O psicanalista em busca de sua alma
Reflexões sobre a "especialidade" do analista

Rubens Marcelo Volich*

"A ausência de doença é talvez a saúde, mas não é a vida"1

Apesar de todas as resistências, ao longo de sua história, a psicanálise foi gradativamente se expandindo para além das fronteiras da clínica e dos institutos de formação.

Ao mesmo tempo, um número crescente de psicanalistas passou também a se interessar pelo trabalho em situações e enquadres diferentes daqueles classicamente conhecidos na cura psicanalítica: intervenções institucionais, participação em equipes médicas, hospitalares, educacionais, jornalísticas, jurídicas, empresariais, governamentais, e tantas outras.

O ensino da psicanálise, também se difundiu para além dos institutos de formação oficiais, passando a ser ministrado em diversos cursos acadêmicos, além dos de psicologia ou psiquiatria, tendo sido também divulgado através de palestras, congressos e cursos informais abertos ao grande público.

Essas tendências,criaram uma dinâmica onde se intensificam reciprocamente o interesse pela psicanálise por parte de setores até então alheios à mesma, e a ampliação da presença das idéias psicanalíticas nesses novos setores.

Constatamos atualmente a presença de psicanalistas, ou de pessoas com conhecimentos de psicanálise, trabalhando em diferentes setores específicos, em contextos clínicos, de pesquisa ou de ensino. Essas pessoas trabalham geralmente com populações relativamente homogêneas constituídas por toxicômanos, distúrbios de identidade sexual, psicóticos, delinqüentes, mulheres ou crianças vítimas de violência, esportistas, políticos, empresários e muitos outros.

Essa concentração de interesses ou da clientela em uma problemática ou em um grupo específico, faz com que, muitas vezes, esses profissionais sejam considerados - pelas demais pessoas, ou por si mesmos - como especialistas naquela problemática. Essa imagem de " especialista " tem como conseqüência um fluxo preponderante de clientes com queixas características daquele grupo, e, freqüentemente, a solicitação para que este profissional manifeste sua opinião - através de artigos, conferências, entrevistas, cursos - sobre seu campo de "especialidade.

Qual o sentido de se falar em uma "especialização" na psicanálise? Como podemos compreender aqueles psicanalistas que assumem, defendem e promovem um trabalho de "especialidade" psicanalítica em um certo campo?

Para compreendermos esta questão, é necessário considerarmos a constituição e o lugar atual do campo psicanalítico no Brasil, a formação do analista e de sua identidade, bem como analisar as implicações da suposta "especialidade" do psicanalista na clínica particular e institucional, as ideologias da etiologia, da cura e da escuta implícitas à noção de especialização, tanto dentro de uma perspectiva de trabalho transdisciplinar, como nas curas ditas "clássicas".

Psicanálise & Cia. no Brasil

As tendências à "especialização" no campo psicanalítico são sem dúvida herdeiras da própria história do movimento psicanalítico em nosso país. Porém, no âmbito de nossa discussão, não seria o caso de retraçarmos toda essa história. Cabe apenas lembrarmos alguns momentos de referência para situarmos nossa questão.

Desde muito cedo, a teoria freudiana despertou o interesse de alguns de nossos conterrâneos. Já em 1899, Juliano Moreira (1873 -1933), titular da cadeira de clínica neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina da Bahia menciona a seus alunos os primeiros trabalhos de Freud2. Em 1914 ele apresenta um trabalho sobre o método freudiano na Sociedade Brasileira de Neurologia, sendo em 1928 um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Psicanálise3 do Rio de Janeiro. Ainda na década de 1920 um outro grupo funda a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. Apesar de todas as turbulências, representadas tanto por questões clássicas ligadas à transmissão da psicanálise e a estrutura de poder da Sociedade, como o episódio em torno de Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas na década de 1980, como questões menos "clássicas", como o episódio do psicanalista Amílcar Lobo, ambas as sociedades continuam existindo até os nossos dias.

Em São Paulo, Francisco Franco da Rocha e Durval Marcondes fundam em 1927 da primeira Sociedade Brasileira de Psicanálise . Entre os membros fundadores, encontravam-se não apenas médicos de diferentes especialidades, mas também professores universitários. Na mesma época, sob os auspícios e as articulações de Ernst Jones, a International Psycoanalytical Association (IPA) restringia o acesso à psicanálise a não médicos. Apesar disso, em 1929, tanto a Sociedade Brasileira de São Paulo como a do Rio de Janeiro são reconhecidas pela associação internacional.

