígidos e ortodoxos atendiam dia após dia com ternos exatamente iguais na ilusão de estar mantendo a suposta "neutralidade" (para falar de exemplos pouco nocivos ou não tão nocivos);

2. Outros, famosos e respeitados, interpretavam o medo das bombas reais que estavam caindo em plena guerra, como medos inconscientes e pessoais.

3. Num caso mais próximo de nós, no Rio de Janeiro, Amilcar Lobo conta que um de seus analistas interpretava e reduzia suas atividades na Barão de Mesquita onde trabalhava em uma equipe de tortura a prisioneiros políticos, como um problema de "fantasmas sado-masoquistas" de sua história pessoal, apenas.

Assim, esta forma de psicanalisar se tornou uma prática muito comum. Imaginar que se pode assumir uma postura apolítica ou neutra, frente aos grandes problemas sociais e universais, em nome da psicanálise ou como é chavão dizer para "salvar a psicanálise". Infelizmente, sabemos hoje que a psicanálise terá o futuro que os psicanalistas merecerem. E a realidade demonstrou que esta falácia é que está levando a psicanálise ao fracasso. Como comprovado no Congresso do Chile.

Na verdade, a meu ver, não é a teoria psicanalítica que está sendo questionada, mas sim a postura irreal e alienada de alguns psicanalistas, que na verdade não querem salvar a psicanálise mas sim a si mesmos apenas.

E não percebem que desta forma assinam o próprio decreto de morte pois, na realidade, quem está morrendo é o analista dogmático que ainda pensa poder se manter à parte dos grandes problemas sociais tentando se "alienar" por trás de uma pseudo-neutralidade. Estes estão sendo exterminados como dinossauros pela própria seleção natural.

Apenas um exemplo sério demonstrando a impossibilidade dos analistas ficarem confinados entre 4 paredes pensando que o mundo se resume a isso.

Numa carta de Jean-Louis Lamande, em que pede o seu desligamento da Société Psychanalytique de Paris (filiada à IPA), ao expor suas razões extremamente sérias e bem fundamentadas, a respeito do affaire Kemper-Leão Cabernite-Amilcar Lobo, na ocasião do lançamento do livro da Dra. Helena Vianna em Paris, ele diz entre outras coisas que nos interessam aqui:

" a tortura política é uma situação extrema
que não aceita nenhuma neutralidade"

e continua denunciando como, através de um malabarismo verbal a SPP (e também a IPA, a RJ, e outras), tentaram se abster do político :

"a tortura não é um sentimento, diz ele ,que se possa desculpar através de manobras intelectuais. Ao fazer isto há "uma cumplicidade política tácita com os criminosos políticos".

Assim, parece que a prática da psicanálise, ou melhor os psicanalistas estão pagando um alto preço por estas transgressões entre outras. A Newsletter da IPA (volume 8 número 1 de 1999) falando da decadência da psicanálise diz:

"mesmo que seja um sintoma do pluralismo psicanalítico moderno também representa um duro golpe à nossa ciência".

Todavia, se pensarmos numa visão sistêmica onde, sabe-se hoje, que em qualquer situação todos os envolvidos têm sua parcela de responsabilidade, ou sua co-responsabilidade, não poderemos ficar apenas no lugar da "pobre vítima indefesa" que está sendo perseguida. Muitos pensam assim. A SPP pediu o aval das autoridades contra a mídia !!!! Como relata Lamande, a Sociedade Psicanalítica de Paris obteve a "caução moral" do Estado com seu Reconhecimento de Utilidade Pública. Um dirigente da SPP afirma feliz::

"... isto me parece muito mais importante hoje quando a psicanálise se vê facilmente atacada pela mídia e na imprensa".

A nosso ver, os psicanalistas se posicionarem contra a liberdade de expressão é um pouco forte demais.

Cabe fazer uma profunda reflexão para tentar entender as razões éticas, sociais, políticas, psicológicas e culturais que desembocaram no estado atual das coisas.

