Considerações sobre o conceito de mobilidade na cultura brasileira e seu papel na introdução da psicanálise no Brasil

Jeremias Ferraz Lima

1:00: Introdução

Visto de um vértice brasileiro, o progressivo desenvolvimento das teorias em psicanálise a partir de Freud criou um campo de idéias tal que se assemelha a um emaranhado confuso em que conceitos se misturam, fenômenos clínicos de mesma natureza são tratados com nomenclaturas diversas, novos conceitos são formulados sem que se articulem com aqueles já estabelecidos, gerando, assim, várias decorrências. A primeira delas é desencadear nos alunos que se iniciam no processo de transmissão um estado de verdadeira perplexidade ao entrarem em contato com o grande manancial de idéias com os consequentes posicionamentos técnicos observados no campo. Uma outra, é produzir um engajamento dos analistas em uma ou outra teoria principalmente a partir de resíduos transferenciais para com o seu analista ou supervisor possibilitando, com muita fequência, o aparecimento de um posicionamento rígido chegando perigosamente às portas do dogmatismo que obstrui a curiosidade científica e a capacidade de formular questões, contribuindo para o avanço da ciência. Finalmente, surge com muita frequência a questão posta à psicanálise brasileira de imitação dos modelos estrangeiros ou criação de produção original.

Assim, apesar de reconhecermos no campo da psicanálise atual a existência de pontos de contato entre os conceitos, as várias tendências que coexistem hoje apontam no sentido de uma grande diversidade do ato de psicanalizar. A ausência de delimitação destes campos teóricos nos coloca a necessidade de criar um instrumento epistemológico que nos permita organizar o campo teórico da psicanálise procurando diferenciar as várias teorias, estabelecendo os elementos que sustentam sua coerência interna e desenvolvendo um método que nos possibilite compará-las entre si, observando suas aproximações e seus afastamentos.

Neste sentido, uma primeira pergunta se impõe: como se desenvolve a psicanálise? Uma das reflexões iniciais, e que representa a forma através da qual propomos uma entrada no problema, foi formulada quando consideramos que a América Latina comporta-se principalmente como uma "importadora de teorias psicanalíticas", num trabalho apresentado em 1984, juntamente com outros co-autores, ao XV Congresso Psicanalítico da FEPAL, em Buenos Aires, a respeito das correntes atuantes no pensamento psicanalítico na América Latina. Posteriormente, em 1993, numa monografia apresentada ao XIV Congresso Brasileiro de Psicanálise, no Rio de Janeiro, ao examinarmos as relações da psicanálise com a filosofia trabalhamos com a hipótese de que determinadas formas de concepção do indivíduo sustentam a produção teórica em psicanálise, influindo de forma decisiva na sua prática.

Uma contribuição que parece-nos excepcionalmente rica em argumentos e sugestões é aquela desenvolvida pelo psicanalista uruguaio Ricardo Bernardi que, partindo exatamente de uma proposta de pensar o desenvolvimento da psicanálise na América Latina, sugere o emprego do conceito de paradigma proposto por Thomas S. Kuhn para caracterizar as distintas formas de ver e pensar a psicanálise em seu desenvolvimento (XXXV Congresso Internacional de Psicanálise, julho de 1987, Montreal).

Kuhn, por sua vez, propõe, dentro de uma perspectiva histórica, pensar o desenvolvimento das ciências a partir da estrutura das revoluções desencadeadas na pesquisa científica pela ação do que ele denominou paradigmas. Para ele, as ciências não têm um desenvolvimento linear, com um crescimento por acumulação, conforme parece constar dos compêndios acadêmicos, mas, sim por rupturas paradigmáticas e, a princípio, conceituou como sendo "paradigmas, as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência" . Porém, um exame mais minucioso da obra de Kuhn nos coloca diante da questão de abordagens mais amplas ou abordagens mais restritas do emprego deste conceito, por si mesmo, paradigmático no campo epistemológico.

