Freud, a educação e as ilusões pedagógicas

Leandro de Lajonquière

Resumo:
Pretendemos assinalar a existência, no pensamento freudiano, de uma crítica constante ao ideário pedagógico à despeito das mudanças operadas no modelo pulsional. Mais ainda, aventamos a possibilidade de analisarmos os impasses próprios da educação atual à luz da análise freudiana das ilusões religiosas.

Freud tece seus primeiros comentários sobre a educação quando do estabelecimento de uma relação causal entre a moral sexual de sua época e o sofrimento psíquico. A educação é tida como o veículo da moral e, por conseguinte, toda crítica endereçada à dita natureza repressiva dessa última passa a alimentar a esperança numa reforma educativa. Os textos A ilustração sexual das crianças (1907) e, em particular, A moral sexual "civilizada" e a nervosidade moderna(1908) são, no geral, tidos como representantes desta primeira forma de pensar freudiana.

No entanto, a inversão radical, em 1920, da tese inicial acerca da etiologia neurótica na esteira da reformulação do modelo pulsional é vista por não poucos como a peça chave para entendermos aquilo que se denomina desilusão freudiana com respeito à possibilidade de uma reforma educativa à luz da psicanálise. Com efeito, se o conflito psíquico, fonte de padecimentos neuróticos, deixa ser visto como o produto da censura moral de uma época e passa a ser considerado como o efeito da irredutibilidade antinômica entre as pulsões de vida e de morte, então, a profilaxia mental, na esteira de uma reforma no ideário moral e educativo, revela-se impossível.

Dessa forma, sustenta-se que a esperança freudiana num reformismo social é inversamente proporcional ao pessimismo implicado na evolução da teoria. Assim, a última palavra de Freud sobre o assunto seria a Conferência XXXIV de 1932 onde afirma que o caráter "conservador" de toda educação é tanto inevitável quanto desejável.

Pois bem, nossa intenção não é questionar a irredutibilidade do mal-estar na cultura assentada sobre aquela do dualismo pulsional Eros-Tanatos -responsável pelo deslocamento da problemática indivíduo-civilização-, bem como a tese de que todo produto cultural -como por exemplo, tanto conjunto dos costumes sexuais quanto qualquer folclore educativo- está a serviço da operação estrutural de recalque psíquico, no lugar de serem contingenciais agentes repressivos. É óbvio que pretender tal coisa seria renunciarmos à herança freudiana. Mais ainda, está também fora de nossa cogitação endoçar as conhecidas confusões entre o processo analítico e o educativo que alimentaram não poucos emprendimentos de pedagogia psicanalítica.

Entretanto, pensamos que uma coisa é renunciar freudianamente a toda e qualquer idéia acerca da possibilidade de se encontrar um ponto de equilíbrio psíquico, graças à obtenção de uma suposta harmonia socio-educativa, e uma outra muito diferente é afirmar que tanto o próprio Freud renunciou de todo e qualquer "otimismo...humanista e reformista" (p.40) quanto que "tudo o que o pedagogo pode aprender da análise e pela análise é saber pôr limites à sua ação" (p.205), como faz, por exemplo, Catherine Millot (1979).

As investigações realizadas por Mireille Cifali (1982) sobre o contexto histórico-transferencial que toma conta do raciocínio freudiano, permitem falsear essa tese que sobrepõe de forma linear e mecânica as considerações freudianas sobre a educação às reviravoltas do modelo pulsional.

No entanto, parece-nos ser também plausível sustentar que o próprio Freud mantém uma atitude crítica com relação à pedagogia, mesmo após ter introduzido a noção de pulsão de morte e, portanto, de que mantém alguma esperença em que a psicanálise possa contribuir para uma reflexão sobre os ditos fundamentos da educação.

