Estados depressivos na histeria e na neurose obsessiva

Elisa Maria Ulhôa Cintra


"But better than to grow, beauty konws no" E.E. Cummings.

Comecei a pensar sobre os estados depressivos ao me deparar com alguns pacientes histéricos e obsessivos que apresentavam um sofrimento agudo, uma intensidade do sentir que se revelava avassaladora a tal ponto que se viam obrigados a deprimir seus afetos, a diminuí-los, a torná-los quase imperceptíveis, um verdadeiro processo de anestesia, de esvaziamento, de destruição de toda a sua vitalidade. Talvez este processo de congelamento, de destruição da seiva de vida, do calor da emoção e do desejo de viver tenha sido desde o princípio de meu percurso como analista, o que mais me chamou a atenção em todos os atendimentos. Diante disto senti-me sempre naquela plena impotência que nos arremessa para longe de tudo que é possível, em geral falando sozinha, frente à magnitude impenetrável do sofrimento de um outro, de sua teimosia mineral, impassível, irredutível, negando-se a entrar em um processo de transformação, recusando-se a entrar no rio da vida, a pertencer a um campo de experiências partilhadas, perseguindo um fantasma da vida como um narciso siderado com a imagem fugidia na água, buscando para além de si o vulto feliz de alguém que passou, estendendo o braço a um duplo da vida, um fantasma fugidio, intangível, ilusão de um imaginário enlouquecido, esvaziado, desolado.

Me veio então à cabeça a frase inicial de um poema chamado A terra desolada.

Abril é o mais cruel dos meses, fazendo germinar lilases da terra morta, misturando memória e desejo.

O poema foi escrito em 1920 por Elliot, que sofria sem nenhuma esperança no futuro, a miséria instalada depois daquela que havia sido uma guerra especialmente cruel e destruidora, a primeira guerra mundial. Era obrigado a trabalhar com centenas de bancários para ganhar a vida, no centro de Londres cinzento e gelado, de onde, todos os dias, invariavelmente às cinco da tarde, iam de volta para casa, atravessando a ponte sobre o rio Tâmisa, de chapéu côco, guarda-chuva e jornal sob o braço: bando de sonâmbulos movendo-se automaticamente em direção a nada, multidão de deserdados. Este ritual sombrio fazia Elliot exclamar: "Não sabia que a morte havia desfeito a tantos." recordando-se da surpresa de Dante Alighieri ao ver no inferno aquele bando inumerável de conhecidos seus.

A Terra desolada partiu da vivência de não desejar mais nada, de não sentir mais os próprios desejos, de não poder mais se lembrar. Abre-se com a visão da terra desolada pelo inverno cujas entranhas geladas são, em abril, violentamente sacudidas pela irrupção da primavera. O impacto da seiva de vida trazendo o desejar e o lembrar rasga a terra desolada atravessando-a de dor.

Abril é o mais cruel dos meses. Fazendo germinar lilases da terra morta, misturando memória com desejo,

A terra dói sob o impacto da nova exigência: se tornar fértil, capaz de amar. O solo está enrijecido, as raízes estalam ... Onde reinou o silêncio e a solidão gelada, a experiência de amar se apresenta em estado de agonia, provocando a agonia de um nascimento: difícil germinar lilases quando a terra esteve morta por muito tempo. Difícil aceitar a chegada de memórias, deixar brotar desejos e correr solto o ímpeto verdejante de Eros... "onde não há jardim as flores nascem de um secreto investimento, em formas improváveis" disse Drummond. . Onde reinou a quietude narcísica..... querer germinar rasga a planície desolada, rompe com dor, sentimento narcísico por excelência, a superfície plácida do inverno. Estação de um verdadeiro milagre de surgimento da vida, a primavera fala da capacidade de sentir, do calor suscitado por desejos e memórias a partir o coração gelado.