Bernardi, examina em seu artigo a interpretação do sonho do Homem dos Lobos na abordagem original de Freud, e compara-a com as observações de Melanie Klein, no capítulo 9 de sua Psicanálise da Criança, e com as de Leclaire, num artigo de 1958 sobre um episódio psicótico vivido pelo paciente em 1923. Conclui em favor de uma posição que acentua a descontinuidade e a ruptura das diversas abordagens, considerando cada uma delas como paradigmática. Argumenta neste sentido, ressaltando a existência de muitos termos comuns nestas três observações, designando, entretanto, conceitos díspares (instinto, pulsão, inconsciente, repressão, Ego, Édipo, etc.), além de conceitos que não encontram correspondência de uma teoria para outra (significante, Outro, nome do pai, posição, continente, etc.). Neste sentido, consideramos que Bernardi utiliza uma abordagem restrita do conceito de paradigma. A discussão sobre a adequabilidade ou não do emprego do conceito de paradigma às idéias psicanalíticas merece, contudo um exame mais aprofundado que será feito oportunamente.

O fato é que hoje podemos francamente estabelecer diferenças nítidas entre algumas tendências do desenvolvimento da psicanálise pós freudiana. Não temos dúvidas em atribuir a Freud a autoria de criação do que chamamos "campo da psicanálise", e que determinados conceitos fundadores deste campo são definitivos além de condição para reconhecê-la como ciência com objetos próprios. Entre estes conceitos, destacam-se aqueles que constituem a sua Metapsicologia e que obedecem às vertentes econômicas, topográficas e dinâmicas. Pretendo que fique claro, muito embora não possua pretensão de discutir este assunto nos limites desta monografia, que considero como "mito fundador" a idéia que Freud elaborou os conceitos psicanalíticos no seu "esplêndido isolamento" e que estes conceitos são "universais". O fato é que o desenvolvimento da teoria pulsional determina uma diferença entre Freud e os demais e marca uma característica de sua obra que proponho ser compreendida dentro de um Paradigma Pulsional. sendo impossível desvincular a emergência deste paradigma da concepção de indivíduo vigorando ainda na cultura austrio-alemã nos finais do século XIX que é o Romantismo alemão.

A questão pulsional também está presente no pensamento de Melanie Klein, porém, a nosso ver, com formulação bem diferente daquela feita por Freud. A reflexão sobre as relações de objeto e o conceito de Posição na obra kleiniana determinam uma diferenciação e dão identidade a esta formulação. Da mesma forma, o desenvolvimento das idéias de Melanie Klein principalmente na Inglaterra, deve-se às características culturais próprias deste pais, como nos assinala Sérvulo Augusto Figueira quando diz que "...a psicanálise britânica traz no seu cerne a marca de valores britânicos típicos e historicamente muito fortes como o empirismo, a privacidade e a valorização da infância como chave da vida adulta" Este desenvolvimento configurará um paradigma que denominarei Pulsional-relacional.

O desenvolvimento proposto por Hartmann e sua Psicologia do Ego tem seu eixo na forma peculiar pela qual ele toma o conceito de narcisismo introduzido por Freud, passando assim a estabelecer uma formulação original a partir das relações de objetos no Ego. O solo fértil para a acolhida das idéias de Hartman e seus colaboradores é o contexto do ambiente científico e cultural dos Estados Unidos no qual o positivismo constitui a filosofia predominante, sendo a postura oficial universitária e do ambiente científico em geral. Apesar das primeira contribuições da Psicologia do Ego terem sido feitas na sua fase européia, o contato com a cultura americana representou uma influência muito grande no desenvolvimento destas idéias em virtude do interesse destes psicanalistas em encontrar uma linguagem que pudesse ser compreendida neste contexto cultural do positivismo pragmático, desenvolvendo o que eu proponho denominar Paradigma relacional.

Finalmente, a proposta de Lacan surge na França, como uma possibilidade da psicanálise vencer a longa oposição da cultura francesa à sua introdução, de uma forma bastante peculiar: Lacan propõe um retorno a Freud e, neste sentido, ele se confessa freudiano; porém lê um Freud alemão com as lentes do estruturalismo linguístico de Saussure e do estruturalismo cultural de Levy-Strauss, retornando de Freud "à francesa" e definindo um paradigma bastante particular e original no campo psicanalítico que eu denomino Paradigma da estruturação do sujeito.

Assim, o Paradigma Pulsional, ao se difundir na Europa e Estados Unidos sofre modificações significativas em sua estrutura determinando a formação de novos paradigmas que vão guardar relações profundas com as concepções de indivíduo predominantes em cada uma destas culturas.

