"Famílias incestuosas e a psicanálise: os desafios institucionais do Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual - CEARAS*"

Claudia Jorge Figaro

Resumo
O trabalho aborda as particulariedades e desafios de um trabalho clínico institucional, com abordagem psicanalítica, realizado com famílias incestuosas. Estas famílias são encaminhadas pelas Varas de Infância e Juventude dos Foros Regionais de São Paulo e devido a este aspecto há uma característica que distingue o Cearas de outras instituições que lidam com a problemática da violência sexual intrafamilial: sua vinculação com a justiça. São descritos o histórico, a estruturação e o modo de funcionamento deste centro e discutidos os aspectos referentes ao incesto, sua dinâmica na família e como estas questões podem ser compreendidas com uma escuta analítica e com os limites institucionais.

Inicialmente, gostaria de propor algumas indagações que servirão como base de discussão na articulação de algumas idéias sobre o atendimento clínico a famílias incestuosas. São elas: o trabalho analítico com estes pacientes pode ser realizado fora dos limites do consultório particular? Quais são as dificuldades e características desta outra proposta de atendimento que possui uma demanda encaminhada exclusivamente pela justiça?

A resposta à primeira pergunta é afirmativa, ou seja, é possível realizar um trabalho institucional com estes pacientes. Esta afirmativa decorre de minha própria experiência profissional no CEARAS - Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual através de minha atuação como psicóloga com formação em psicanálise.

O CEARAS começou a funcionar em julho de 1993 no Instituto Oscar Freire que compreende o Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho da Faculdade de Medicina da USP tendo minha participação como uma de suas organizadoras e co-fundadoras ao lado do Prof. Dr. Claudio Cohen, de outra psicóloga do departamento, Carla Segre Faiman.

Este centro foi criado com o propósito de estudar e compreender o abuso sexual intrafamilial - incesto - não somente no que se refere aos aspectos teóricos desta problemática, mas fundamentalmente na compreensão da dinâmica incestuosa de famílias nas quais ele tenha ocorrido de fato. Sendo assim, este centro fornece atendimento clínico em saúde mental em dois níveis: individual, para quem o praticou e para quem o sofreu e familiar, para todos os membros da família. Quando o incesto ocorre observamos que ele afeta, confunde, desampara, separa os vínculos familiares. Ninguém sai ileso. Na relação incestuosa há sempre alguém que a pratica e alguém que a sofre mas não podemos reduzi-la somente às pessoas diretamente implicadas. Uns podem ser mais ou menos atingidos, mas todos de alguma maneira testemunham consciente ou inconscientemente o que ocorre na família. Testemunham algo que deve ser mantido em segredo, um segredo muito bem guardado que aparentemente possui a função de continuar mantendo uma estrutura familiar que é fragilizada. Portanto, o incesto deve ser considerado como uma problemática fundamentalmente familiar e não individual.

No Cearas, a compreensão do incesto baseia-se nos pressupostos da teoria psicanalítica, ou seja, leva-se em conta as formulações freudianas sobre o inconsciente e a condição de recalcamento do desejo edípico como base da estruturação psíquica do indivíduo, bem como as possíveis conseqüências psicopatológicas que decorrem de falhas neste processo de subjetivação.

Este centro possui uma equipe coordenada por um psicanalista e psiquiatra, três psicólogas, uma assistente social e estagiários que cumprem um estágio anual de vinte horas semanais divididas entre o atendimento clínico, participação em reuniões de equipe, supervisões, grupo de pesquisa e grupo de estudo sobre a temática do incesto. A equipe conta ainda com a participação de uma supervisora externa à instituição que quinzenalmente supervisiona tanto os atendimentos clínicos quanto as questões que emergem das dificuldades do trabalho institucional .

Praticamente todos os integrantes deste grupo, seja os da equipe fixa ou estagiários, estão fazendo análise pessoal bem como uma formação em psicanálise. Alguns já fizeram este percurso teórico/clínico em instituições como a Sociedade Brasileira de Psicanálise, Instituto Sedes Sapientiae através de seu Departamento de Psicanálise e pelo C.E.P - Centro de Estudos Psicanalíticos.

Todavia, além de uma proposta de trabalho clínico baseado nos pressupostos da psicanálise, há que ser ressaltado um outro aspecto fundamental que caracteriza o Cearas que é sua vinculação com a justiça.