Na mesma Conferência XXXIV, Freud (1932a) afirma, por oposição ao ideário pedagógico hegemônico no início deste século, que a educação deve "buscar seu caminho entre o laissez-faire e a frustração" (p.3186), bem como que a "missão" da "educação psicanalítica" é fazer do educando um "homem sadio e eficiente" com vistas a que não acabe se colocando "ao lado dos inimigos do progresso" (p.3187). Ou seja, estabelece uma diferença substancial entre o que deveria ser o fruto da, assim chamada por Freud, "aplicação da psicanálise" e, por outro lado, a educação de sua época, implementada à luz de uma pedagogia de cunho religioso-moral. Nessa oportunidade, não faz mais do que recuperar a diferença já assinalada em O futuro duma ilusão (1927) entre, por um lado, a natureza "irreligiosa" da "educação para a realidade", promovida pela psicanálise, e, por outro, o "programa pedagógico" da época centrado na "demora da evolução sexual e a precocidade da influência religiosa" (pp.2987/8), responsável pela coerção da atividade e curiosidade intelectuais (cf.Freud;1907;1908;1910;1927).

A educação para a realidade adquire sentido por oposição àquela promovida pela pedagogia religiosa das primeiras décadas deste século. A realidade para Freud está longe de ser a dita realidade cotidiana e, portanto, o seu anseio não deve ser entendido num sentido psicológico-adaptacionista. Por um lado, cabe lembrar que essa proposição educativa está sobreposta à definição da educação, em si mesma, como sendo "o estímulo ao vencimento do princípio de prazer e a substituição do mesmo pelo princípio de realidade" (1911:1641) e, por outro, a realidade cotidiana, produto das ilusões religiosas, não é outra coisa que uma espécie de grande "neurose coletiva" -objeto de um futuro estudo sobre a "patologia das comunidades culturais" (1929:3067).

Assim sendo, educar para a realidade é sinônimo de educar para o desejo ou, se preferirmos, de educar com vistas a possibilitar o reconhecimento da impossível realidade do desejo, aquela que, precisamente, as ilusões religiosas mascaram.

Por outra parte, é possível apurar o teor da crítica à moral religiosa no contexto da análise freudiana acerca da impertinência de se considerar a teoria psicanalítica uma Weltanschauung particular. Em O problema da construcção do universo, Freud afirma:

"a religião...explica (aos homens) a origem e gênese do Universo, assegura-lhes proteção e gozo final nas vicissitudes da vida e orienta suas opiniões, bem como seus atos com prescrições que sustenta com toda sua autoridade. Cumpre, assim, três funções ... satisfaz a vontade de saber dos homens...mitiga o medo dos homens perante os perigos e as vicissitudes da vida...formula prescrições, proibições e restrições" (1932b:3193).

À continuação, sustenta:

" As exigências éticas, às quais a religião quer dar sustentação, demandam, pelo contrário, um fundamento diferente, pois são indispensáveis à sociedade humana ..." (1932c:3197).

Em suma, a crítica à religião não parece ser o reverso de uma ingênua esperança libertária, embora seja, como o próprio Freud confeçara ao pastor Pfister, um produto de sua condição de "herético e impio" (1909-1939:162). Ela parece focalizar de fato seu cunho justificacionista, isto é, obturador da mesmíssima dimensão ética do agir humano. Freud, por um lado, parece estar persuadido que, à medida que o homem obedece em nome de algum Deus, sua ação encontra justificativa numa realidade espiritual transcendente à vida social, bem como ganha uma certa certeza subjetiva. Assim, quando de suas mãos escorrega toda ilusão divina, torna-se possível a instalação da pergunta pelo desejo que anima seu ato e, por conseguinte, que venha a se perfilar no horizonte uma nuvem de incerteza espiritual ou inquietação moral. Por outro lado, Freud assinala não só a necessidade em si das exigências morais senão também de vir a lhes outorgar um outro "fundamento". De fato, acreditamos ser possível considerar a empreitada freudiana de substituir os motivos religiosos da moral por outros puramente terrenos (cf.Freud;1927:2982) como uma crítica a todo essencialismo ético, tendente sempre a recusar, como lembrara Lacan (1959-60), o caráter ex nihilo das criações discursivas morais ou, se preferirmos, a fragilidade inerente à existência artificialista do homen.