O psicanalisar infelizmente perdeu seu valor heurístico e se tornou absolutamente autoritário, ditatorial, repetitivo e automático em muitas instituições psicanalíticas. Caiu numa mesmice empobrecedora e cristalizada. Infelizmente, estas instituições lembram muito mais uma igreja ou um exército do que realmente um lugar que permite às pessoas pensarem, criarem , refletirem e aprenderem. Quantos dentre nós, que já tinham estudado psicanálise a fundo, procuraram uma Instituição para aprender mais, pelo sentido de pertencimento ou até mesmo para poder se nomear orgulhosamente Psicanalista (com P maiúsculo) não emburreceram ao entrar numa formação Psicanalítica, envergonhando-se com o que viam e ouviam ?

Isto certamente nada têm a ver com os conceitos psicanalíticos que são, como o próprio inconsciente, atemporais. Estamos nos referindo especificamente à transmissão e institucionalização da psicanálise.

Pensando ser necessário manter uma "lealdade invisível" com o pai da psicanálise e portanto com o nosso ancestral mais querido, os psicanalistas atuais (netos ou serão bisnetos ?) nesta árvore genealógica, mantém o segredo de polichinelo, tornando-se cego como Tirésias, que tudo sabia apesar de nada ver.

Quando o Relatório da Comissão de Ética da Rio 1, perdeu vergonhosamente em uma Assembléia onde estava presente o próprio Dr. Leão Cabernite votando a favor do arquivamento do relatório que apresentava provas documentadas dos principais fatos ocorridos e relatados no livro da Dra. Helena Vianna, um grupo de 36 pessoas se destacou contra o fato de desejarem mais uma vez negar, mentir e encobrir fatos inaceitáveis ética e psicanaliticamente

Assim nascia o grupo Pró-ética. Atraindo a ira dos pais e dos irmãos, com muita dor e depois de muitos anos de tentativa de discutir dentro de casa (ethos)1 os problemas éticos, numa atitude extremada por não ter um interlocutor na instituição, mas consciente, decidiu compartilhar com os primos-irmãos mais afastados (psicanalistas estrangeiros e brasileiros) os mitos e ritos de ocultação e perversão institucional. A correspondência utilizada foi o nosso boletim Destacamento. Queremos publicamente agradecer aos psicanalistas de outros países, como França, Inglaterra, Argentina, e Canadá especialmente por terem dado muito mais apoio que os parentes mais próximos.

Sabíamos que, de um jeito ou de outro, as questões tratadas no nosso boletim diziam respeito a todos. Nunca tivemos dúvidas de que o problema não era restrito nem exclusivo à Rio 1. Por isso acabou desembocando em reflexões, cisões e mudanças não só na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, mas também em outras partes do mundo.

Também não é por acaso que René Major, a partir da tradução do livro de Helena Vianna e percebendo as ambigüidades da IPA em relação ao Grupo Pró-Ética e seu Descatamento, pediu seu desligamento da IPA e propôs os Estados Gerais da Psicanálise que nos congrega a todos aqui hoje e no ano 2000 na Sorbonne, para repensarmos estas questões.

Na realidade, não sei se todos vocês aqui já leram o livro da Helena, recebem o Destacamento e estão a par dos acontecimentos. Não quis repetir fatos e atos que talvez muitos conheçam, mas estou pronta para relatar e responder ao que quiserem, além de ter vários documentos e alguns exemplares do último Destacamento, importante para nós e para quem quiser se manter informado, porque traz em anexo o Relatório da Comissão de Ética e História, feito por uma comissão mista tripartite (como sugerido pelo Pacto-Contrato, envolvendo membros da Rio 1, Comissão Ad-Hoc (da IPA) e Pró-Ética).

Apenas uma curiosidade... depois do trabalho realizado pelas subcomissões, ao tomar ciência dos acontecimentos ocorridos desde a criação de nossa sociedade com Jones-Kemper-Cabernite-Lobo, (até então mantidos debaixo dos panos) que se perpetuam até hoje trigeracionalmente, três colegas passaram a fazer parte do Pró-ética. Inclusive a Diretora da Comissão de Ética da Rio 1. É importante sinalizar que até hoje ninguém na Rio 1 assumiu o seu lugar. Ou seja, a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro está sem comissão de ética.

