O real da ética

Helena Besserman Vianna

Muito provavelmente minha participação nesta tão organizada jornada como prévia dos Estados Gerais da Psicanálise que será realizado em julho de 2000 em Paris, deve-se a publicação de livro de minha autoria - Não Conte a Ninguém... (Imago,1994), que na tradução ampliada em francês intitula-se "Politique de la Psychanalyse face à la Dictature et à la Torture" -N'en parlez à personne, com prefácio de René Major e em castelhano, com prefácio de Horacio Etchegoyen, "No se lo Cuente a Nadie" (Polemos, 1998).

Aprendi com meu pai, estudioso do Talmud, a resposta a uma de suas instigantes perguntas: "O que é que vive durante séculos,mas pode morrer ainda antes de ter nascido?" Resposta: um livro. "Nasce a cada vez que alguém o lê e pode morrer nas brumas do esquecimento, no assassinato da memória, nas deformações e omissões que se fazem de sua leitura". Ou ainda, em se tratando do real da ética, o que inclui os impasses éticos da instituição psicanalítica, esta leitura pode ser realizada com angélica postura de cordeiro, propondo que questionar o comportamento ético dos psicanalistas face ao social, é apenas tentar uma tal denominada etificação calamitosa, como fez Allouch em seu livro sobre o caso Amilcar Lobo (Cahiers de l'Unebévue,1997).

Creio não ser necessário relatar-lhes o histórico do envolvimento de um candidato de uma das sociedades psicanalíticas do Rio de Janeiro (Rio1) filiada a IPA, Amilcar Lobo, em equipe de tortura a prisioneiros políticos em época de ditadura militar e a proteção que recebeu de seu analista-didata (Leão Cabernite), que teve, por sua vez como analista-didata a Werner Kemper. Kemper,que durante a Segunda Guerra Mundial trabalhou COMPROMETIDO com o regime nazista, na qualidade de diretor do Instituto Göring, chefiado por Matthias Göring, primo do famoso general de Hitler. Werner Kemper chegou ao Brasil em 1948, apoiado por Ernest Jones, então presidente da IPA. Também não vou detalhar pormenores quanto a participação ativa e/ou passiva de outros dirigentes da sociedade internacional fundada por Freud ou sobre aspectos éticos de algumas de suas afiliadas, pois a documentação de suas respectivas transgressões éticas consta pormenorizadamente nos livros que citei anteriormente.

Existem temas que possuem significado, representação e propriedades particulares: - real, ética, institucionalização, se inserem neste espaço. São conceitos polissemicos , questionados por filósofos, antropólogos, historiadores, cientistas sociais, e, evidentemente, também por psicanalistas.

Sabemos que diferentemente do que acontece com outros animais e seus agrupamentos, o sistema sócio-político de qualquer sociedade humana, não pode ser prognosticado a partir de conhecimentos sobre a espécie Homo Sapiens, por mais amplos que sejam os saberes utilizados. Por exemplo, especialistas no assunto, podem descrever com minúcias as abelhas e seu sistema institucional, podendo constatar que, se uma sociedade de abelhas modificar seu comportamento sócio-político-ético, esta sociedade caminhará para sua desintegração e possível extermínio, enquanto abelhas.

O mesmo não se aplica às comunidades humanas.

O conhecimento das origens e primórdios da cultura e dos sistemas sócio-políticos de seu passado, não me permite prever como evoluirá cada instituição, sua cultura e sua ética. Isto porque a cultura de cada sociedade é exercida e utilizada pelo conjunto de seus componentes. Cada ser humano opera e funciona sob a influencia de alguma cultura. Por outro lado, o comportamento de cada indivíduo também tem seu efeito cultural.

Deixo de lado deliberadamente certos aspectos específicos da ética psicanalítica, em especial no encontro psicanalista-analisante, e o que indago agora, não é tanto sobre o real da ética para o psicanalista, mas sim, quando e a propósito de que, falamos de ética no espaço em extensão (no sentido de estension de Lacan) do psicanalista no mundo , - esteja o psicanalista se penteando em banheiro público (exemplo de Allouch), praticando tortura a presos políticos, ou ainda apoiando direta e/ou indiretamente medidas institucionais atrabiliárias e totalitárias, seja em tempos de tirania ou de "soi-disant" poderes democráticos.

