O Sintoma da Migração: pensando o rompimento com o lugar de origem

Suzana Souza Pastori

Resumo:

Trataremos neste trabalho da análise do fenômeno da migração. Abordaremos a constituição social da migração do interior da Amazônia para a cidade de Belém. As consequências deste processo apresentam a possibilidade de análise de um sintoma constituído a partir do vínculo com a condição originária. O sofrimento determinado por um certo rompimento com a origem erige defesas necessárias à sobrevivência psíquica, marcando uma certa especificidade subjetiva.

O interesse pelo fenômeno da migração surgiu a partir de minha chegada ao estado do Pará. A constatação de grandes conglomerados de migrantes que residiam e residem na cidade de Belém, vindos de vários pontos do estado e de outros vizinhos chamou-me a atenção. As razões para a vinda destas pessoas são comumente relacionadas a fatores sociais, econômicos, cujos registros oficiais nos falam da necessidade do comércio dos produtos do interior, da educação dos filhos e da saúde, e mesmo a pobreza e a falta de oportunidades de um modo geral.

Este trabalho procura pensar as causas da migração para além dos fatores apontados nas análises oficiais. Pretendemos apontar elementos que nos possibilitem uma reflexão sobre os determinantes subjetivos do fenômeno da migração e em particular dos migrantes amazônidas que se instalam em Belém.

A migração é uma característica da condição humana desde muito tempo. Possivelmente poderíamos dizer que é uma característica natural da espécie. Porém, nosso enfoque restringe-se ao proceso migratório determinado pela situação do homem no interior de um grupo social e especificamente pela necessidade de rompimento que a migração impõe.

A ligação à terra natal é um elemento visível, sobretudo para nós brasileiros que assistimos à maneira como diversos povos vieram nos habitar. A constituição de colônias de imigrantes europeus ou asiáticos em diversos regiões brasileiras, os quilombos e o sentimento de "banzo" que fazia morrer muitos africanos escravizados, são exemplos que nos permitem pensar na ligação com a terra natal. Talvez o exemplo dos escravos seja o mais significativo; muitos deles perdiam, assim que chegavam ao Brasil, seus nomes de origem e eram registrados com o nome do lugar de onde tinham vindo, que muitas vezes não era sua terra de origem, mas a cidade de onde tinham embarcado (Maestri Filho, 1984).

A significação da morte do pai

Este rompimento com o lugar de origem determina uma transformação na imagem de si, sobretudo pelo confronto com uma nova ordem social. A ligação que mantemos com este lugar de origem nos parece extremamente significativa por estar ligada a uma experiência fundamental; o afastamento físico deste lugar pode ter como consequência um acirramento dos vínculos, como o exemplo da formação de colônias de compatriotas e a preservação das tradições e dos costumes. O confronto com esta nova ordem parece intensificar a necessidade de preservar a diferença, marca da constituição subjetiva (o narcisismo das pequenas diferenças) (Freud, 1976c). A ligação a uma ordem social originária se constitui a partir das relações que a criança estabelece com as figuras constitutivas de sua subjetividade; o afastamento de uma ordem natural instintiva vivida pela criança reproduz, segundo Freud, aquilo que se passou a nível filogenético a partir do desenvolvimento da cultura humana (Freud, 1976a). A ligação a uma ordem social se dá por um processo de renúncia aos impulsos primitivos da sexualidade e da agressividade e pela assimilação da lei instituída a partir do parricídio primordial; a morte do pai impõe a constituição de uma lei que garanta o controle dos instintos. O desenvolvimento dos diversos grupos sociais se farão com base na perspectiva de reedição do parricídio originário, inicialmente com a constituição do sistema totêmico, e depois com as religiões (Freud, ibid). A ordem humana portanto é marcada pela significação da morte do pai e pela lei imposta a partir deste assassinato. A criança em sua experiência originária reproduz a vivência deste momento constitutivo. O desenvolvimento do aparelho psíquico é correlativo a esta experência: as figuras parentais exercem a função ao mesmo tempo de inibição dos impulsos primitivos e de internalização de um modelo: o id corresponde à herança da experiência de nossos ancestrais; o ego é a parte do id modificada pela ligação com o mundo externo; por ele estar ligado à percepção e à motilidade, é percebido como a projeção da superfície corporal; o superego se forma pelo abandono e a identificação às figuras parentais que impõe ao ego a imagem de um modelo a ser seguido (Freud, 1976b).