Gradativamente a Sociedade Brasileira de Psicanálise se alinhou aos padrões internacionais, principalmente quanto aos requisitos da formação, e uma certa predominância de médicos entre membros e candidatos. Porém, em São Paulo, pelo menos, persistiram ao mesmo tempo dentro desta Sociedade as marcas de suas origens. Em 1939, Durval Marcondes inaugura um curso de Psicanálise na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, abrindo espaço para aqueles que, fora da Sociedade se interessassem por esse campo.

Apesar desta abertura, em São Paulo, e também em outras cidades brasileiras, a formação e a prática da psicanálise foram até os anos 1970 uma atividade quase exclusiva dos membros das Sociedades oficiais.

Na segunda metade dos anos 1970, duas vagas, começaram a modificar o panorama psicanalítico brasileiro. A primeira, vinda do norte de forma gradual trazia em seu bojo a efervescência gerada pelo movimento lacaniano na França, sobretudo nas questões referentes à transmissão da psicanálise, à autorização do analista4 e o procedimento do "passe". A segunda, vinda do sul, trouxe os efeitos da imigração de um grande número de psicanalistas argentinos em fuga do regime militar daquele país. Esta vaga, mais abrupta e de efeitos imediatos, transpôs para o Brasil as querelas geradas que questionavam a estrutura e a formação no seio da Sociedade oficial de Psicanálise na Argentina.

A partir de então, o panorama da formação psicanalítica no Brasil muda de forma radical.

Em São Paulo, o Instituto Sedes Sapientiae passa a se constituir como um polo institucional de formação em psicanálise5. Um grupo de psicanalistas brasileiros, reunidos desde o início de 1974 em torno de Regina Chnaiderman, acolhe um grande número de psicanalistas argentinos trazendo em sua história e sua formação os efeitos das polêmicas geradas pelos movimentos Plataforma e Documento. Outros psicanalistas argentinos não se filiaram a nenhuma instituição, mas através de sua atividade clínica, de supervisão e de grupos de estudo passaram a constituir, quase que naturalmente, verdadeiras redes de formação.

Desde o final da década de 1970, um grande número de jovens psicanalistas brasileiros sentiu-se autorizado a realizar sua formação de uma forma "não institucional", sem entretanto deixar de reconhecer o tripé análise pessoal - supervisão - estudo.

A seus riscos e perigos, o "candidato-livre" ("selvagem", segundo alguns setores oficiais), na busca de sua própria autorização como analista, "autoriza" um certo número de pessoas a ocuparem aqueles lugares-chave em sua formação. Caberia então a essas pessoas permitirem a esse candidato a elaboração da demanda que lhe é endereçada e da dinâmica transferencial que dela resulta. Mesmo que recente, a história vem nos mostrando alguns desfechos positivos da "formação-livre", mas também alguns graves acidentes decorrentes deste processo, principalmente no que concerne à ética do analista. Este, muitas vezes solitário em seu percurso, sem um grupo que sustente alguns princípios básicos, é presa fácil de seduções e transferências não elaboradas (premeditadamente?), abandonando-se a práticas duvidosas que pouco tem a ver com a ética da psicanálise.

Da identidade à crise

Há cerca de 25 anos vimos observando em diversos países, e no Brasil principalmente, o aumento significativo de psicanalistas que se formaram e se autorizam sem qualquer vínculo com instituições psicanalíticas6.

A diversificação dos circuitos de formação, a abertura de suas estruturas e a multiplicação do número de profissionais que se definem atualmente como psicanalistas acabou produzindo uma imensa dificuldade para compreendermos a essência de suas atividades. A denominação "psicanalista" hoje em dia inclui uma grande diversidade de percursos de habilitação, de filiação institucional, de perspectivas teóricas e clínicas. Diante desse panorama, André Green pergunta: "Ser psicanalista em nossos dias, p'rá fazer o quê?"7. Esse título de artigo é um indício eloqüente do mal-estar, senão da psicanálise, pelo menos dos próprios psicanalistas: um mal-estar de sua identidade.

Tanto o psicanalista que se formou de forma "pluralista", como aquele que o fez em uma instituição "oficial" ou "oficiosa" demonstram atualmente uma grande dificuldade em definir o seu ofício. Muitos começam a pressentir, em seu foro íntimo, que não sabem o que são, nem o que os anima.

O que diferencia um psicanalista formado segundo os cânones da IPA de um outro formado no veio das escolas lacanianas, de um terceiro cujo percurso foi marcado pelo pluralismo? A referência teórica? O reconhecimento institucional? As figuras de transferência? A filiação? Poderíamos dizer que, finalmente, todas essas opções se prestam como respostas, mas podem também se revelar insatisfatórias.