Entre nós, no Brasil, a difusão da psicanálise se deu de forma diferente. Encontramos aqui a coexistência dos quatro paradigmas que ainda hoje são cultivados (ou "cultuados", se quiserem) sem que haja a produção de um paradigma local. Seguindo a linha de raciocínio esboçada anteriormente, a produção de um novo paradigma está relacionada a uma reação da cultura local ao paradigma que está sendo difundido. Neste sentido, a cultura brasileira não teria reagido à entrada de nenhum dos paradigmas psicanalíticos, mas à todos acolhido generosamente. A questão que proponho examinar na presente monografia indaga sobre a constituição e especificidade da cultura brasileira e as relações que esta estabelece com a difusão da psicanálise entre nós. Que particularidades culturais irão permitir uma difusão como a observada no Brasil?

Destacarei o conceito de mobilidade que, ao lado de outros aspectos que não tratarei aqui, me parece significativo e útil para estabelecer uma aproximação entre cultura e psicanálise brasileira na obra de autores consagrados que nos ensinam a refletir o Brasil: Gilberto Freire em Casa Grande & Senzala e Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e Caminhos e Fronteiras.

2:00 - A Mobilidade.

A Mobilidade destacada por Gilberto Freire no caráter português é uma categoria central em sua análise em Casa Grande & Senzala. Ela constitui um dos elementos do "luxo de antagonismos" deste caráter que se expressa, no geral, pela idéia de "vago impreciso, - como um rio que vai correndo muito calmo e de repente se precipita em quedas de água" - no pensar do crítico e historiador inglês Audrey Bell. O outro elemento que estabelece com a mobilidade o par antagônico é exatamente a estabilidade que vai ser encontrada na própria fixação do português na casa-grande de engenho e na criação da face original e surpreendente do seu imperialismo nos trópicos: sua atividade agrária e sedentária, em oposição à sua presença mercantil na Ásia e na África, e o desenvolvimento do patriarcalismo rural e da monocultura latifundiária e escravocrata. É nesta casa-grande - e na senzala como um de seus apêndices não só arquitetônico como também cultural - bem como na cultura que se desenvolveu em torno dela que vamos encontrar a melhor expressão do caráter brasileiro no seu início de formação. Isto evidencia o fato de que, ao apontarmos para a mobilidade como um dos elementos centrais de Gilberto Freire em sua análise, estamos considerando a sua importância face à estabilidade, de tal maneira que a ênfase sempre irá recair no antagonismo inerente e constituinte desta análise.

A gênese desta mobilidade entre os lusos, Gilberto Freire vai encontrá-la na sua indecisa formação étnica e cultural, como um povo indefinido entre a Europa e a África:

Nem intransigentemente de uma nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sob a européia e dando um acre requeime à vida sexual, à alimentação, à religião; o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura, o ar da África um ar quente, oleoso, amolecendo nas instituições e nas formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao Cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, à disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando mas sem governar; governando antes a África.

É esta indecisão étnica e cultural que irá dotar o caráter português, não de um tipo determinado, mas do "luxo de antagonismos", tornando a gente portuguesa de uma mobilidade, de uma plasticidade, de uma adaptabilidade tanto social quanto geográfica estupenda, que irá ser identificada nestes grandes navegadores e cosmopolitas do século XV. Esta característica será, na análise de Gilberto Freire, o segredo da vitória portuguesa, suprindo com extremos de mobilidade e miscibilidade a escassez de pessoas, dominando espaços imensos quer na África, Ásia ou América.

Uma outra manifestação da pujança e força colonizadora da mobilidade dos portugueses, bandeirantes e missionários, iremos encontrar nas reflexões de Sérgio Buarque de Holanda em Caminhos e Fronteiras, quando aponta para a vocação dos habitantes do planalto da capitania de Martim Afonso para o "caminho que convida ao movimento" . Não podendo contar com o negro africano, em virtude das grandes distâncias, o recurso destes portugueses foi embrenhar pelos sertões inóspitos e desconhecidos em busca de braços indígenas que pudessem atender às demandas de trabalho escravo, ou de gentios à espera da catequese. Iniciou-se, assim, uma nova dimensão desta mobilidade na conquista e colonização do interior do país. Uma dimensão que, ao lado daquela já descrita nos portugueses pela sua própria condição ibérica, poderia ser denominada mobilidade horizontal, dada suas características geográficas e atendendo a uma demanda de expansão territorial.