A maior parte das famílias que chegam ao serviço são encaminhados pelas Varas da Infância e Juventude de Foros Regionais da cidade de São Paulo pois há necessidade de que estas famílias tenham aberto um processo judicial ou pelo menos uma denúncia em delegacias para receberem o atendimento. E é este vínculo com a justiça que difere o Cearas de outros centros de atendimento que se preocupam com a questão da violência sexual.

No atendimento a famílias incestuosas não há possibilidade de um trabalho terapêutico ser feito se não houver dois trabalhos distintos: o da justiça e o da saúde mental. O Cearas prioriza sua atenção para a questão da saúde mental. Desta forma, nossa instituição não possui a função de fazer perícias ou constatar se de fato o incesto ocorreu ou não. Nossa preocupação gira em torno do tratamento, da compreensão do psiquismo das pessoas da família incestuosa. Cabe a justiça a função de investigação judicial dos fatos e a partir daí julgar apropriadamente cada caso.

Quando uma família incestuosa mobiliza-se no sentido de procurar algum auxílio externo, no caso a justiça, como uma tentativa de solucionar este problema, tal passo pode fornecer indícios de que esta família deseja um limite, deseja parar com este tipo de relação entre seus membros, mas não é capaz de realizar isto sozinha. A ocorrência de um incesto parece denunciar a falta, ou pelo menos, a falha no processo de recalcamento dos desejos edipianos fazendo com que uma pessoa quebre os limites geracionais e atue o incesto com um familiar.

Através da teoria psicanalítica sabemos que o recalcamento bem sucedido é resultado da renúncia que o indivíduo realiza de seu desejo incestuoso pelo pai e pela mãe afim de conseguir se identificar com uma das figuras parentais e estruturar seu superego. Todavia, sem o auxílio dos pais isto não é possível, uma vez que a colocação de limites nos filhos é primordial para que estes possam estruturar um psiquismo, aprender a diferenciar o certo do errado, tolerar frustrações, aprender a conviver com os outros e a se desenvolver como ser humano.

Quando uma família falha no processo de instauração da lei que proíbe o incesto, um outro agente externo deve cumprir esta função. Assim, o juiz atuaria como o "pai" que intercede neste núcleo familiar para que as relações incestuosas, pelo menos as concretas, sejam de alguma forma evitadas.

Portanto, para o Cearas o juiz que cumpre este papel a partir do momento em que toma algumas medidas imediatas de interdição e de prevenção como, por exemplo, separar os membros da família entre os quais ocorreu o incesto, buscar as provas, estabelecer visitas domiciliares feitas por assistentes sociais e encaminhar a família para tratamento.

Em situações de abuso sexual intrafamilial, não adianta apenas condenar o familiar abusador e mandá-lo para a prisão, pois esta pessoa também necessita de uma espaço terapêutico para que aos poucos possa tentar compreender o que aconteceu, perceber como se relaciona com os objetos, entrar em contato com seu mundo psíquico, com suas dificuldades, com suas fantasias, e se possível, tentar se relacionar de forma não abusiva com seus familiares.

Todavia, observamos que, na maior parte dos casos, estes pacientes não confessam que o fizeram pois sabem das conseqüências legais e sociais desta confissão. E uma das etapas fundamentais no processo terapêutico é o reconhecimento, por parte do paciente, do ato praticado e da inadequação do mesmo. Acentuo isto, pois em muitos casos são claras as evidências da ocorrência de incesto, e mesmo assim este fato é negado.

Há algumas questões relevantes sobre os desafios deste trabalho institucional, que é permeado por muitas variávies, a saber: ser um centro que funciona dentro de uma faculdade de medicina possuidora de uma tradição acadêmica mais organicista e menos humanística; possuir uma demanda proveniente de outra instituição, no caso a justiça e enfrentar as diferenças e dificuldades de um trabalho clínico com abordagem psicanalítica que não é feito em consultório particular.

A idéia de atender famílias incestuosas com uma perspectiva psicanalítica, dentro de uma instituição tradicional com a Faculdade de Medicina da Universidade São Paulo, é no mínimo ousada. Portanto, a própria efetivação do Cearas passou por algumas resistências e a instituição, de algum modo, teve que se adequar a atender e a conviver com pessoas que chegam com um problema em comum, qual seja, o abuso, a violência sexual, o incesto.