Porque citar um poema que evoca os mitos da fecundidade, para falar da condição humana de maior impotência, solidão, inércia, e de maior esterilidade? É uma estratégia cruel do poeta: falar da sua incapacidade de amar e criar, através do esplendor da primavera. É verdade que os contrários se revelam mas acima de tudo é o poeta querendo se queixar: não consegue ultrapassar um inverno (inferno) todo seu. O poema quer abrir a primavera do canto mas encerra a lamentação profunda de se sentir árido, incapaz de gerar. Incapaz de se deixar atravessar por sentimentos e lembranças, o poeta não consegue ultrapassar o sentimento de perda. Perdeu algo importante e irrecuperável e o memorial da perda ficou alojado em um lugar remoto de si mesmo, um núcleo gelado incapaz de se derreter com o calor do sol. Do centro da terra desolada ele grita a angústia de não saber quem é este outro -'meu irmão, meu semelhante' (Baudelaire)- que caminha a seu lado sobre o Tâmisa. Incapaz de reconhecê-lo, de chegar mais perto dele. Ouviu o som da chave girando na fechadura uma única vez. Mas da lembrança deste som restou unicamente a confirmação de estar ele e cada um dos outros, ainda .... em uma prisão.

"na chave pensamos, cada qual em sua prisão. E quando nela pensamos, prisioneiros nos sabemos" .(Elliot)

Abril é o mais cruel dos meses. Germinando lilases da terra desolada, misturando memória e desejo.

Os estados depressivos têm sempre, de alguma maneira, origens em experiências traumáticas, no sentido de que uma perda fundamental deixou uma ruptura irreparável na integridade narcísica. Perda aqui pode significar apenas que alguma perturbação nos contatos afetivos mais precoces deixou sua marca sob a forma de uma certa impotência para esses contatos e para a constituição de um mundo de fantasias e sonhos que funcionaria como uma reserva psíquica capaz de proteger contra a excessiva vivacidade das experiências emocionais ligadas à oscilação entre ausência e presença do objeto de amor. Ora, em todo desenvolvimento 'normal', há uma oscilação perpétua entre momentos de uma certa satisfação narcísica, embora nunca plena e absoluta, e momentos de colapso narcísico mais ou menos profundos. Mais tarde, se houver uma função paterna operando, a mediação entre os estados de plenitude e rompimento narcísico pode ir sendo tecida. Entretanto, mesmo quando pode se formar este tecido simbolizador, há sentimento de abandono, há desamparo, há vivência de narcisismo rasgado. Em razão disto, podemos postular a existência de um potencial à depressão constantemente presente, mesmo no desenvolvimento que poderíamos considerar 'normal '.

Nos casos em que a depressão se transforma no modo predominante de defesa contra a vivacidade do acontecer psíquico, pode-se afirmar que o ferimento narcísico polarizou para si próprio toda a energia psíquica possível, na tentativa de elaborar a dolorosa perda de valor, mas este luto parece não poder se cumprir : a certeza da interrupção do contato afetivo, a certeza da instalação iminente do desamparo são tão grandes que é preciso encená-las imediatamente para abreviar a angustiante espera. É preciso convocar o estado gelado para reduzir a dor de esperá-lo. Não há possibilidade de substituir a relação afetiva atual por outra, em que haja fluxo de amor. O coração já ficou frio, há muito tempo. Já não espera mais ser feliz. Já não que esperar. Já não quer desejar.

Esta fixação do deprimido a uma mesma situação de satisfação revela uma profunda inteligência a respeito da impossibilidade de substituir uma satisfação específica por alguma outra, já que na verdade há sempre perdas e ganhos incalculáveis em toda substituição. Entretanto, esta sabedoria melancólica paira acima da dimensão humana, tornando inviável a continuidade da vida que exige os investimentos de amor e as substituições dos objetos. Além disto para que o passado possa de fato ser resolvido através do trabalho do luto, e abra espaço para uma nova possibilidade de vida é preciso uma quantidade considerável de fé em uma possibilidade ainda não presente, é preciso acreditar que vale a pena apostar no desvio, e me parece que esta convicção falta aos deprimidos patológicos. Nestes, concentrando a libido neste desejo infinito por uma situação de um encontro irrecuperável, embora esta experiência de satisfação não tenha de fato existido, temos não apenas uma cena traumática, um ferimento, uma hemorragia, mas a repetição sem fim, enlouquecedora, demoníaca do trauma, do ferimento e da sangria libidinal que imobilizam o funcionamento psíquico e motor, levando à morte psíquica, ao desejo de morrer, de isolar-se, de desaparecer, de tornar-se completamente mudo, de dissolver-se no nada. Leva ao sentimento de impotência para recuperar o objeto perdido, a integridade narcísica, a auto-estima, o prazer de viver, a possibilidade de amar, de relacionar-se, de aprender.