Um outro tipo de mobilidade, que poderíamos denominar de mobilidade vertical (ou mobilidade cultural, ou ainda mobilidade social) vai estar implícita no conceito de fronteira que este autor nos traz:

"Fronteira, bem entendido, entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até idiomas heterogêneos que aqui se defrontavam, ora a esbater-se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou simbióticos, ora a afirmar-se ao menos enquanto não a superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelados mais ativos, mais robustos ou melhor equipados.

Este tipo de mobilidade, levou Sérgio Buarque de Holanda a destacar a grande flexibilidade e adaptabilidade dos portugueses comparando-as com "a consistência do couro, não do ferro ou do bronze, dobrando-se, ajustando-se, amoldando-se a todas as asperezas do meio" Isto se faz notar, como demostra extensamente Sérgio Buarque de Holanda na adoção, por parte dos portugueses, de elementos e técnicas utilizadas pelas populações nativas, tais como técnicas agrícolas (uso do pilão, do chuço) hábitos alimentares (mandioca, milho, caça e pesca, bebidas), hábitos culturais (o uso da rede; uso das trilhas indígenas em suas primeiras incursões à pés descalços pelo interior; uso de utensílios , como samburá, jacá, xuã;) e a adoção da língua geral, durante todo o século, XVII e inícios do século XVIII que resultou na incorporação pela língua portuguesa praticada no Brasil de um rico vocabulário de origem indígena.

Esta mobilidade cultural, como nos informa Gilberto Freire, vai estar também presente no contato dos portugueses com os negros africanos, através, não somente da miscigenação, como também pelas influências, principalmente oriunda de elementos bantos e sudaneses, da língua, hábitos religião, agricultura, atividade pastoril e arte. Por outro lado, deve-se registrar a mobilidade dos negros dentro do sistema casa-grande/senzala na medida que subiam para prestar serviços na casa-grande um vasta gama de indivíduos - amas de criar, mucamas, malungos, muleques de criação - ao lado das mães-pretas que ocupavam lugar de destaque não só no seio das famílias por suas funções de substitutas das mães, incapazes, por tão novas, de atender às exigências da maternidade, mas como agente de transmissão cultural e de constituição da brasilidade.

Uma outra expressão desta mobilidade, evidenciada na ordem das idéias e das classe sociais, vai operar ao lado da ação persistente do sadismo do conquistador em relação ao conquistado, Ela vai se manifestar nos interstícios das classes sociais e nas diferenças que vão marcar as elites das classes populares. Esta relação esta está expressa, como analisa Gilberto Freire, na tradição conservadora no Brasil, pelo sadismo do mando, disfarçado em "princípio de Autoridade" ou "defesa da Ordem". Este mando, mantido a ferro e fogo pelas elites dominantes, é quem determina este equilíbrio, que entre nós , emoldura a vida política, científica e cultural. No entendimento de Gilberto Freire,

... o equilíbrio continua a ser entre as realidades tradicionais e profundas: sadistas e masoquistas, senhores e escravos, doutores e analfabetos, indivíduos de cultura predominantemente européia e outros de cultura principalmente americana e ameríndia. E não sem certas vantagens, as de uma dualidade não de todo prejudicial à nossa cultura em formação, enriquecida de um lado pela espontaneidade, pelo frescor de imaginação e emoção do grande número e, de outro lado, pelo contato, através das elites, com a ciência, com a técnica, e o pensamento adiantado da Europa

Este tipo de mobilidade, correndo paralela à estabilidade das relações sociais, coloca a elite brasileira em permanente disponibilidade para com a cultura européia, resultando naquilo que, na reflexão de Sérgio Buarque de Holanda, se traduz num sentimento de "sermos desterrados em nossa própria terra" . Saudosa de um passado que não viveu, e submissa a uma ordem diante da qual sempre se sente inferior, terceiro mundista, ou "caipira", esta elite procura nas identificações, nos comportamentos e nas idéias, algo que pareça "culto", que, para ela significa "europeu". Esta questão será de grande importância para nós ao analisarmos, na próxima sessão, a introdução da psicanálise no Brasil. Estas características da elite brasileira foram percebidas com muita sagacidade pelo Conde de Gobineau, ministro da legação diplomática francesa no Brasil em 1869. O Conde, que tinha seus poucos momentos de alegria e descontração entre nós nas conversas informais com o imperador Pedro II, disse certa vez, ao ser indagado por seu interlocutor imperial sobre o que pensava dos brasileiros: "O brasileiro é um homem que sonha viver em Paris" .