A enumeração de diferenças baseadas nesses fatores pode ser uma estratégia paliativa que alivia e mascara seus conflitos, mas que não responde às inquietações mais profundas do desejo desse analista..

Da crise à "especialidade"

O desconforto gerado pelo mal-estar identitário do analista tem outros desdobramentos.

A dificuldade de encontrar um rosto para si mesmo repercute sem dúvida na dificuldade para que o outro distinga esse rosto em meio à multidão. Aquilo que, do ponto de vista da experiência subjetiva do analista, pode ser vivido como algo incômodo torna-se uma verdadeira questão econômica quando, em se tratando do sustento que ele deve tirar de sua atividade profissional, dificulta que este psicanalista seja conhecido, identificado e escolhido pela clientela que poderia vir a procurá-lo. Não podemos esquecer, afinal, que a proliferação de analistas, que descrevemos, tem como conseqüência um aumento da oferta de profissionais e serviços8, em outras palavras, um aumento da concorrência.

É óbvio que para além de questões de princípio, de teoria ou de clínica, a discussão que realizamos está completamente impregnada por questões ideológicas, e, sobretudo, econômicas.

A angústia suscitada pela experiência da fragilidade identitária do psicanalista combina-se então às dificuldades que esta experiência apresenta para seus pares e para o público em reconhecê-lo, diferenciá-lo, e sobretudo, escolhê-lo. A tendência à "especialização" representaria então, para alguns, uma tentativa de resposta "moderna e científica" para a superação dessa angústia e de suas conseqüências.

Da especialização impossível...

Talvez seja importante nesse momento reafirmar minha posição de que a postura de "especialista" é incompatível com a prática psicanalítica, seja ela particular ou institucional9.

A clínica psicanalítica se caracteriza por uma posição privilegiada de escuta, observação e descoberta do inconsciente. Considero que " o sintoma, seja ele psíquico, somático ou social, é um momento de " crise " (crítico), condensando em si ruptura e continuidade da continuidade (subjetiva, orgânica, social) rompida"10. O sintoma, a patologia, o contexto individual, institucional ou etário no qual o psicanalista exerce seu ofício são dimensões contingentes de uma prática que necessita de algumas referências para se situar e acontecer. O campo de trabalho do psicanalista (com psicóticos, neuróticos, drogaditos, pacientes que 'somatizam', crianças, adolescentes ou adultos) é apenas " um recorte, entre muitos, do campo de " acontecimentos " possíveis da vida de um sujeito, a partir do qual a dimensão pática se oferece à sua experiência. Parte de um todo da existência humana que traz em si condensadas tanto a estrutura como a essência desse todo ".

A tentativa de transpor a visão de especialização para o campo da psicanálise, instituindo "rigidez de fronteiras entre diferentes campos de conhecimento, por razões ideológicas ou de mercado" poderia ser uma maneira de garantir uma tranqüilidade, ilusória, "diante das transformações de nosso mundo e de nossa época", e, mais especificamente, do campo e do mercado psicanalítico.

O caráter que denominei contigente da prática do analista diz respeito a sua história pessoal, a sua subjetividade, é fruto de seu desejo. Cada situação determina enquadres e, estratégias clínicas específicas, cujo principal objetivo é tornar a relação terapêutica possível. De forma alguma eles definem a essência psicanalítica da situação.

O exercício da função analítica só pode se sustentar a partir da experiência possível, para o analista e para o paciente, na relação transferencial e contra-transferencial, e, através dessa relação, da possibilidade de transformação de ambos, a partir das descobertas de seus inconscientes.

É sem dúvida injusto afirmar de forma indiscriminada que todos os psicanalistas escolhem a via da suposta "especialização", como forma de "resolver" os conflitos referentes à sua identidade de analista

Sugiro porém que, para além das respostas que cada um de nós encontrou para essa questão, reconheçamos que essa tendência existe em nosso meio, e que talvez valha a pena tentar compreendê-la como fruto da psicopatologia do analista e de sua formação, e, nesse sentido, debruçar-nos sobre sua etiologia e seus efeitos tanto na prática analítica, como no mundo em que vivemos.

...à ilusão da "especialidade"

A tendência à "especialização" do analista é fruto de um duplo movimento. Por um lado, a tentativa de encontrar através de uma "especialidade" a possibilidade de aliviar a angústia suscitada pela dificuldade em definir sua identidade analítica. Por outro - em parte conseqüência do primeiro -, uma necessidade de diferenciar-se, situar-se e ser localizado no mercado de trabalho.