As características de cada grupo humano se faz, portanto, com este objetivo de reeditar e ressignificar esta ordem constitutiva do humano. E é a partir desta ligação com um grupo que cada ser humano desenvolve as características de seu ser no mundo. A trajetória que Freud inicia com Totem e Tabu parece encontrar um desfecho em Moisés e o Monoteísmo. Neste último, ele nos apresenta uma perspectiva de construção do caráter do povo judeu a partir da significação que a figura de Moisés adquire como fundador da religião judaica (Freud, 1976d). E é sobretudo aí que Freud desenvolve a idéia dos determinantes na constituição da origem de um grupo humano. Nos interessa marcar uma passagem particularmente significativa para nossos propósitos que encontramos neste texto grandioso. A partir do êxodo do Egito e do encontro com algumas tribos da região midianita, foi fundada na cidade de Cades, a religião do deus Javé. Neste encontro do povo migrante semita com as tribos midianita, Freud nos aponta para a construção gradual de uma experiência significativa vivida pelo povo semita quando de sua saída do território egípcio; o que pouco a pouco vai se delineando é a experiência do êxodo, a circuncisão e a relação com Moisés que o constituiu como povo escolhido. A hipótese do assassinato de Moisés pelo próprio povo semita e a de sua nacionalidade egípcia são os elementos que irão compor a experiência mítica da reedição do assassinato do pai e a constituição da religião monoteísta. À religião do deus Javé vai sendo incorporada a experiência do povo migrante; elaboração da morte do pai e de seu desejo que os transformou em povo eleito de Deus. A marca da circuncisão marca a diferença em relação aos demais povos e os estigmatiza pela proximidade com a castração. Todas as características que Freud irá formular acerca do caráter do povo judeu serão feitas a partir daí.

O confronto do migrante com uma nova terra e uma nova ordem intensifica de ambos os lados reações defensivas em relação a este outro diferente. Esta diferença é vivenciada como ameaça por não estar submetida a uma mesma lei paterna; ao controle que esta submissão determina. Do lado do povo migrante há uma intensificação do desamparo original e uma ameaça de aniquilamento e desintegração. Melman nos fala do processo de histericização como consequência da migração; segundo ele, há uma "produção da histeria na medida em que o movimento migratório supõe uma passo fora da filiação" (Melman, 1992, p.75). Desta forma, o migrante viveria "a complexidade de ter que servir a dois senhores" (Ibid, p.77). Por outro lado, temos que considerar que a constituição deste encontro do povo migrante com o povo autóctone (na ausência de outra palavra) desencadeia a necessidade de preservação, de uma forma ou de outra, dos elementos da experiência originária. No caso do povo semita, para Freud , a figura de Moisés foi reconstruída muito tempo após sua morte, por força da intensidade da experiência vivida a partir do êxodo do Egito.

O amazônida e a experiência originária

Retomando agora a questão dos migrantes amazônidas; procuraremos rastrear os determinantes e as consequências desta passagem do universo da vida no interior da Amazônia para a metrópole comercial e industrial. Nossa primeira hipótese é de que esta passagem, além das questões econômicas que geralmente estão aliadas ao processo migratório, se dá por uma necessidade de mudança na imagem de si; a designação pejorativa do termo "caboclo" com o qual se fala do povo do interior apresenta a construção de um elemento negativo. O migrante em Belém dificilmente fala de sua experiência vivida no interior. O abandono do interior parece romper com uma experiência muito antiga, cujas raízes podem ser encontradas na história oral e nos registros etnológicos, realizados por antropólogos. Estes trabalhos falam de crenças e tradições da cultura popular dos quais podemos apontar alguns aspectos significativos; as religiões e a medicina popular falam do poder das plantas e dos animais,e da ligação do homem com a natureza (Maués,1990 e 1995). Por outro lado, a experiência da pajelança cabocla, que é assim chamada para distingui-la da experiência indígena da pajelança, institui na figura do pajé ou curador um certo conhecimento não só dos efeitos de plantas mas de uma certa experiência humana que envolve a relação entre as pessoas, a relação do homem com a natureza e com o sobrenatural. O sincretismo da pajelança cabocla nos apresenta já uma certa forma de resistência. Na região do Salgado, no nordeste paraense, a história do rei D. Sebastião, que foi filho de D. Manoel (rei de Portugal na época do descobrimento do Brasil) fala do desejo de um filho (Sebastião) que ao herdar o trono de seu pai, quer também, como seus ancestrais imediatos, realizar feitos grandiosos (como a conquista da navegação, as descobertas do mundo novo, do Brasil). D. Sebastião se aventura pelo norte da África numa batalha infundada com os mouros. A batalha de Acácer-Quibir que se realizou na segunda metade do século XVI e que teve como consequência, além da morte do próprio rei, a queda do domínio português para a corôa espanhola, que assim permaneceu por 60 anos. O trabalho de Maués e Villacorta (1998)nos diz que esta história gerou em Portugal uma lenda de caráter messiânico, onde o rei retornaria para salvar seu povo do domínio estrangeiro; esta lenda chega ao Brasil e continua exercendo influência. Na tradição da pajelança, o rei D. Sebastião não morreu, mas se "encantou", e habita um mundo sub-aquático de onde um dia sairá para salvar seu povo e reinar soberano. O encante, lugar de morada do rei Sebastião no nordeste paraense, apresenta a idéia de um lugar que permanece aquém da superfície, como um universo soberano. A aparição da princesa, filha do rei e sua história de encantamento causa medo e fascínio aos habitantes da ilha de Maiandeua; este sentimento parece manter o respeito pelo lugar do encante, o lago da princesa, estabelecendo desta forma uma relação do homem com a natureza e o sobrenatural, herança de uma experiência primitiva.