Eros como expressão do voltar-se para fora em busca de união com o outro foi emudecido e transformado em um desejo de ter um escudo protetor cada vez mais denso e esclerosado. A possibilidade de estar com os outros, de vitalizar-se com o que é diferente foi abolida e uma viagem para dentro, às vezes sem volta, tem lugar, buscando restaurar um estado anterior de coisas, caminhando cegamente na direção da morte, penando pela relação de amor desfeita, pela juventude irrecuperável, pela beleza perdida, pelos anos desperdiçados, sem poder nunca encontrar, porque o que se busca está irremediavelmente perdido e nada mais pode ser tomado como objeto de amor no lugar do primeiro.

Todos os fenômenos que atraíram a atenção de Freud ao propor as pulsões de morte, desde a compulsão à repetição até a importância da agressividade, ódio, sadismo e masoquismo, estão de alguma forma presentes nos quadros depressivos, o que permite supor a possibilidade de elucidar alguns aspectos destes quadros a partir da segunda teoria das pulsões. O desejo de alcançar um estado de completa inexcitabilidade, a aspiração a um estado absoluto de repouso, onde não seja mais preciso desejar e depender do amor de outras pessoas é na verdade um desejo de auto-suficiência e completeza que redime do tormento de desejar aquilo que está irremediavelmente perdido. Ora, a procura deste estado de inércia é a meta última das pulsões de morte, tal como Freud as propôs nos cinco primeiros capítulos de Além do Princípio de Prazer. Em um destes primeiros capítulos, Freud compara o organismo a uma vesícula viva que se vê obrigada a constituir uma camada cortical calcinada para proteger do excesso de estimulações externas e se manter viva, estabelecendo então uma relação entre duas funções defensivas diferentes: a barreira externa que situando-se na vanguarda, isto é na linha de frente da batalha entre os estímulos externos e o organismo, age impedindo a entrada de grandes magnitudes de excitação, configurando-se o traumatismo quando é rompida, e de outro lado, a defesa de retaguarda, que envolve a constituição de uma reserva interna de energia quiescente, para restringir o deslocamento da energia livre e ficar disponível para conter a invasão da energia livre e reconstiuir o pára-excitações externo nos pontos em que foi rompido, depois de ocorrido o trauma. Tanto a construção da crosta mineralizada quanto a criação de reservas 'amortecidas' pode ser atribuída ao trabalho silencioso das pulsões de morte e ao Princípio de Nirvana, cujo fim último é a abolição total das tensões vitais.