No início, as famílias que vinham receber atendimento, principalmente nas quais havia crianças, despertavam curiosidade, pena, revolta e indignação entre os próprios funcionários do departamento. Atualmente, o Cearas está totalmente integrado dentro do departamento e sua atuação se faz notar através da dificuldade da equipe em atender toda a demanda encaminhada, uma vez que temos uma lista de espera considerável. Além disso fazemos articulações com outras instituições que trabalham com a problemática da violência sexual doméstica e realizamos eventos científicos para que este tema possa ser debatido. Todavia, há que se ressaltar que este sucesso vem de um percurso de seis anos de trabalho.

Porém, a vinculação com a justiça acarreta desafios maiores e de certo modo permanentes, que diferenciam um trabalho clínico em consultório particular. Primeiramente, os pacientes não procuram ajuda psicológica de forma espontânea como acontece com a maior parte dos pacientes em consultório. No CEARAS é o juiz que determina o encaminhamento dos pacientes para atendimento e isto tem um peso considerável.

Porém, observamos um problema no que se refere a esta medida tomada pela justiça. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA - toda a vez que ocorrer algum tipo de violência ou de negligência por parte dos pais com os filhos, estes tem que se submeter a tratamento. No entanto, muitas famílias encaminhadas pelos fóruns acabam não chegando no CEARAS e nenhuma atitude mais radical é tomada no sentido de que se cumpra esta medida. Este aspecto mostra uma certa ambivalência na execução da lei, ela existe mas muitas vezes não se faz cumprir demonstrando para as famílias uma certa não "obrigatoriedade" do tratamento.

Não gostaria de me estender nesta discussão mas somente levantar esta particulariedade da lei que acaba gerando algumas indagações na equipe: porque estas famílias vem aos CEARAS; o que buscam através dos atendimentos; o que esperam que esta instituição, que não é a jurídica, possa efetivamente fazer por elas?

Alguns pacientes chegam com a finalidade de se tratar, conseguem perceber que estão com um problema e querem ajuda. Conseguem estabelecer um vínculo com a instituição e com o terapeuta, freqüentando regularmente as sessões e demonstrando um desenvolvimento psíquico no decorrer da terapia. O Sr. P é um exemplo disto. O paciente de 35 anos e sua família estão em terapia há nove meses, tendo uma freqüência extremamente assídua. Ele é pai de um casal de filhos de seu segundo casamento, e confessou na justiça ter praticado atos libidinosos com sua filha quando esta tinha por volta de 8 anos. Os atos libidinosos se resumiam em presenciar a filha se masturbando, ato este que o deixava extremamente excitado e que o levava a também se masturbar na presença dela. Porém sua atividade masturbatória era a imitação da masturbação da filha, na qual o Sr. P colocava as mãos fechadas entre as pernas e esfregava seu pênis, mas nunca o expunha. Sr. P vem de uma família na qual seu pai abusou de suas quatro irmãs e nunca foi denunciado; o próprio paciente sofreu abuso, quando criança por vizinhos da rua e por uma babá. Acabou se casando pela segunda vez com uma mulher que também sofreu abuso por um tio.

Sr. P quer se recuperar, acredita que possui uma doença e se culpa pela desagregação familiar, pois atualmente mora com seus pais e vê os filhos com dia e hora marcados. O paciente demonstra muita preocupação com o futuro da filha e se indaga se o abuso poderá lhe deixar seqüelas. Espontaneamente, procurou e freqüenta de forma assídua com a mulher, um grupo de auto ajuda com uma filosofia parecida com a dos Alcoólicos Anônimos, no qual os padrões de dependência envolvem questões sexuais e amorosas. Consegue perceber as diferenças do trabalho do CEARAS e deste grupo, este último servindo como um suporte no controle dos ditos padrões de dependência como por exemplo, a masturbação, o sexo e a dependência afetiva da mulher. Seus comportamentos compulsivos eram mais acentuados nos primeiros meses de terapia quando o paciente relatava que se masturbava todas as noites afim de dormir, mas que primordialmente precisava sentir seu pênis ficar ereto. Consegue associar livremente e se depara com questões transferenciais nas quais ele parece buscar na terapeuta uma mãe boa e orgulhosa das conquistas e seduções de um filho que fica muito frustrado e bravo quando não consegue atingir seu objetivo. O paciente possui uma sensação de abandono e desamparo em relação à sua mãe, que no início da terapia era descrita como uma pessoa maravilhosa e sem defeitos, mas que através de suas lembranças infantis ganha outro colorido e passa a ser percebida como negligente e ausente. O paciente diz que o fato da terapeuta não "passar a mão em sua cabeça" representa um aspecto positivo no sentido de mostrar-lhe alguns limites e o quanto é importante ter limites. Mostra-se muito sedutor e educado, trazendo sempre um tema a ser discutido e ressaltando o quanto a terapia tem lhe trazido benefícios e o quanto a terapeuta lhe mostrou outras formas de pensar. Também gosta de exibir suas histórias de performance sexual, relações extraconjugais, quantas vezes obtém orgasmo em uma relação. Mas ao lado disso, o grande fantasma que parece assombrar o paciente é a impotência, não só a sexual, mas o quanto se sente ou se sentiu impotente em outras situações de sua vida. A palavra e a sensação de impotência foram constates nos meses iniciais de atendimento. O terror da impotência também aparece na masturbação compulsiva já mencionada, no terror em não ver seu pênis ereto.