Observamos que, na existência social, só resta ao sujeito a possibilidade de existir entre a fragmentação - quando ele é fatiado ao ir ao fotógrafo, ao médico, à repartição pública, e tantos outros lugares - e a fusão no coletivo.

A angústia da desubjetivação, os conflitos de identidade não são um apanágio do psicanalista. Este porém pode contar com sua análise pessoal como um recurso para tentar elaborá-los e superá-los. Através das transferências que ele estabelece com seus professores, supervisores, analistas, colegas, e com a própria instituição, sua formação pode tanto favorecer a elaboração de tais conflitos e angústias, como dificultá-la através de mecanismos ortopédicos paliativos, que posteriormente revelam sua fragilidade. Neste caso, percebemos a emergência de um falso self analítico, que, como descreve Winnicott pode se manifestar através da submissão do sujeito à onipotência dos sucedâneos maternos, do estabelecimento de relações artificiais voltadas para a adaptação, e em última instância para a sobrevivência. Um falso self que tem como objetivo dissimular a fraqueza e a porosidade do verdadeiro self.

O contato com as angústias e as vivências primitivas de seu paciente são particularmente suscetíveis de mobilizar esses "núcleos porosos" da identidade do sujeito-analista, que, sem recursos suficientes para a elaboração dessas experiências, pode tentar lidar com eles através da intensificação de seu funcionamento falso self. O refúgio em uma "especialidade" pode ser um meio de tentar limitar o campo da experiência, principalmente através da promoção de enquadres, rotinas e estratégias padronizadas que visam sobretudo evitar a surpresa e o desconhecido, experiências inerentes a cada encontro com o paciente.

O discurso científico e o discurso acadêmico podem se prestar de forma exemplar a essa tarefa. O trabalho do psicanalista em uma instituição - de saúde, jurídica, educacional, e outras - ou na universidade lhe propicia um grande número de oportunidades para se deixar levar ou para adotar posturas ordenadas, categóricas, ortopédicas.

A "especialidade" do psicanalista na instituição

O modelo médico predominante em nossa cultura é o que melhor se presta como paradigma da postura especializada. A divisão do saber e do fazer médicos em especialidades favorece a fragmentação da relação com o paciente, já bastante rarefeita nesse contexto.

Colocado no lugar de "especialista" em psicopatologia, muitas vezes é difícil para o psicanalista ou psicoterapeuta superar essa atribuição de uma função especializada para revelar, por exemplo, que, mesmo quando os pacientes não apresentam traços psicopatólogicos evidentes, possa existir um sofrimento psíquico subjacente à queixa - orgânica, pedagógica, jurídica... - que os conduziu à instituição. Ou ainda, tendo como missão institucional cuidar dos pacientes, revelar que, muitas vezes, para que o paciente se cure, é necessário promover a elaboração dos conflitos da equipe que o trata, ou mesmo da família desse paciente.

Identificar-se imaginariamente com a representação social ou institucional de sua profissão, incorporar o papel de "especialista" que lhe é atribuído pela instituição e pelos pacientes, ou reivindicá-lo pessoalmente podem ser tentativas de lidar com os ataques freqüentes aos quais é submetida sua identidade analítica em meio institucional, ou com as fragilidades oriundas de sua formação.

A "especialidade" do psicanalista na clínica

Mesmo em seu consultório, num enquadre psicanalítico clássico, ele pode se deparar com esses mesmos dilemas. Limitar a atividade psicanalítica à clinica particular não é para o analista uma garantia contra os riscos de "especializar-se".

Freud carrega, uma grande responsabilidade pela ambivalência do psicanalista quanto ao caráter especializado de sua prática.

Não deixa de se espantoso que, justamente em um artigo dedicado a aconselhar os médicos que pretendam se dedicar à psicanálise, ele recomende "calorosamente aos colegas" que durante o tratamento tomem como modelo a conduta do cirurgião que "impõe silêncio a todos os seus afetos, inclusive à sua compaixão humana e concentra todas as suas energias psíquicas para um só fim: praticar a operação conforme todas as regras da arte"11.

Apesar de todas as suas ressalvas à atitude médica diante da doença e do paciente, Freud nunca deixou de acalentar a esperança de que sua ciência pudesse ser acolhida no meio médico. Que preço estaria ele disposto a pagar por essa aceitação? Que preço seus herdeiros pagam ou estão ainda dispostos a pagar para que o desejo de seu ancestral se realize?