Sem pretender esgotar o assunto, formulo algumas hipóteses iniciais como encaminhamento para novas contribuições no que concerne aos impasses éticos que com freqüência se repetem em diferentes instituições psicanalíticas.

1) a manutenção de segredos e ocultação de fatos institucionais, na grosseira pretensão de sustentar como verdade e como real, o poder do esquecimento;

2) a notificação de ocorrências institucionais da mais alta importância social e política, como se nada de mais se tivesse passado;

3) Concordo, em termos gerais com as opiniões de Eric Santner, apresentadas em seu livro "My own Private Germany" (Daniel Paul Schreber's Secret History of Modernity - Princeton Univ.Press,1966), de que impasses e conflitos individuais e coletivos, surgem quando há mudanças na matriz fundamental da relação do indivíduo com a autoridade social e institucional, e ao modo como cada um responde às exigências do poder e das autoridades ditas "oficiais". Nas investiduras de poder, alguns, senão muitos psicanalistas, se enquadram no que Santner denomina de "investidura simbólica", na qual fica dotado de novo status social e investido de um mandato simbólico que, desse momento em diante, impregna sua identidade na comunidade. Nesses casos, a estabilidade institucional bem como o equilíbrio emocional e o comportamento ético real de seus membros, fica submisso ao simbólico social e ao poder que a este se atribui, através de títulos, postos, honrarias e atributos similares.

Penso que, somente através do esclarecimento transparente e sempre documentado de fatos que de alguma forma atingem a comunidade, é que se pode estabelecer as responsabilidades individuais e/ou coletivas nas passagens ao ato que geram impasses maléficos ético-institucionais, ainda que, por particularidades inerentes ao nosso ofício, estes atos estejam quase sempre intimamente aprisionados ao uso indevido da transferencia e a questões que remetem aos problemas relacionados ao que se quer significar com "transmissão da psicanálise".

Vou citar-lhes exemplos até bem conhecidos que corroboram os itens que acabei de mencionar.

A intervenção direta dos princípios e leis nazistas na Sociedade Psicanalítica alemã (DPG), iniciou-se em 1935, quando ficou estabelecido que as autoridades nazistas governamentais, só admitiriam a existência da psicanálise na Alemanha, se "todos os seus representantes fossem arianos". Nestas circunstancias, Ernest Jones, na qualidade de presidente da IPA, reúne-se em Berlim com os membros não-judeus da sociedade psicanalítica alemã (entre eles Werner Kemper - fundador da primeira sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro, a qual pertencia Amilcar Lobo, analisante em formação de Leão Cabernite, que por sua vez, foi analisante de Kemper) e, em reunião realizada em dezembro de 1935,concordam com que "os poucos judeus ainda remanescentes na sociedade deveriam apresentar suas demissões "espontaneamente", para impedir a dissolução da sociedade e assim, "salvar a psicanálise". Real de nova ética... Este episódio terrífico e vergonhoso para a instituição psicanalítica alemã e mundial, é descrito por alguns psicanalistas, entre eles Kemper, de forma escamoteada e eufemística, dando a entender que os psicanalistas judeus teriam liberdade para decidir, por vontade própria, se podiam ou se deviam demitir-se da sociedade psicanalítica alemã.

Outro exemplo: terminada a Segunda Guerra Mundial, a revista oficial da IPA, apresenta uma relação dos psicanalistas alemães falecidos durante a guerra, sem nenhuma menção ao fato de que grande parte deles eram judeus que foram assassinados ou exterminados em fornos crematórios dos campos de concentração construídos pelos nazistas.

Um último exemplo: em 1989, Amilcar Lobo escreve suas memórias em livro intitulado - "A Hora do Lobo e a Hora do Carneiro"(seu codinome na equipe de tortura). Em resposta a crítica que fiz a esse livro, Lobo diz o seguinte: "...Dra. Helena Besserman Vianna escreve que em nenhum momento me mostro envergonhado pelo que cometi ou assisti nos quatro anos que fiz o serviço militar. No entanto...parece esquecer que o Homem utiliza a tortura e os assassinatos há milhares de anos, desde que se organizou em sociedades. Há bem pouco tempo, a Inquisição torturou e matou inúmeros judeus e há pouco mais de quarenta anos o regime nazista alemão procedeu da mesma forma. Assim é o Homem na sua total estrutura mental e eu não me envergonho de ser um deles...".