Embora cientes do caráter rico em nuanças, bem como espinhoso do debate religião-psicanálise e/ou ciência, consideramos ser possível observar que Freud não chega em momento algum a sustentar em nome da psicanálise a inverdade das doutrinas religiosas. Apenas, à medida que indaga a significação psicológica das mesmas, conclui que se trata de ilusões -isto é, crenças tanto não necessariamente erradas quanto improváveis de responderem aos cânones da razão científica da época.

Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que pretendia elucidar um aspecto em especial das doutrinas religiosas que, hoje, bem poderia ser chamado de fundamentalismo religioso ou de "fanatismo" (Souza;1994). Assim, caberia a possibilidade de se demarcar uma diferença sutil entre religiosidade e fundamentalismo -isto é, uma crença fora de medida ou de toda razão. Em suma, seria psiquicamente possível acreditar em doutrinas religiosas sem cairmos nas garras do fundamentalismo religioso ou, se preferirmos, no impasse próprio de um justificacionismo ético, seja ele religioso ou não. Como reza a letra de uma música popular latino-americana -"solo le pido a Dios que el futuro no me sea indiferente" (León Gieco)- o sujeito bem pode apenas pedir a Deus que não lhe tire sua própria responsabilidade pelo futuro, a possibilidade de se empenhar existencialmente num ato ou de vir a agir em nome do desejo. Dessa forma, porém num sentido inverso, um sujeito -no caso Sigmund Freud- bem pode ter a ilusão de que o futuro da humanidade seja desprovido de ilusões religiosas.

Nesse contexto, parece ser que a persistente crítica freudiana à educação da época não só não é a expressão de nenhuma espécie de cinismo sócioeducativo, bem como aponta ao aspecto central do ideário educativo hegemônico nas primeiras décadas -seu justificacionismo pedagógico, epifenômeno do fundamentalismo religioso que tomava conta da cultura, em particular a alemã.

A educação para a realidade, que Freud "iludiu", poderia ser pensada como uma educação além do justificacionismo pedagógico de cunho moral-religioso hegemônico na sua época. É provável que essa idéia tenha acompanhado Freud durante anos, pois consta que afirmou já em 1907: "A substituição do catecismo por um tratado elementar dos direitos e deveres do cidadão, como a implementada pelo Estado francês, parece-me um grande progresso na educação infantil" (1907:1248).

Dessa forma, Freud estaria esperando apenas que o futuro nos reserve uma "educação libertada das doutrinas religiosas" mesmo se ela não for capaz de mudar "notadamente a essência psicológica do homem" (1927:2991).

Nesse contexto, caberia afirmar que a crítica freudiana à pedagogia da época imbuída de certo fundamentalismo religioso pressupunha a possibilidade de uma educação à seca. Freud estaria criticando a educação pedagogizada religiosamente enquanto apostava numa humilde educação sem fundamento trascendental algum e, portanto na possibilidade de que o homem já adulto viesse a experimentar que "o mundo não é uma nursery", retomando sua célebre expressão. Ou em outras palavras, que mesmo que seja inevitével que a vida se sustente em ilusões, nada impede que o homem saiba inconscientente que elas são isso mesmo, ou seja, a marca do desamparo existencial e não indícios de nenhuma trascendência. Assim, quando uma ilusão se sabe ilusão fica resguardada a distância entre o seujeito e o registro dos ideais, que não é outra que a fenda mesma do desejo.

Entretanto, independentemente de que semelhantes suposições possam dar lugar a uma questionável "psicologia do autor", cabe observar que estamos persuadidos que na letra freudiana opera em filigrana uma diferença entre educação e pedagogia. Isto é, entre, por um lado, os efeitos subjetivantes ou formativos derivados para a criança de sua relação com os adultos e, por outro, o conjunto dos saberes positivos sobre uma suposta adequação entre os meios e os fins da educação. Mais ainda, pensamos que essa disjunção educação-pedagogia é capaz de elucidar também os impasses da educação de nossos dias.