Freud entretanto, ao introduzir o sexto capítulo de Além do .., sentindo a necessidade de oferecer um exemplo clínico que pudesse evidenciar o trabalho silencioso das pulsões de morte, voltou-se para as tendências destrutivas presentes no sadismo, no masoquismo e no ódio, iniciando uma teorização que considera o masoquismo primário como o fenômeno clínico mais próximo das pulsões de morte, ao passo que o sadismo já seria a deflexão para fora do desejo de destruir, dirigido então para o outro e em razão de uma intervenção das pulsões de vida. É interessante notar que o masoquismo primário para Freud é o exemplo clínico mais aproximado da pulsão de morte em estado puro, ao passo que o sadismo, até por que envolve algum tipo de reconhecimento do outro organismo, é resultado de uma combinação entre pulsões de vida e de morte. Neste particular, pode-se afirmar que o simples reconhecimento do outro (nem que seja para desejar destrui-lo) exige a intervenção das pulsões de vida e que o movimento auto-referido é o que melhor representa a pulsão de morte. Entendo que o investimento amoroso no outro, no estrangeiro, no que é diferente de mim caracteriza a direção preferida por Eros ao passo que o isolamento, a construção de muros, de couraças, caracteriza Thanatos. Embora a idéia de Freud tenha sido de que a tendência à auto-destruição fosse o melhor exemplo clínico da ação silenciosa das pulsões de morte que visam o retorno à quiescência inorgânica do próprio organismo, muito rapidamente a idéia de destrutividade em geral e do sadismo em particular como tendência destrutiva voltada para os outros ficaram equacionadas com as pulsões de morte. Ora, é impossível justificar, do ponto de vista econômico, a ligação entre pulsões de morte e destrutividade, uma vez que esta última envolve uma ampliação imediata das excitações, e não um retorno à quiescência; o próprio Freud explicava que este alvoroço poderia ser atribuído à presença de Eros em combinação com Thanatos, nos casos em que a auto-destrutividade fora dirigida para fora do organismo. Também poderíamos dar razão a Freud considerando que embora inicialmente os fenômenos de destrutividade representem um grande acréscimo de excitações, podem, com o passar do tempo e com o sucesso de suas operações, levar à morte, não apenas dos outros organismos mas finalmente do próprio, o que daria coerência à associação entre as pulsões de morte e os fenômenos de destrutividade. Do meu ponto de vista, o maior malefício desta associação é o seu aspecto de julgamento moral, que favorece uma associação entre pulsões de vida e forças do bem contra pulsões de morte como forças do mal. Esta tendência que acabou se instalando na psicanálise kleiniana é a meu ver a maior traição ao espírito deste artigo de Freud, através do qual pode-se ver a todo momento a exigência de um observador da natureza, de um pesquisador que não está comprometido com nenhuma ideologia utópica, com nenhuma luta entre o bem e o mal e que se propõe teorizar sobre o que observa, dentro da perspectiva científica de sua época, que exigia rigorosamente a colocação entre parênteses das idéias de bem e de mal e dos valores morais do cientista. A teoria das pulsões é o aspecto menos 'humano' da metapsicologia, e portanto mais alheio à idéia de bem e mal. Freud buscava discernir a ação de uma força cega - a pulsão de morte - e esta cegueira quer dizer que a tendência de retornar à quietude mineral não 'sabe' que acabará levando os organismos vivos à morte, ela é cega por que, mesmo empurrando sempre em uma mesma direção, não é comandada por nenhuma inteligência. Age cegamente, sem nenhuma intencionalidade, pois atrás dela não há nenhum demônio empurrando a vida para a sua dissolução.

O interesse de articular os quadros depressivos com a ação da pulsão de morte levou-me a renovar a leitura de Além do Princípio de Prazer de Freud, entrando no campo da especulação metapsicológica. Toda a metapsicologia freudiana é um esforço de sair do funcionamento individual ao encontro de determinações que ultrapassam o indivíduo particular e funcionam como algo já estruturado que precede e ultrapassa o sujeito isolado. A teoria das pulsões é um exemplo disto, deste plano de determinações impessoais que estão além do indivíduo e da abordagem psicológica, sendo que esta última se preocupa em descrever os quadros clínicos, e os estados psicológicos, entre eles os estados depressivos. Considero então que a tendência a reduzir a zero as excitações, que é a marca das pulsões de morte pertence ao plano teórico das estruturas, da metapsicologia. A articulação entre as descrições clínicas e a teoria estrutural envolve sempre uma passagem de nível e para fazê-lo, usei alguns caminhos apontados por André Green no livro Narcisismo de vida, narcisismo de morte.