Acredito que estes elementos só puderam ser relatados e trazidos pelo paciente por causa de um bom vínculo terapêutico, pela sua capacidade de livre associação, pela transferência que tem sido trabalhada e principalmente pelo desejo do paciente em "se curar". Tal paciente destaca-se dos demais pois nem sempre os pacientes possuem estas capacidades ou se aprofundam em questões mais complexas no âmbito de um trabalho institucional realizado uma vez por semana.

Há outras famílias e outros pacientes que comparecem somente nas entrevistas de triagem, ou ficam apenas um curto período abandonando os atendimentos sem nenhum aviso. Nestes casos, parece que a justiça não representa nenhuma ameaça mais séria. Outras parecem permanecer justamente devido ao receio da justiça, ou seja, receio de que o juiz possa puni-los de algum modo.

A aderência à terapia muitas vezes torna-se um mistério. A revelação do incesto provoca uma tormenta familiar. Uns prefeririam manter este segredo até o fim; outros quereriam fazer alguma coisa mais não imaginavam o que estava por vir, como audiências, exames, advogados, juiz, separação de casais e de filhos de suas famílias, tratamento. Isto sem mencionar a complexidade de sentimentos como culpa, rancor, ódio, tristeza e o não conformismo que o incesto desperta entre os familiares. Todos se culpam, se acusam, esperam uma solução imediata para sair da crise. Assim, a necessidade da terapia parece estar entrelaçada a muitos fatores. Muitas famílias não tem a mínima idéia do que significa um atendimento psicológico, para que serve. Daí a importância de esclarecer as diferenças entre as funções dos profissionais da justiça e os do CEARAS.

E talvez este seja um outro desafio importante: como trabalhar estas diferenças com o paciente e entre as instituições? Os pacientes demonstram fantasias de que o juiz saberá tudo o que nos for dito em sessão, afinal de contas é para ele que as perguntas devem ser respondidas, que a verdade deve ser buscada. Garantimos aos pacientes o sigilo, mas informamos que ocasionalmente o juiz pode pedir um relatório com a finalidade de saber se a família está sendo atendida, se comparece ou não. Todavia, nenhum conteúdo de sessão lhe será informado. Tal posicionamento gera um conflito entre os profissionais do fórum e os profissionais do CEARAS, pois eles esperam que nós, de alguma forma, lhes forneçamos informações que serão decisivas no processo.

Quebrar o sigilo torna-se impossível em uma relação terapêutica, na qual a confiança é um dos pilares fundamentais. E a confiança é o aspecto mais difícil de ser conseguido com estas famílias, uma vez que ela é violentamente quebrada quando o incesto ocorre de fato, principalmente com quem o sofreu.