Todavia, é nas classes populares, que poderemos observar o produto da cultura européia em interação com a indígena, amaciada pelo azeite da mediação africana, sem a qual dificilmente teriam se entendido tão bem. Aí, de uma forma diferente, vamos encontrar os efeitos desta mobilidade vertical, nos fáceis e frequentes acessos a cargos e a elevadas posições políticas e sociais de mestiços e filhos naturais, bem como a grande dispersão das heranças, e a grandes possibilidades de mudança de profissão e residência.

Procuramos demonstrar, portanto como a mobilidade contida no caráter português, forjada que foi pelo passado étnico-cultural ibérico, transplantada para o Brasil irá se constituir num dos principais elementos de uma nova ordem cultural. Passemos agora, à tarefa de identificar, na introdução da psicanálise no Brasil, a ação desta mobilidade como elemento propiciador, facilitador, e responsável por uma forma original de difusão.

3:00 - A mobilidade na introdução da psicanálise no Brasil

As notícias sobre as pesquisas e o método terapêutico desenvolvido pelo médico vienense Sigmund Freud chega ao Brasil nos fins do século XIX. Tem-se informações que Juliano Moreira, inovador da psiquiatria brasileira, em 1899, faz uma conferência em sua cátedra na Faculdade de Medicina da Bahia em que se refere às idéias de Freud. No Rio de Janeiro, Genserico Aragão de Souza Pinto escreve e defende uma tese de doutorado em 1914 intitulada Da Psicanálise-A sexualidade das neuroses, constituindo-se no primeiro trabalho escrito sobre psicanálise em língua portuguesa. Em São Paulo, Franco da Rocha faz, em 1919, uma preleção intitulada O delírio em geral, em sua cátedra na Faculdade de Medicina, onde dedica grande espaço aos comentários sobre as idéias de Freud para a compreensão do delírio, dos sonhos e da criação artística, e em 1920 lança o seu livro O Pan-sexualismo na doutrina de Freud.

Assim, em vários pontos do Brasil, a psicanálise passa a ser tema referido por professores de medicina e psiquiatras durante a década de 10 e de 20. Podemos citar, no Rio de Janeiro, Antônio Austregésilo, José Joaquim de Campos da Costa Medeiros e Albuquerque, que era jornalista e político além de membro e presidente da Academia Brasileira de Letras, Maurício Campos de Medeiros, Júlio Pires Porto-Carrero, Deodato de Morais, Carneiro Ayrosa, Murilo de Campos, Gastão Pereira da Silva; em São Paulo, Franco da Rocha, Durval Marcondes,, Osório Cesar; Em Salvador, Artur Ramos de Araújo Pereira, Hosannah de Oliveira, Lages Netto, Estácio de Lima e Luiz Rogério; em Porto Alegre, João Cesar de Castro e Martin Gomes; em Recife, Ulisses Pernambucano.

Existem notícias de um início de clínica psicanalítica desenvolvida por alguns precursores do movimento psicanalítico brasileiro, como por exemplo a Clínica Psicanalítica da Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1924 por Júlio Pires Porto-Carrero no Rio de Janeiro, ou de Durval Bellegarde Marcondes que em 1925 inicia sua clínica psicanalítica privada em São Paulo. Todavia, a maioria destes precursores limitaram-se à divulgação e comentários das teses psicanalíticas sem estabelecerem vínculos com a instituição que, a partir de 1910, data de fundação da Associação Internacional de Psicanálise (IPA), passou a coordenar o movimento psicanalítico internacional. Entre todos os precursores, o único a se tornar pioneiro da psicanálise brasileira foi Durval Marcondes.

O início da burocratização do movimento psicanalítico internacional promovido pela criação da IPA terá importância fundamental na profissionalização dos analistas brasileiros influindo decisivamente nos rumos que ela passa a tomar entre nós. Em 1925, no congresso da IPA de Homburgo estabeleceu-se as condições da formação de analistas através da adoção pela IPA da "formação tripartida" adotada no Instituto Psicanalítico de Berlim, onde foi introduzida por Max Eitingon em 1920. Esta formação constituía-se da análise pessoal do aluno, participação nos cursos onde tomavam contato com a incipiente produção teórica psicanalítica e a condução de duas análises supervisionadas por analistas mais experientes. A exigência da análise pessoal e na supervisão de casos, será decisiva para promover no Brasil uma grande movimentação de psiquiatras e outros interessados de acordo com as normas internacionais definidas pela IPA. Identifico neste momento uma primeira manifestação da mobilidade, como constituinte da tradição brasileira, na instalação da profissionalização da psicanálise entre nós. Esta mobilidade (mobilidade horizontal) é expressa não somente pela mudança de psiquiatras brasileiros para o exterior na busca de formação bem como nas idas e vindas de analistas, além da trocas de correspondência entre analistas e membros da direção da IPA, estabelecendo gestões no sentido de conseguirem a imigração de analistas europeus para o Brasil com a finalidade de procederem à formação dos interessados.