Convido-os a refletir e questionar no que esta declaração de Lobo contem de anti-ético mas, especialmente, de transmissão deformada do pensamento freudiano, dentro e fora do "setting" analítico ou a postura ética dos psicanalistas face ao real da ética.

Este tipo de declaração feita por Lobo é, evidentemente, eivada de aspecto político (e qual ato não é político?), e enseja a vontade de em parodiando Freud, chegar a poder dizer - "...estes psicanalistas são, portanto, os únicos a não serem ...psicanalíticamente éticos!".

É bem verdade que ao contar o que se pede que não seja contado a ninguém, fica presente o risco de se incorrer em erros de interpretação. Entretanto, a ocorrência destes erros é amplamente menor que os perigos da ignorância sistemática. Na pior das conseqüências, os erros de interpretação poderão ser retificados, enquanto que o silencio sobre as origens dos impasses éticos e seus desdobramentos em muitas instituições psicanalíticas, só podem servir a especulações inconfessáveis que não terão certamente, sequer, o mérito de se sustentarem diante dos fatos.

Para chegarmos ao ético nos dias de hoje, onde o mal-estar da civilização se faz sentir em crises de alma e -mercado, podemos observar, mesmo entre os psicanalistas, que grande parte das instituições psicanalíticas, simultaneamente a aparência de coesão entre seus associados, desenvolve uma nova relação e orientação no que concerne ao tempo social. Cada vez mais, generaliza-se a temporalidade que governa o mundo atual - o presente.

Neste sentido, ocorre-me ressaltar que o que denominamos convencionalmente de atualidade, não deixa de recordar a lembrança. Assim, pergunto: se é sempre oportuno lembrarmos que esquecemos, será também oportuno, em rememorando, restaurar tanto o objeto do esquecimento quanto o da lembrança? Penso que sim.

Não lembrar do passado leva ao risco de ter o pensamento e a postura ética do psicanalista e, de qualquer ser humano, em qualquer regime político, a voltar-se para o discurso apologético, buscando justificativas, defesas, ou mesmo louvando atos inconfessáveis do passado, ou ao risco de resguardar-se em arquivos que permanecem secretos, as transgressões éticas e os documentos que comprovam as devidas responsabilidades.

Não rememorar, cobra tributo a capacidade de pensar e questionar, especialmente a ética face aos Direitos do Homem.

A ameaça de esquecer que esquecemos, leva a construções de inverídicas reconstruções. O que se pretende com os "assassinatos da memória", não é destruir a verdade. O que certamente pretendem obter é destruir a memória da lembrança e a consciência da verdade. Quero significar com estas palavras, que "não esquecer", quase sempre pressupõe uma espécie de vingança pessoal ou institucional, enquanto que recordar favorece os aspectos positivos por uma vida construtiva e com amplitude de criatividade e de diálogo entre diferentes. Em outras palavras, não esquecer, é a guerra permanente, ao passo que rememorar é uma das possibilidades mais eficazes de desenvolvimento criativo nas posturas éticas e realísticas das instituições.

No desenvolvimento muitas vezes contraditório, lento e desigual de obter através do processo psicanalítico, subjetividades mais livres, a psicanálise não é, evidentemente, o único caminho. O futuro ainda é enigmático no que concerne aos rumos que tomarão os indivíduos para obter sua autonomia.

No que tange a lucidez, resta ainda muito a conquistar, pois a ilusão e a obstinação aos dogmas psicanalíticos já estabelecidos, tal qual Phénix, renascem sempre de suas cinzas. Ainda assim, a ética psicanalítica tem contribuído de forma grandiosa para desarraigar, especialmente no Ocidente, o obscurantismo e o fanatismo, contribuindoéticamente, ainda que modestamente, a buscar uma humanidade menos narcísica, apesar de seus paradoxos: o conhecimento do inconsciente, pode favorecer o consciente, na medida em que a responsabilidade individual na passagem ao ato é nomeada, levando ao respeito e prática dos Direitos do Homem.

Parafraseando Churchill, talvez, neste conturbado final de século, questionando os dogmas instituídos na ética dos psicanalistas, possamos nos dar conta que a psicanálise e o exercício de sua ética, seja um dos piores caminhos a trilhar, a exceção de todos os outros.

Termino com James Baldwin: "Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado. Mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado".

Helena Besserman Vianna
E-mail : helbes@openlink.com.br

Palestra proferida em Tours, 17/out/1998