O autor mostra que o amor dirigido a si mesmo promove uma economia dos investimentos objetais e garante certa independência do mundo externo. Na medida em que este auto-amor consegue proteger das decepções a que se fica sujeito ao investir o mundo externo, tende a criar um sistema fechado, mais protegido e estável que o tumulto barulhento provocado pelas pulsões de vida, investindo incessantemente novos objetos e o mundo externo. Neste texto vou estabelecer articulações entre estas idéias de André Green e a teoria de relações de objeto de Fairbairn. Este último, mostrou que a constituição de um aparelho psíquico com sub-sistemas internos oriundos da internalização dos objetos externos se fazia necessária porque os objetos externos não correspondiam às necessidades libidinais e afetivas do bebê. Justamente porque os primeiros objetos de amor falham, frustram ou são excessivamente intrusivos a criança se vê obrigada a criar um mundo de objetos internos sobre os quais pode ter muito maior capacidade de controle e previsão.

A hipótese de André Green, por outro lado é que se voltando para o eu, as pulsões sexuais são simplesmente enfraquecidas; esta espécie de amortecimento decorre por ação das pulsões de morte que transformam a libido objetal em libido narcísica. Passar então da direção centrífuga e irradiadora do Eros para esta direção centrípeta, narcisante revela o trabalho silencioso, cristalizador, do princípio de Nirvana instalado diretamente no seio das pulsões sexuais.

No caso clínico por nós discutido (foi omitido desta comunicação por razões de sigilo) observamos a dificuldade que G. tem em estabelecer uma relação de amor realmente vitalizada com as mulheres. Sua tendência é recolher-se em um mundo próprio de devaneios e atividades solitárias através das quais estabelece alguns contatos humanos interessantes com amigos e amigas, mas não inclui a mulher com quem vive há muitos anos. O vínculo com esta última, transformou-se em um vínculo de ódio, que precisa ser mantido por ser justamente um vínculo esclerosado, e amortecido. A memória de um amor adolescente, intenso e ameaçador exemplifica a ameaça que a vitalidade afetiva representa para ele. A força de um vínculo simultaneamente sexual e afetivo parece a ele tão sobre-humana como uma grande avalanche que se abatesse sobre ele, esmagando-o . Neste sentido, todo tipo de desprazer sentido nesta relação insípida é mil vezes menos ameaçador e deve ser mantido, como se houvesse uma equivalência entre o máximo de angústia e a experiência de se engajar em uma relação de amor intensa e atual.

Um outro exemplo que Green traz do processo de de-sexualização é o que produz as pulsões de meta inibida, na saída do complexo de Edipo. Transformar os investimentos sexuais da infância em ternura e originar um investimento objetal duradouro, estável envolve uma interrupção da meta diretamente sexual. Desenvolver a ternura para com as figuras parentais é o melhor método para diminuir a angústia de castração. Do ponto de vista econômico ocorre uma diminuição do quantum, da vivacidade da excitação ao passar da meta de posse erótica plena para a ternura: esta transformação acaba sendo a favor da preservação da vida, da segurança e da integridade narcísica. Então, ao trabalhar cegamente para o retorno à quiescência orgânica, a pulsão de morte acaba às vezes ficando a favor da mantuenção da vida, nesse caso em que opera sobre o Eros selvagem, transformando-o no Eros parcialmente dessexualizado que mantém uma ligação amorosa terna com o objeto de amor, essencial também à sobrevivência.. Ao frear o regime canibalístico e consumidor das pulsões sexuais, a pulsão de morte acaba indiretamente cristalizando e fixando a libido da criança nos objetos que exercem a função materna e paterna, acaba pois por consolidar a tendência objetalizante restringindo e concentrando o fluxo libidinal nestes objetos. A transformação da libido diretamente sexual em ternura tem um papel importante na infância (sendo sempre a melhor estratégia para enfrentar a angústia de castração) mas há uma tendência a se manter em uso durante e depois da puberdade, uma vez que as vantagens em termos de estabilidade e segurança continuam exercendo uma certa atração.