Os colegas Rosa Albé e Claudio Campos estão elaborando um trabalho sobre o relatório, baseado em uma bibliografia que trata minuciosamente destas questões, para apresentarem na Sorbonne.

Mas, voltando à ética e ao grupo Pró-Ética, penso ser importante explicitar que, longe de sermos os donos da ética ou da verdade, como postulado por Platão na República (onde apenas alguns - os filósofos - seriam os únicos qualificados para dirigir o estado em nome de um saber que os elevaria, acima dos outros), podemos no máximo dizer que estamos buscando a ética na direção apontada por Alain Badiou.

Mesmo sabendo que o Pró-Ética toca em questões universais como a tortura, a mentira, etc... vou me permitir utilizar sua idéia de fidelidade ao acontecimento, sua crítica ao uso indiscriminado da palavra ética e sua reflexão sobre o lugar comum utilizado sobejamente de "respeitar as diferenças".

Diferentemente de Platão e de Kant, ele prefere uma outra via que não a universalização da ética, a busca do Bem, etc.... mas sim sua singularidade. Ele critica o uso exagerado da palavra ética em todos os campos e todos os saberes dizendo que , na verdade, por trás desta ética exaustivamente falada, difundida e explorada haveria uma tentativa de não dizer, nem mudar nada concretamente. É como Maurizio Andolfi, terapeuta familiar sistêmico, diz que as famílias nos pagam para não mudar.

Enfim, Badiou prefere falar numa ética das verdades concretas, definindo-se verdade ai apenas como processo real de fidelidade a um acontecimento, para que se possa interromper o fluxo anti-ético daquela situação específica. Teríamos então uma ética-de.

Neste sentido, o acontecimento é uma noção fundamental, que se destaca da situação, fazendo surgir uma outra coisa que não as opiniões e realidades instituídas.

Ao fazer isso o Pró-Ética se destaca e se diferencia. Com isso ganha o título de radical, destrutivo entre outros adjetivos de igual teor. Ao mesmo tempo que muitos dizem aceitarem nossas opiniões por "respeitar as diferenças".

Badiou, entretanto, afirma ser pura conversa fiada esta afirmação e continua:

"Uma primeira suspeita nos assalta quando consideramos que os apóstolos conhecidos da ética e do direito ás diferenças se mostram visivelmente horrorizados por toda diferença um pouquinho sustentada... na verdade, este famoso outro não é apresentável a não ser que seja um bom outro, o que vem a ser então o mesmo que nós... Respeito pelas diferenças, claro ! Mas desde que o diferente seja igualzinho a nós".

Resumindo diz ele: Torna-te como eu e respeitarei tua diferença.

Finalmente, pensamos que para não cairmos no atoleiro ideológico repetindo incessantemente os mesmo erros cabe, talvez para pensar um futuro da ética e da psicanálise, lembrarmo-nos de Hanna Segal:

" Devemos olhar dentro de nós mesmos e parar de dar as costas à realidade. Somos iguais a outros seres humanos, com os mesmos impulsos destrutivos e auto-destrutivos. Usamos as mesmas defesas. Estamos propensos às mesmas negações e podemos nos esconder atrás do escudo de nosso estatuto técnico... "

Assim, gostaríamos de dizer que nesta discussão dos Estados Gerais uma preocupação constante deve nos nortear: tentar evitar o eterno retorno do mesmo... ou como dizem os franceses: Plus ça change, plus c´est la même chose.

Laurice Levy
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1) O termo ethos tem duas origens gregas. ' A mais antiga êthos, com a letra eta inicial significa morada, abrigo, refúgio, indicando um lugar onde nos sentimos protegidos, guardados, onde nos "desarmamos", tiramos nossos "uniformes" e máscaras sociais" Altivir João Volpe

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