Prevenção ou antecipação?

Claudia Mascarenhas Fernandes Rohenkohl


A prevenção é uma demanda insistente do corpo social. Esta demanda desvela o fantasma: intervir a tempo do evitar o indesejável. Essa característica "futurologista" da prevenção a torna uma prática contraditória para a psicanálise. Seria possível, do ponto de vista da psicanálise, falar em prevenção? Em caso afirmativo, como poderia a psicanálise realizar conecções com profissionais de outras áreas que trabalham com a prevenção?

Por que será o trabalho com a criança e mais especificamente com o bebê tem suscitado tanto este debate sobre a prevenção? Se existe uma idéia no imaginário dos profissionais que para prevenir é bom que "se chegue cedo", esse "mais cedo" foi cada vez mais se aproximando do bebê e suas dificuldades: um mal a ser cortado pela raíz. Deveria se inibir causas de "patologias" que aparecem no bebê, logo, se existe uma população de risco esta seria genuinamente a infância. Existe, portanto, uma relação intríseca, da prevenção com o ideal, como bem aponta Vorcaro1, retratando o incômodo social gerado pela infância quando esta não incarna o ideal de uma promessa2.

Este trabalho é fruto de reflexões sobre a noção de prevenção, sobre a razão da sua acentuação no trabalho com bebês e, pretende investigar portanto, se existe uma outra noção do tempo no corpo da própria psicanálise que possa contribuir para o debate.

Vou , para tanto, resumir quais seriam os pontos do debate entre psicanálise e prevenção, agudizados pelo trabalho com os bebês.

A ação de pre-venir é a de "chegar antes", é querer mirar o futuro mas se apoiando no passado. Leva em consideração os noções de previsão e probabilidade e está inseparável de uma dimensão política. Podemos dizer que a partir desta rápida definição, tanto a previsão, a probabilidade ou a dimensão de uma política em saúde mental não se enquadram num trabalho com o inconsciente, com o "imprevisível" , impossível de conjecturar. Porém a prática da psicanálise é o próprio limite da prevenção. Freud, a seu modo, não se eleva contra uma profilaxia e por diversas vezes questionou a posssibilidade da psicanálise ajudar neste campo. Porém, falava disso remetendo os educadores a fazerem análise.

Como a psicanálise pode falar em pre-venir se o tempo com o qual trabalha é do só-depois?3

A prevenção para a psicanálise não seria então uma prevenção ao avesso ?

A prática analítica ensina que existe um agente subjetivo, por que não dizer subversivo, à prevenção. Por mais planejado e calculado que seja a estratégia de uma prevenção existirá sempre um ponto, uma questão, um aspecto que irá escapar, já que o real, o impossível de ascedermos e que insiste em se repetir, trará sempre a dimensão de que nenhuma prevenção dará conta dele. Segundo Veronique Eydou, "a prevenção aparece como uma modalidade de resposta ao real". Ou seja, tentamos a cada dia nos protejer e nos prevenir das contingências das irrupções deste real. Complementa a autora que mesmo que os objetivos da psicanálise não sejam preventivos, o homem tenta se prevenir a cada instante do real e isso o sujeito tráz em análise, mesmo que a posição do analista não seja a de tranquilizar e nem de consolar.

Os psicanalistas, portanto, estão sendo solicitados cada vez mais para atuar junto a profissionais que trabalham com a prevenção.

Certamente, como analistas, não deveríamos recuar ante uma demanda que insiste também porque tráz uma faceta desta dimensão do real. Orientados por uma ética de um discurso que não se pode ceder, os analistas estão atuando em instituições e em políticas públicas de saúde. E desta forma têm que se responsabilizar, ou seja, têm que responder, por uma prática fora do setting analítico, e a prevenção entra neste sentido, como mais uma reflexão a ser realizada pelos analistas que aí se debruçam.

Especificamente em relação a associação entre pequena infância e prevenção, no seio da própria psicanálise, existem dois trabalhos que merecem destaque: o de Françoise Dolto e o de Marie Christine Laznik.

Francoise Dolto foi uma das primeiras psicanalistas a falar em prevenção com a pequena infância4. Após trabalhar com crianças psicóticas e autistas, inventou a Maison Vert que tem como um dos seus objetivos a prevenção. É uma espécie de creche, onde os pais ou acompanhantes podem também frequentar. Existe um psicanalista sempre para escutar se dirigir a esses pais e seus bebês. Dolto deu uma definição simples e importante de prevenção em psicanálise: "prevenir é atender alguém quando este precisa". Porém, deste modo ela não fundamenta a razão de se falar em prevenção com os bebês. Ou melhor, "prevenir é atender alguém quando este necessita" não justifica, como propõe com a Maison Vert, a necessidade de uma ação preventiva na pequena infância, pois, esse "necessitar" poderá ocorrer em qualquer época da vida. Essa definição, apesar de atraente pela coerência com um pensar analítico, não expõe a problemática que a prevenção aponta para a psicanálise: a de um "saber prévio" sobre um mal a ser tratado "a tempo".