Não é casual que durante décadas a maior parte dos candidatos e membros das sociedades psicanalíticas oficiais fossem médicos. A presença majoritária desse grupo, tributário do juramento hipocrático, era uma maneira de afirmar diante da comunidade científica a pertinência da natureza terapêutica do método psicanalítico e sua seriedade. Porém, essa concentração de profissionais formados segundo os padrões das escolas médicas muitas vezes favoreceu, e ainda favorece, que alguns encarem a psicanálise como uma especialização entre as muitas possíveis no campo da medicina, sem contar as influências desse fator na própria concepção e estruturação dos institutos de formação. Essas visões nem sempre seriam objeto de análise para o analista em formação, ou mesmo para a instituição psicanalítica.

No âmbito da formação, nas sociedades oficiais, o rigor (real ou imaginário?) dos processos de seleção, o investimento financeiro implicado na manutenção de análises, pessoais e didáticas, e de supervisões por um longo período de tempo, a submissão ao controle institucional durante a formação, as diferentes etapas de avaliação do candidato, e, finalmente, a obtenção do título de "membro" da Sociedade de Psicanálise sempre foram fatores iniciáticos, que, desde há muito tempo, favoreceram que alguns psicanalistas, formados segundo esse modelo, considerassem, implícita ou explicitamente, sua atividade como "especial", senão "especializada".

É real portanto o risco de que o psicanalista deslize ao longo de sua prática para posições em que se identifica imaginariamente ao lugar que lhe é atribuído como "especialista" do inconsciente, do complexo de Édipo, da sexualidade, da transferência, da subjetividade... É possível que também no consultório ele considere que o interesse particular por uma questão clínica ou a presença majoritária de pacientes com alguma característica comum configure sua atividade de "especialista".

A incarnação, permanente ou momentânea, desse suposto saber analítico deveria mobilizar esse profissional para uma reflexão sobre as características de sua formação, sobre suas identificações ao longo desse processo, bem como sobre seus grupos de referência e de pertinência. A impossibilidade de realizá-lo, e a conseqüente cristalização desta posição de "especialista" repercute, sem dúvida, na escuta, na transferência e na clínica desse profissional.

Os efeitos da "especialização" na escuta analítica

O risco que corre o analista "especialista", capturado pelas armadilhas narcísicas de sua formação e de seu contexto de trabalho, sem liberdade de crítica com relação aos mesmos, é de ignorar as diferenças de funcionamento entre si mesmo e o outro, entre sua prática e a do colega, diferenças fundamentais para permitir a emergência do inconsciente e da subjetividade. Dessa forma, esse analista abre mão de uma de suas principais funções, a de permitir um trabalho de "desintoxicação" da dependência criada pela captura pelos supostos saberes de tantos outros que, em nossa cultura, se oferecem sedutores para acolher nosso desamparo, e, como Morfeu, conduzir-nos pela noite de nossas existências para um sono, para alguns, eterno.
1 - Winnicott D., La localisation de l'expérience culturelle (1967). In: Jeu et réalité, Paris, Gallimard, 1975, p. 137.
2 - Chemouni J., Histoire du mouvement psychanalytique, Paris, PUF, 1990.
3 - A título de ilustração, as primeiras sociedades de psicanálise foram fundadas nos Estados Unidos em 1911, em Londres em 1913, na Hungria em 1920, na França em 1926, na Argentina em 1942.
4 - Vide a célébre frase de J. Lacan: "O analista se autoriza por si mesmo..".
5 - Chnaiderman, M. "Existe uma psicanálise brasileira?" Percurso, 20, 1998, p.19-28 Mezan, R., "Figura e fundo: notas sobre o campo psicanalítico no Brasil". Percurso, 20, 1998, p. 7-18
6 - A título de curiosidade, até muito recentemente, ao serem aceitos, os candidatos em formação da Sociedade Psicanalítica de Paris tinham que assinar um documento comprometendo-se a não se denominarem "psicanalistas" até que todas as exigências de sua formação fossem cumpridas e devidamente validadas pela Comissão de Ensino.
7 - Green A , Etre psychanalyste aujourd'hui, pour quoi faire? Revue Française de Psychanalyse, 58 (4), 1994, p. 1119-1126.
8 - Grupos terapêuticos e de estudo, intervenções institucionais, supervisões, atividades de ensino, etc.
9 - Volich R. M., O que há de fundamental nas (psico)patologias da mama ?, Trabalho apresentado no Laboratório de Psicoaptologia Fundamental da PUC - SP em outubro de 1997. Volich R. M., Fundamentos psicanalíticos da clínica psicossomática. In: Psicossoma II - Psicossomática psicanalítica, São Paulo, Casa do Psicólogo, 1998.
10 - Volich R. M., (outubro de 1997).
11 - Freud S., Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912), op. cit. vol XII, p. 154.