Após se inteirar dos critérios definidos pela IPA no tocante ao modelo de formação psicanalítica, Durval Marcondes, inicia uma correspondência ininterrupta com os funcionários da IPA no sentido de trazer um analista didata para São Paulo. A primeira oportunidade concreta surgida foi em 1932 com a concordância de René Arpad Spitz de mudar-se da Alemanha, onde era membro de DPG, para o Brasil fixando-se em São Paulo. René Spitz, que em 1911 tinha feito sua análise didática com Freud, aguarda a correspondência com as últimas instruções para sua imigração. Todavia, a deflagração da Revolução Constitucionalista, toda a correspondência para o exterior é proibida. Em virtude da demora da resposta brasileira, Spitz vai para Paris e em 1938 muda-se para os Estados Unidos, onde vai trabalhar em sintonia com a Psicologia do Ego.

Em 1934, Durval Marcondes recebe uma correspondência do presidente da IPA, Abraham Arden Brill na qual informa que alguns psicanalistas judeus ou liberais antinazistas, de grande reputação profissional se dispõem a vir para o Brasil ou outro país da América do Sul. De posse desta carta, Durval Marcondes procura as autoridades educacionais estaduais pensando na possibilidade de vincular os possíveis imigrantes a alguma universidade. Não conseguiu, todavia, o apoio oficial tão importante para esta oportunidade de iniciar a formação psicanalítica em São Paulo.

A insistência obstinada de Durval Marcondes em sua correspondência com analistas não foi, contudo, infrutífera. Parece que, as aspirações brasileiras sempre eram lembradas tão logo algum analista europeu se manifestasse com interesses emigratórios. Assim, no Congresso Psicanalítico Internacional de Mariembad, em 1936, Ernest Jones, então presidente da IPA, ao se inteirar do desejo da Dra. Adelheid Lucy Koch de emigrar, lembrou-se imediatamente das aspirações brasileiras, e, finalmente em 1937 Dra. Koch vem para o Brasil, e em 1938, após estudar a língua portuguesa, começa sua atividade didática, analisando Durval Marcondes, Virgínia Leone Bicudo, que era professora primária e estudante universitária de sociologia, Darcy de Mendonça Uchoa, Flávio R. Dias. Em meados dos anos 40, outros candidatos não médicos, incorporaram-se ao grupo inicial: Frank Philips, que era engenheiro, Lygia Alcântara do Amaral, educadora sanitária, Henrique Mendes, educador sanitário e mais tarde médico, além de Isaias Melsohn, que era médico. Na década de 50, Paulo Lentino, Waldemar Cardoso e Mário Yan, psiquiatras iniciam sua formação. Ainda na década de 50, dois outros analistas-didatas europeus se incorporaram ao movimento paulista: o sueco Niels Haagen, que, contudo não se adaptou ao Brasil, retornando à Europa e Theon Spanudis, vindo de Viena que no final dos anos 50 abandona a profissão de psicanalista para se dedica às artes plásticas.

No Rio de Janeiro, muitas tentativas foram feitas a fim de promover a vinda de analistas didatas para iniciar a formação profissional de analistas. Há, como em São Paulo, intensas gestões junto à comunidade psicanalítica internacional. José Affonso Netto, como presidente do Centro de Estudos Juliano Moreira, criado com finalidade de difundir as idéias psicanalíticas, e Danilo Perestrello, como secretário-geral, insistem com analistas da Argentina, Estados Unidos e Europa neste sentido.