Outra definição de prevenção em psicanálise com bebês vem de Laznik5. A autora preconiza uma prevenção do autismo através da detectação de dois sinais: um não olhar da mãe ao seu bebê sobretudo se esta não se dá conta disso e a não instauração do terceiro tempo do circuito pulsional. Define a autora: " Fazer prevenção, neste caso, quer dizer intervir na relação do Outro com a criança. Eu considero que a sindrôme autística clássica é uma conseqüência de uma falha no estabelecimento desta relação, neste laço sem o qual nenhum sujeito pode advir".

São duas situações distintas, mas que confirmam a insistente necessidade do corpo social em demandar uma prevenção, a primeira trabalhando com educadores e a segunda com médicos. Em ambas definições da prevenção, que são extremamente justas por terem sido advinda da clínica de cada uma das autoras, o que intriga é que continuamos sem uma noção psicanalítica que dê conta deste aspecto de uma intervenção que subverta a própria noção de tempo normalmente trabalhada pela psicanálise. Acredito, portanto, que o cerne da polêmica sobre a prevenção em psicanálise está agregado à noção do tempo, pois, o tempo do só-depois se tornaria incompatível com uma visão preventiva em psicanálise, mesmo, em se tratando de crianças.

Pois, tratam-se de duas lógicas diferentes ( a formal e a do inconsciente), e de dois discursos distintos ( um de dizer o Bem e outro do Bem dizer6) portanto, de duas realizações excludentes. Excludentes porque, se o primeiro sabe o que será o Bem para o indivíduo, o segundo definitivamente não irá trabalhar com "esse ideal", realiza uma criação a partir do enigma do dizer.

Do meu ponto de vista, existe um equívoco em pensar que é por se tratar de bebês que uma prevenção de imediato ocorre, pois, mesmo neste trabalho, não existe garantia nenhuma que essa intervenção seja "preventiva". O conceito de prevenção torna-se, deste modo, naturalizado como garantia. Inicialmente vemos que temos que realizar, para tratar da prevenção, uma separação entre a "garantia" e a "intervenção". Ou melhor não se tem como garantir sobre uma intervenção em psicanálise, o psicanalista realiza sim uma aposta: "aí existe inconsciente"7 , ou no caso específico, "um sujeito que daí poderá advir".

Segundo Kartz, a psicanálise tem algo a fazer com a prevenção no sentido de levar os profissinais a se darem conta, num encontro inédito, de um gozo que ainda não se tornou sintoma. Continua a autora, é trabalhando com o inconsciente que poderá contribuir com a prevenção questionando-lhe seu caráter de "toda poderosa", que faz uma "caridade moralista". Tornar a prevenção uma questão, interrogar sobre seus os ideais, o poder e a tentativa de controle evocada na prevenção, pode ser uma contribuiçào da psicanálise. Portanto, este malentendido também não impede que os tabalhadores da prevenção sejam tocados pela lógica do inconsciente.

Deste modo um analista têm muito o que "se deixar fazer"8, abrindo um espaço de possibilidade para a escuta das repetições, das atuações, e das "decepções" instigadas pela não apreensão completa do real, que podem por ventura ocorrer num trabalho preventivo. Mas de que forma ? qual o conceito analítico que embasaria essa prevenção ao avesso?

O termo "prevenção ao avesso" vem ao nosso encontro por tratar a questão do tempo para a psicanálise: o seu maior impasse em relação a prevenção. E do mesmo modo ainda precisamos de um conceito analítico que dê conta da noção de tempo para pensar essa prevenção ao avesso. Aqui reparto com vocês uma construção a partir do trabalho que realizo com os bebês e de supervisões que realizo com profissionais de outras áreas.

Em psicanálise Lacan desenvolveu a noção de antecipação: precipitação do sujeito diante do Outro.

Vamos retomar a noção do tempo para dizer que este não se restringiria, segundo Porge9, a um tempo do só-depois 10. Além das dimensões da sincronia e da sucessão, Lacan acrescenta a pressa. A pressa surge neste tempo entre duas escanções: o possível atraso do sujeito caso não conclua imadiatamente e a precipitação de sua certeza ante o "ele terá querido assim". Unindo lógica e tempo, ele aponta duas escanções que tem o "valor de significantes e que verificam a precipitação do sujeito em concluir na pressa, num momento de eclípse em que , percebendo um tempo de atraso de seu raciocínio em relaçào aos outros, ele tem medo, caso não conlua imediatamente, caso se deixe ultrapassar pelos outros, de não mas ter sua certeza. A certeza do sujeito é impelida por um ato de asserção de certeza antecipada

No só-depois verifica alguma coisa que é atingida antes mesmo de poder ser verificada: é a verificação da antecipaçào da verdade". Conclui o autor: "há um hiato irredutível entre a verdade e sua verificação, hiato que se reduz à dimensão temporal da pressa".