Como então estabelecer um vínculo de confiança com estes pacientes? Na minha experiência dos atendimentos com crianças e adolescentes que sofreram o incesto, observo que o silêncio nas sessões é um aspecto bastante comum. É claro que isto não é uma regra, pois há pacientes que apresentam de imediato uma facilidade de contato, facilidade em relatar espontaneamente o que ocorreu ou de utilizar voluntariamente o material gráfico e os brinquedos. Mas muitos pacientes permanecem numa atitude passiva, na espera de que alguma ação parta do terapeuta seja através de uma pergunta ou de um convite para realizar uma atividade em conjunto. Uns me olham fixamente sem piscar e outros não conseguem sequer me olhar ficando presos em algum ponto da sala. Alguns respondem verbalmente às minhas perguntas, outros fazem apenas um leve balanço com a cabeça e outros nem isso. Aos poucos estes comportamentos vão se transformando, na medida em que a desconfiança vai diminuindo. Me recordo dos meses iniciais de terapia de uma de minhas primeiras pacientes que havia sofrido maus tratos e abuso sexual praticados pelo pai. Estes meses foram permeados por um silêncio que parecia interminável, sendo seu único movimento o desenho de figuras humanas sem rosto, sem mãos, somente com o contorno da cabeça e do corpo, sem nenhuma referência a eles. Numa determinada sessão, estas figuras humanas incompletas dão lugar a um desenho geométrico, um aglomerado de quadrados coloridos que possuíam uma certa ligação entre si. Quando indago sobre o desenho, minha paciente diz que aquilo era um robô. Então peço para ela me contar uma história sobre aquele desenho que, inicialmente, ela não concorda dizendo não saber contar histórias. Mas, acreditando que aquilo pudesse ser um elemento significativo, proponho fazermos uma história juntas e desta vez ela concorda e escreve numa folha em branco "Era uma vez um robô..." Em seguida, me dá a folha para que eu completasse a frase mas acrescento somente conjunções, pronomes, advérbios e artigos que iam surgindo nas frases subsequentes. Juntas vamos escrevendo sobre o robô mas é a paciente que conta a história daquele personagem, ou melhor, a sua própria história, como ocorreu o abuso, como ela se sentia diferente dos outros, assim como o robô se sentia diferente de seus amigos da floresta, pois era feito de lata. Foram necessários vários meses de trabalho para que esse momento pudesse ocorrer e acredito que se efetivou pois houve a possibilidade de um vínculo de confiança que pôde atenuar, talvez, um sentimento de solidão e de descrédito que ela pudesse estar sentindo e de minha parte, por conseguir suportar a angústia daquele silêncio, estando com ela, esperando pelo seu tempo de falar. A partir desta sessão, as figuras humanas começaram a ganhar olhos, boca, nariz, cabelos, mãos, braços, enfim uma identidade. Esta paciente permaneceu em terapia durante dois anos nos quais ela pôde fazer escolhas e planos para sua vida pessoal.

Além da quebra de confiança o incesto gera confusão de papéis e ambivalência de sentimentos que não são características apenas do incesto entre pais e filhos mas também da relação entre irmãos que um dia já tiveram uma relação fraterna e que acabam se relacionando de forma sexual e apaixonada entre si. Uma família atendidas no CEARAS tinha uma história de incesto entre o irmão mais velho adolescente e a irmã que nasceu depois dele. Esta garota engravidou e teve um menino deste irmão que sempre rejeitou a criança não considerando-a um filho. Este rapaz, na época namorava outra moça que acabou engravidando dele, porém, esta segunda criança foi reconhecida como seu filho. Um terceiro irmão, também adolescente acabou exercendo a funções de pai do filho de seus irmãos, se preocupando com a criança e participando da terapia familiar. Esta criança, que já tinha por volta de três anos, chamava a avó de mãe. Todos moravam juntos na mesma casa com exceção da namorada e do segundo filho do rapaz. Portanto, podemos observar a grande confusão de papéis, de identidades, de funções que cada um desempenhava nesta família: mãe/avó; irmã/amante; irmão/pai; sobrinho/filho.

Assim, no incesto os papéis são trocados, isto é, crianças passam a ser vistas como adultas, pais tornam-se crianças, muitas vezes confundindo-se com os filhos. Meninas tornam-se mulheres, meninos homens e as relações familiares amorosas transformam-se em relações familiares apaixonadas, cúmplices, que podem despertar ciúmes e desprezo entre pais e filhos, irmãos ou outros familiares.

Deste modo, observamos que existem variantes estruturais dentro de uma mesma família. Este aspecto parece mais nítido no próprio atendimento em terapia familiar no qual os dois terapeutas precisam ficar atentos às muitas dinâmicas que ocorrem ao mesmo tempo, aos vários inconscientes que se manifestam, transferências múltiplas com cada um e com os dois terapeutas e às suas contratransferências em relação aos pacientes.