A "educação" atual -em particular no império espiritual à moda yanqui- está impregnada, à diferença de outrora, de certo fundamentalismo psico-naturalista. A educação nos dias de hoje é pensada como o processo de estimulação metódica e científica de uma série sem fim de capacidades psico-maturacionas. Assim, reduzida, por um lado, a criança ser objeto de saberes psicológicos especializados e, por outro, as vicissitudes do ato de educar ao desenvolvimento de uma racionalidade didático-instrumental, acaba sendo improcedente que o adulto mantenha aberta a interrogação sobre o impossível em torno do qual se articula sua própria relação à criança.

O fundamentalismo psico-natural que alimenta o ideário pedagógico atual é, na mesma linha dos ganhos religiosos, capaz de erradicar a vontade de saber, bem como de mitigar o medo dos adultos perante os perigos e as vicissitudes da vida -escolar ou não- junto às crianças, à medida que formula prescrições, proibições e restrições sempre justificadas.

Porém, num ponto as ilusões psico-naturalistas de hoje ganham das religiosas do tempo de Freud no que diz respeito à educação: tornam o reconhecimento do desejo que anima o ato um fato de difícil acontecimento e, portanto, reduzem toda e qualquer instância ou práxis educativa a uma resignada prática psicopedagógica.

A insistência religiosa em dominar o desejo, como, aliás, toda empresa neurótica, não faz senão colocar, uma e outra vez, o sujeito numa mesma encruzilhada, qual seja aquela do reconhecimento de sua impossível realidade. Mas, embora a religião não recuse a realidade do desejo, ela condena o sujeito a reiteração do fracasso do recalque. Por outro lado, essa "neurose coletiva" que toma conta do mundo adulto alimenta, segundo Freud (1932a:3187), o risco das crianças virem, num futuro, a se colocar do lado dos "inimigos do progresso". Porém, a foraclusão do desejo, implicada nas ilusões psicopedagógicas atuais, da margem a que as crianças venham a adoecer de resignado cinismo.

Há, por definição, antinomia entre a natureza artificial do desejo e o justificacionismo moral, próprio de todas as ilusões pedagógicas. Mas, o fato de a pedagogia moderna estar embuída de um justificacionismo naturalista, ou seja, da certeza de que haveria uma adequação natural entre a intervenção educativa e o suposto nível psicológico da criança, implica em a foraclusão do desejo. Como Lacan o assinalara no seu Seminário dos anos 1959-60, trata-se da marca própria da espiritualidade cientificista atual, solidária de uma moral ao "serviço dos bens" e, portanto, antinômica à uma "ética do desejo".

Obviamente, tanto um quanto outro risco de fracasso educativo, ou seja, tornar-se ou um inimigo do progresso ou um cínico, releva um problema político. Assim, neste ponto, a psicanálise encontra seu próprio limite e o dever que acaba se colocando é, simplesmente, aquele de se agir no mesmo nível político do problema, conforme observara, de forma expressa, Maud Mannoni (1973). Por sinal, talvez, ela tenha, nesse ponto, sabido seguir Freud apesar de ele ter deixado em aberto a questão por ocasião da Conferência XXXIV. De fato, é factível que Freud tenha querido marcar uma precavida distância das posições de Reich. Mas, por que não pensar, também, que quando afirma que "não é missão do analítico decidir entre os partidos em pugna" uma vez que, por um lado, "toda educação é parcial" e, por outro, a psicanálise não está norteada por um fim parcial, Freud estaria, aquí, assinalando um limite intransponível para a psicanálise? (1932a:3186/7). Se, por ventura, assim fosse, então, chegados à beira do limite seriamos obrigados a deixar de analisar e, portanto, a tomar partido nas discussões de como virmos a colocar uma e outra vez o mundo no ponto justo, conforme certa vez alertara Hanna Arendt sob o título a "A crise da educação".

Leandro de Lajonquière
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