Em abril de 1945, Arnaldo Rascovsky, argentino, membro da APA, ex-analizando de Angel Garma, é convidado para residir no Rio e iniciar aqui um novo grupo brasileiro. O convite não é aceito, mas Rascovsky dá uma série de conferências no CEJM bem como na universidade. Em seguida Angel Garma, analisado em Berlim por Theodor Reik e também membro fundador da APA faz conferências e se dispõe em intermediar a vinda para o Brasil de Georg Gerö, que residia em Nova York, que, todavia, resultou infrutífera. Marie Languer, uma analista austríaca que emigrara para a Argentina, tornando-se membro da APA, também foi convidada, tendo sido, contudo impossível de conseguir a reavalidação do diploma no Brasil. Gestões semelhantes foram feitas com Daniel Lagache em Paris, que também não se concretizaram.

Finalmente, em 2 de fevereiro de 1948, chega ao Rio, indicado por Ernest Jones o médico polonês Mark Burke, ex-analizando de James Strachey, e em 23 de fevereiro inicia as análises didáticas de José Mariz de Moraes, Januário Jobim Bittencourt, Sebastião Fontes Lourenço, João José Barbosa Quental, Domício Arruda Câmara, Manoel Thomaz Moreira Lyra, João Cortes de Barros, Edgard Guimarães de Almeida, Luiz Lacerda Werneck, Pedro Figueiredo, Sylvio Grieco e Mário Pacheco de Almeida Prado. Em dezembro de 1948, chega, também indicado por Ernest Jones, Werner Kemper, sendo que sua análise iniciaram em março de 1949, tendo como analisandos Erika de Almeida, João Marafelli Filho, Gerson Bolsoi, Inês Besouchet, Noemi da Silveira Rudolfer, Fábio Leite Lobo, Celestino Prunes, Souza Viana, Zenaira Aranha, Inaura Carneiro Leão e Luiz Dahlheim. Em consequência da formação destes dois grupo, além de outras intercorrências que não trataremos aqui, formam-se no Rio de Janeiro duas Sociedades Psicanalíticas filiadas à IPA: a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), reconhecida em 1955 e a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), reconhecida em 1959.

Uma outra manifestação de mobilidade horizontal está expressa nas idas e vindas de analistas que viajam para o exterior com finalidades de realizarem formação profissional ou mesmo se inteirarem das novas idéias surgidas no movimento psicanalítico internacional, residindo por alguns anos no exterior ou indo em viagens mais curtas para estudos ou participação em congressos.. Assim temos em São Paulo, em 1945, Frank Philips muda-se para Londres onde se re-analisa com Melanie Klein até 1954, e, em seguida com Wifred Bion até 1961. A própria Dra. Koch, em 1948 viaja para Londres onde frequenta seminários e supervisões com M. Klein e outros do grupo kleiniano. Ainda na década de 40, Isaias Melsohn viaja para os Estados Unidos onde se re-analisa. Em 1951, Henrique Mendes viaja para Londres onde faz re-análise com Eve Rosenfeld, do grupo kleiniano, retornando em 1956 para o Brasil fixando-se no Rio de Janeiro. Em 1953, Frank Philips vem ao Rio de Janeiro para realizar seminários e supervisões sobre a teoria desenvolvida por Klein. Virgínia Bicudo vem ao Rio onde inicia uma análise com Philips. Posteriormente, em 1955 muda-se para Londres onde por 5 anos prossegue sua análise com Philips e frequenta seminários e supervisões do grupo kleiniano e da Tavistock Clinic, retornando ao país em 1960. Em 1956, a Sociedade de São Paulo recebe a visita para ministrar seminário e supervisões o Dr. Hans Thorner, também analista do grupo kleiniano. Em 1956, Lygia Amaral faz viagem de estudos e supervisão com membros do grupo kleiniano em Londres. Sem nos estendermos mais com relação à mobilidade em São Paulo, resta registrar a grande influência que teve nesta sociedade como também na psicanálise brasileira a vinda de Bion para conferências e supervisões tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro na década de 70.