Outros exemplos deste trabalho da pulsão de morte: a sublimação e a identificação, transformam a libido erótica em libido do Eu, parcialmente dessexualizada e promovem um abandono dos investimentos objetais puramente sexuais, originando um investimento objetal neutro, mortificado. Estes estados de maior auto-suficiência em relação ao

suprimento de amor externo - quando há consolidação do narcisismo - expressam a criação de um sistema fechado, de uma reserva libidinal própria através da ação limitadora, constrangedora e mortificante das pulsões de morte.

Na criação do Ideal do Eu vê-se algo semelhante: se o ego conseguiu amordaçar a atividade desenfreada do Id, este reage dando origem, no lugar onde deveria ter havido satisfação pulsional, a uma exigência de renúncia e à substituição da primeira por uma satisfação narcísica, pelo prazer de haver renunciado. A função do Ideal transforma as pretensões libidinais em seu contrário, valorizando a renúncia e colocando o orgulho narcísico como algo mais satisfatório que a satisfação pulsional. O Eu Ideal, associado ao ideal de fusão erótica plena com o objeto é substituído pelo Ideal do Eu que exige a renúncia da fusão e do parricídio, funcionando como um agente inibidor da meta última, das tendências francamente sexuais e agressivas.

Ainda quando se refere àquela forma de identificação primordial com o pai, objeto de tantas polêmicas entre os analistas, aquela identificação que é direta e imediata, anterior a todo investimento de objeto, Green vê aí também a ação da pulsão de morte, que restaura o investimento paterno como tótem depois do parricídio, celebrando a renúncia a todo assassinato futuro, e preservando um vínculo intangível com o objeto - não com a pessoa do pai e sim com a função paterna, no sentido do acesso à parentalidade. Este vínculo com a parentalidade representa uma libertação do efeito sombrio, esmagador e mutilador do objeto primário. Com a morte da plena presença pessoal do pai, seu poder de impedir o acesso à posição paterna diminui, ao passo que o vínculo à memória do pai, mantendo simultaneamente a exigência de renúncia a todo futuro assassinato do pai, dá acesso à posição paterna e à sexualidade. (ainda que reguladas pelos interditos do pacto). Esta identificação que Freud afirma ser direta e anterior a todo investimento de objeto seria equivalente a um ritual de assassinato simbólico, substituindo a satisfação pulsional direta por uma satisfação narcísica, que inclui o prazer de renunciar ao ato do parricídio, como pode ser encontrada no ascetismo religioso ou, com maior impregnação de ódio e culpa, no ascetismo da neurose obsessiva. Talvez seja possível pensar os rituais sacrificiais da Antiguidade como dispositivos que visam instalar o prazer narcísico da renúncia no lugar da satisfação direta dos desejos sexuais e agressivos. No entanto mesmo com relação à renúncia é preciso fazer a distinção entre uma verdadeira sublimação na qual de fato a gratificação narcísica é muito profunda e decorre de uma verdadeira transformação libidinal e de outro lado uma formação reativa, como mecanismo de defesa contra a satisfação direta mas que não consegue preservar o prazer, tendo um caráter compulsivo, masturbatório e com um alto grau de violência embutida.

O auto-erotismo é considerado por Green, como análogo ao pára-excitações externo da vesícula protoplasmática: se constitui para proteger o psiquismo contra a sua excessiva vulnerabilidade às excitações, ao heterogêneo e ao encontro com o objeto, fonte das mais diversas tensões vitais. No início da vida, a pulsão sexual encontra seu objeto de amor no

seio materno, e é precisamente quando este objeto é perdido que a pulsão se torna auto-erótica, pois a criança começa a buscar satisfação em seu próprio corpo. A imagem dos "lábios que se beijam a si mesmos" serve para mostrar qual seria o ideal do auto-erotismo - a criação do objeto e encenação da satisfação pulsional - tudo no corpo próprio. O auto-erotismo é um dispositivo capaz de "parar" o movimento para fora, à deriva, em busca da satisfação pulsional, transformando-o em um voltar-se ao que é o mais "próprio". Entretanto embora a construção do auto-erotismo seja fundamental para consolidar uma certa independência das trocas libidinais com o mundo externo, deveria ser usado como um dispositivo regulador contra a excessiva vulnerabilidade aos encontros objetais, sem eliminar a abertura para estes. Nos estados mais patológicos ocorre uma cristalização do auto-erotismo em detrimento absoluto da direção centrífuga, irradiadora da libido.