O que se passa quando o vínculo com esta condição primitiva parece que se rompeu? Quais serão as consequências em termos de equilíbrio social e psíquico para aquele que parece recusar esta experiência originária, ou que, de certa forma, não apresenta as marcas necessárias de preservação desta imagem primeira?

O processo da migração determina um rompimento com o lugar de origem e a absoluta necessidade de elaboração da perda. A recusa em falar ou a necessidade de negar seu vínculo com qualquer experiência desta ordem parece-nos num primeiro momento estar ligada a algo como a castração.

Quando tivemos a oportunidade de conversar com alguns migrantes, procuramos indagar a respeito das causas da migração, as razões que haviam motivado a vinda para Belém. O que aparecia eram questões relacionadas à saúde e à escolaridade dos filhos. Porém, quando procurávamos saber mais alguma coisa a respeito da vida no interior, o silêncio era constante; havia uma espécie de desconfiança que nos pareceu como estranheza em relação à própria pergunta. Ficamos com a impressão de que havíamos nos aproximado de algo que necessitava permanecer escondido. Embora possamos encontrar algumas raízes antigas que nos apontam para a constituição psíquica, o que parece determinante aqui é o efeito do confronto a partir da migração. O ideal de modernidade imposto pela vida na metrópole e a exigência de ser moderno apresenta certas consequências no sentido de uma homogeneização subjetiva. A única forma de pensar esta idéia de um si próprio parece ser este arremesso para o futuro que encontra no processo de globalização um ideal identificatório (Souza, 1997). A experiência migratória aponta para um passado impossível de ser dito; possivelmente este registro permanece aquém da experiência da linguagem, ao nível do sensível, do que não tem espaço de existência no universo da modernidade.

Os olhos de Violeta e a significação da morte

O sofrimento de Violeta vem do confronto com o olhar de uma mulher desconhecida; a inevitabilidade deste olhar aprisionou-a num registro onde ela não mais se reconhece. "Quero saber quem eu sou, repete Violeta com a angústia de quem perdeu os referenciais de sua existência; acho que quem está fazendo isto comigo é alguém que já morreu. Olho no espelho e vejo uma pessoa má que é capaz de cometer atos ou mesmo prever acontecimentos trágicos que se sucedem. Se meus pais fossem vivos eles poderiam me entender..." A desintegração dos referenciais a partir do fascínio mortífero do olhar do outro é um momento de ruptura. Porém, a impossibilidade de compreender suas atitudes e mesmo seus desejos agressivos, ainda encontram uma ancoragem na lembrança dos pais mortos que poderiam compreendê-la; referência a um outro mundo. Assim também é sua suposição de que quem está fazendo isto com ela é alguém que já morreu. A lembrança dos pais é o vínculo que a liga à possibilidade de ser compreendida a partir de um outro lugar. A elaboração da morte é o que tornaria possível a compreensão do domínio do olhar do outro sobre o corpo de Violeta.

Esta passagem de um pequeno fragmento do caso de uma paciente do serviço público, em Belém, que como tantos outros deixaram o interior onde nasceram, permite-nos uma reflexão. A compreensão do sofrimento humano tem uma tradição na cultura popular; a passagem do interior para Belém exige um rompimento com esta tradição e a necessidade de erigir outros suportes identificatórios.

O fenômeno do rompimento, a necessidade da recusa ou negação do passado constituem sintomas. Sua existência aparece através da sensibilidade sintomática do sofrimento corpóreo, expressão de feminilidade, como este horror captado pelos olhos de Violeta e suas consequências mortíferas pela impossibilidade de ser inteligível. A significação da morte, por onde construimos um lugar de existência possível, aparece na ligação de Violeta aos pais mortos, neste pequeno fio que a liga à vida. O elemento que parece permanecer ausente de representação provém de uma herança antiga, onde os mortos encontram um lugar. O lugar de morada do rei D. Sebastião e sua filha princesa é o encante, onde habitam aqueles que desapareceram, mas não morreram. A permanência viva dos mortos no encante permite a construção de um sentido possível para o indivíduo amazônida, assim como para a angústia captada pelos olhos de Violeta.
Bibliografia
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