No estádio do espelho , um dos primeiros textos que Lacan se refere ao termo de antecipação, ele relata: "o estádio do espelho é um drama onde o impulso interno se precipita da insuficiência à antecipação". Mas é preciso chegar até o texto "uma resposta a Daniel Lagache" para que ele possa veicular neste esquema imaginário e iusório da formação do Eu na antecipação de sua imagem pelo outro, um simbólico. Ou melhor, se inicialmente na obra de Lacan, a antecipação é da ordem do imaginário, realizada pela gestalt de uma ilusão da imagem do corpo fragmentado, neste segundo momento existe também uma antecipação simbólica. A função da pressa no estágio do espelho é decisiva11. Quando o sujeito antecipa aquele que designa como eu, há uma relação do sujeito com o Outro através deste tempo : "ele terá querido". Essa pressa se constitui neste tempo de adiantamento possível em que o sujeito se precipita em concluir para compensar seu atraso eventual.

No momento de concluir o objeto "apressado" toma o lugar do objeto "a" (olhar) do qual o sujeito dependia. O objeto "a" cai na falha entre o que é supostamente visto pelo outro e o que o sujeito afirma, despreendendo-se dessa suposição12.

O que diferencia a prevenção definida como uma resposta técnica, suposição da promoção de um conhecimento, um savoir faire de especialista, é esse tempo que a psicanálise pode conceitualizar de uma antecipação que instaura a pressa diante da falha entre as escanções: o que supostamento outro vê e a afirmação a partir de uma suposição do sujeito relativa a esse "ele terá querido" assim.

Portanto, a pressa instaura um outro tempo para a psicanálise: o tempo da suposição entre a preciptação e sua verificação. Assim os profissionais da prevenção podem, através da psicanálise, trabalhar com esse tempo da "pressa", sem que este se torne o tempo de uma adivinhação, o tempo de uma concordância generalizada, ou mesmo, o risco maior da predestinação sobre a criança, da realização, sem que o saiba, do seu próprio imaginário.

Saberiam que atuam entre sua suposição diante do que outro vê e o que afirmam como resposta deste outro. A psicanálise, portanto, ajudaria a uma ação preventiva disseminando sua praga: uma admissibilidade do real e uma constatação do furo no Outro; tanto no trabalho com os bebês ( como suporte e precipitação do transitivismo à antecipação, tema do meu trabalho no Encontro Nacional sobre o bebê), quanto com os profissionais ( instigando a pressa de uma certeza antecipada, com todo o rigor que o trabalho psicanalítico com o real propõe). E é isso que propicia uma ação, uma deliberação desvinculada do olhar do Outro.

E-mail: claumfr@uol.com.br



1 Vorcaro, A criança na clínica psicanalítica.
2 Ideal de promessa é uma promessa de felicidade para quem cuida da criança, relacionado muito mais à tentativa de completar seu narcisismo perdido. Ver Martine Lerrude
3 O tempo do só-depois inicialmente serviu a Freud para explicar os sintomas histéricos. Ou seja, somente na Segunda cena, ocorrida na adolescência, existia uma resignificaçào da primeira cena ocorrida na infância.Este tempo do só-depois foi generalizado mais tarde por Lacan para servir de esquema espliactivo da significação, somente depois de finalizarmos uma frase que temos sua significação. Dicionário de psicanálise.
4 Seminário de psicanálise com crianças.
5 Laznik, Marie Christine. Os psicanalistas que trabalham em saúde pública. Apresentação para o congresso Trata-se uma criança, Rio de Janeiro 1998.
6 O discurso do dizer o Bem consolida a oposiçào bondade e maldade e também se destina a um Bem supremo. O discurso do bem dizer é regido por uma ética do dizer sob o enigma erótico e amoroso do que une e desune um homem e uma mulher. Ver Phelippe Jullien, Le manteau de Noe, essai sur la paternité.
7 Lacan seminário dos quatro conceitos da psicanálise.
8 Quarto tempo da pulsão: seminário de Ivete Vilalba em São Paulo
9 Porge, verbete sobre o tempo, em dicionário de psicanálise.
10 O início de uma frase só encontra sua significação quando ela se encerra.
11 Porge, idem...
12 Porge idem...