No Rio de Janeiro, observamos também uma intensa movimentação de analistas no sentido de realizarem ou aperfeiçoarem suas formações. Em 1945, Alcyon Bahia muda-se para Buenos Aires onde realiza sua formação psicanalítica na APA. Em 1946, Danilo Perestrello muda-se para Buenos Aires onde inicia sua formação analítica com C. E. Cárcamo. Júlio Paternostro muda-se para a Itália, onde realiza sua formação analítica. Décio de Souza, gaúcho, irá fixar residência no Rio de Janeiro após sua formação psicanalítica realizada em Londres. Edgard Guimarães de Almeida realizou estágios em Paris tendo feito sua formação psicanalítica em Londres. Em 1958, vem ao Brasil para uma série de conferências seminários e supervisões a Dra. Paula Heimann. Em 1946, Maria Alzira Perestrello muda-se para Buenos Aires onde realiza sua formação psicanalítica analisando-se com Enrique Pichon Rivière. Em 1953, Pedro de Figueiredo Correia, vai para Londres onde realiza supervisões na Sociedade Britânica de Psicanálise. Em 1947, Walderedo Ismael de Oliveira se desloca para Buenos Aires onde realiza sua formação psicanalítica em análise com Marie Languer. Sabe-se que Domício de Arruda Câmara, que havia iniciado sua análise com Burke, muda-se para Londres onde se analisa com Bion. Entre os analistas da SPRJ, João Marafelli Filho viaja no início dos anos 60 para Londres onde se re-analisa com Frank Philips. Inês Besouchet também vai para Paris, nos fins dos anos 50 onde efetua uma re-análise com Nacht. Entre os analistas em formação na SPRJ viajam para São Paulo onde realizam a segunda supervisão necessária à formação. De Porto Alegre, sabe-se que Mário Martins, analisando-se com Angel Garma e sua esposa, Zaira Martins, com Arminda Aberastury, terminavam, ambos, por volta de 1947, suas formações na Argentina. Ciro Martins também faz sua formação em Buenos Aires. Na Bahia, encontramos o psicanalista argentino Emílio Rodrigué, que, dissidente da APA, muda-se para o Brasil em 1974.

No que diz respeito aos analistas brasileiros formados na França com marcada influência de Lacan, verificamos que a tendência geral é procurarem a universidade, principalmente nos departamentos de psicologia onde iniciam um movimento importante na relação da psicanálise com a universidade. Em 1973, Durval Checchinato retorna a Campinas, vindo de Estrasburgo onde realizou sua formação com Lucien Israël e Moustapha Safouan. Em 1975, Luiz Carlos Nogueira, de São Paulo, Jaques Laberge e Ivan Correia, de Recife, fundam o primeiro centro lacaniano no Brasil, o Centro de Estudos Freudiano. Em 1977, Magno Machado Dias, que se analisou durante alguns meses com Lacan em Paris, funda com Betty Milan, outra analisanda de Lacan o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro. A partir desta data, notadamente na década de 80, nada menos do que 8 instituições lacanianas são fundadas no Rio de Janeiro, sempre com participação de analistas que se deslocaram para a França no sentido realizarem sua formação.

Creio que deixei claro a grande mobilidade horizontal desenvolvida principalmente pelos pioneiros no sentido da introdução da psicanálise no Brasil. É bem verdade que esta mobilidade não se limita aos pioneiros. Ainda hoje muitos brasileiros procuram centros europeus, principalmente, onde realizam sua formação ou estudos de pós-graduação no campo da psicanálise.

Uma mobilidade vertical,- conforme já observamos em Gilberto Freire - também vai ser observada, em geral associada à mobilidade horizontal. Trata-se da grande receptividade, desde o freudismo, de todas as novas teorias que surgem na Europa ou nos Estados Unidos no campo da Psicanálise. Desta forma temos a introdução da idéias de Melanie Klein que aparecem como algo inovador em relação às idéias de Freud, a Psicologia do Ego como uma "evolução" do freudismo e o lacanismo como a "redescoberta" do "verdadeiro" Freud. Todas as novas teorias que entre nós ganham adeptos, se dizem a "verdadeira" psicanálise. Entre elas trava-se uma batalha explícita pela hegemonia no ambiente "psi" e pelo poder institucional e intelectual. Todavia, nota-se uma frequente e recorrente repetição de clichês e de ausência de reflexões originais, mesmo no sentido de Kuhn, na produção de uma "ciência normal". O antagonismo a esta mobilidade vai se estabelecer na maneira como as instituições psicanalíticas vão se estruturar no Brasil, o que é um assunto para outra oportunidade.

A discussão, entre o que é cópia da cultura européia por uma pequena elite enquanto o grosso da população permanece inculta, é uma questão que extrapola os nossos limites nesta monografia, mas, importantíssima de ser abordada com suficiente vagar e reflexão. Pretendi no momento aproximar a idéia de mobilidade, conforme abordada por Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Hollanda, dos movimentos que vieram propiciar o início da difusão da psicanálise entre nós, identificando a sua presença como um dos elementos da cultura brasileira facilitadores deste empreendimento.
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