Eiguer (1995) define transferência em terapia familial como o "denominador comum das fantasias e dos afetos relacionados com a psique comum e com um objeto do passado familial, e referidos por deslocamento e por projeção ao terapeuta." (p.16). Eiguer (1995) compreende que há uma representação psíquica do grupo familial com um todo, mesmo que cada familiar empreste seus aspectos próprios e específicos. Ao terapeuta pode ser atribuído o "estatuto de pai fundador de uma moral " ou ao contrário, ser designado como o "perturbador de uma estabilidade ", estabilidade esta que serve como nutriente da inércia, costumes e crenças familiares e da onipotência que acaba por manter de forma fixa os papéis de cada um dentro do grupo (EIGUER, 1995). O autor vai mais além e sugere que a família ainda faz uma transferência de enquadre (fantasias e afetos familiais ligados ao horário, presença, pagamento, e enquadre material da sala) e uma transferência para o processo terapêutico (desejos, expectativas, esperanças e ceticismo quanto à evolução da terapia).

Como pensar nestas diversas transferências no atendimento institucional à famílias incestuosas ? O trabalho é extremamente complexo. A trama incestuosa é rígida, difícil de ser quebrada, pois justamente mantém uma organização fechada a qualquer tipo de influência ou de ameaça externa. O incesto auto sustém o grupo familiar. Sendo assim, as figuras dos terapeutas podem representar um incômodo nesta organização, uma vez que podem denunciar abusos de outra ordem praticados por outros personagens da novela familiar, a saber: a mãe ausente e não protetora dos filhos e que mostra ambivalência para acreditar na ocorrência do incesto, irmãos invejosos e vingativos para com o irmão que sofreu o incesto tirando-lhes todo o apoio e credibilidade. Quando o foco é deslocado para a dinâmica desta família, descentralizando a questão "abusador/ vítima" e possibilitando que os membros possam perceber estas nuances, acredito que a terapia ganha uma potencialidade maior para se desenvolver.

Já sabemos que o incesto não se restringe somente a quem o praticou e a quem o sofreu pois ele invade todas as relações familiares. Então, naquela nova família que se configura na terapia através da presença dos terapeutas, o incesto também não poderia ficar de fora. Há famílias que seduzem, tentam manter vínculos perversos com o par de terapeutas ou com um deles, tentam subverter papéis, funções no grupo. Outras ignoram os profissionais ou os querem apenas como voyeurs da cena familiar que se desenrola a cada sessão.

Portanto, a atenção deve ser constante, pois estas tramóias familiares podem encapsular o par terapêutico. Neste ponto podemos pensar em como se apresenta as contratransferências do par de terapeutas para com a família, para com cada membro e entre si. Ainda citando Eiguer (1995), este define contratransferência como o "conjunto de emoções, representações ou atos do terapeuta manifestando-se em resposta à transferência familial e geralmente à sua revelia: ou seja, inconscientemente." (p.38). Em muitas ocasiões, a violência entre os membros da família, seja ela explícita ou não, a meu ver, acaba se tornando um momento delicado e difícil de suportar para o terapeuta. Recentemente, em uma primeira sessão de terapia familiar, a mãe relata que o marido xinga a filha de cinco anos com quem praticou o incesto de "vagabunda", "preta" além de verbalizar que ela não é sua filha por não ser de pele clara como ele. Por um momento achei que a criança não ia suportar a repetição daquela hostilidade em terapia, mas concluí que era eu que não estava suportando aquele ódio explícito com aquela criança. Por todas estas dificuldades e complexidades do atendimento a estas famílias e a estes pacientes faz-se de fundamental importância que os profissionais estejam em análise e sendo bem supervisionados.

O trabalho institucional requer muito da equipe, não somente por todos os pontos até aqui abordados mas fundamentalmente pelas frustrações que se apresentam no dia a dia, como o abandono dos pacientes de suas terapias por dificuldades que são reais, como a falta de dinheiro para tomar uma condução ou por dificuldades que vão surgindo através do aprofundamento de algumas questões psíquicas com as quais estes pacientes não querem se deparar.

Concluindo, acredito ter delineado alguns dos desafios institucionais do CEARAS no que diz respeito ao atendimento de famílias incestuosas. A filosofia deste trabalho é nova enquanto proposta clínica representando portanto um desafio maior em termos de resultados e de metas atingidas. Daí a importância de interlocuções e sugestões de outros colegas profissionais para contribuir de forma efetiva no desenvolvimento deste centro.

Claudia Jorge Figaro
CEARAS - R. Teodoro Sampaio, 115.
São Paulo - SP
Fone 853.9677 r.124 .
E-mail ceiof@uol.com.br
* CEARAS - R. Teodoro Sampaio, 115. Fone 853.9677 r.124 . e-mail ceiof@uol.com.br

Referências Bibliográficas
Eiguer. A. Parentesco fantasmático. São Paulo. Casa do Psicólogo. 1995