Voltando ao caso de G.. A condição de desamparo e dependência do objeto de amor é pouco tolerada. Manter a relação esvaziada, exercendo controle sobre o seu objeto de amor e não se sentindo vulnerável é mais importante do que entrar na des-estabilização de uma relação de amor em que se sentisse mais mobilizado, atraído e dependente do objeto. Na relação com a mãe viveu uma instabilidade muito grande com a constante presença de broncas, surras, castigos, crises dela que eram atribuídas ao mau comportamento dele. Ela afirmava sempre a insatisfação dela em relação a G. e ao pai de G. G se identificou com este aspecto demoníaco, terrível, causador de muito sofrimento e dor de cabeça. Quanto à atitude dela diante de G, (a frase dirigida a ele: 'você desgraça a vida' diz tudo) - ficava profundamente insatisfeita com os feitos de G., menino incendiário, "menino mau", que só aprontava, só fazia coisa errada. Pode-se pensar que ser bravo, travesso e transgressor era o jeito deste menino polarizar para si a atenção desta mulher perdida em seus conflitos e insatisfações. G. não tinha sido reconhecido por nenhum traço positivo, fixando-se então em defesas ascéticas, provavelmente porque sentiu aí um espaço de redenção de sua identidade negativa, a passagem de 'quem desgraça a vida' para quem pode abençoar. Algo da sua capacidade de amar ficou subdesenvolvida e proibida, faltando sempre um reconhecimento materno de sua capacidade afetiva. No contraponto desta mãe-bruxa, desta mulher incapaz de enxergá-lo e de reconhecer nele algum valor, desenvolveu uma paixão desenfreada por uma mulher-fada, muito idealizada, que apareceu no princípio da adolescência como algo excessivamente perturbador: "é muita areia para o meu caminhãozinho". Em torno de um núcleo de experiências afetivas simultaneamente tórridas e geladas, desenvolveu um comportamento agressivo, uma tendência a se fechar, que o protege como uma couraça, mas o tornou impermeável. Tornou-se incapaz de sentir mágoa, se des-sensibilizou. Convenceu-se de que não precisava de ninguém, mas aí pode-se ver como era frágil a convicção pois quando estava em plena crise existencial e apareceu aquela mulher seduzindo-o, ele correu para aquele ninho de 'serpente' onde o aspecto de segurança, e a promessa de acasalamento era muito mais importante que a aliança de amor. Tornou-se incapaz de se emocionar. Foi zerando seu sentir até o ponto de não saber mais. Foram vacilando seus referenciais de realidade.

Recapitulação da noção de desamparo (détresse) na obra de Freud


Com relação às múltiplas situações de intenso medo de amar e depender de seus objetos de amor, aliadas às mais diversas estratégias de dessexualização dos vínculos, me sinto chamada a rever o conceito de desamparo (détresse) em Freud. Farei alguns comentários sobre a questão do desamparo, a partir do livro Pânico e Desamparo de Mário Eduardo Costa Pereira.

Em Inibição, Sintoma e Angústia, Freud propõe o desamparo diante da situação de perigo como o núcleo do perigo. Há duas maneiras de entender este desamparo: a primeira é a que fala do caráter de prematuridade do bebê e da sua impossibilidade de atender às próprias necessidades, precisando então da ajuda do outro adulto, onipotente e capaz de suprir necessidades físicas e emocionais. Ora, mesmo imaginando uma situação idílica de absoluta sincronicidade entre o bebê e sua mãe, como ela necessariamente falha, ser salvo

da sua condição de desamparo é sempre um acontecimento fugaz, sujeitando a criança a momentos em que experimenta a angústia inominável, angústia de 'cair para sempre' segundo a descrição de Winnicott.

Otto Rank via na experiência traumática do nascimento o fundamento último de toda futura angustia e todos os sintomas da neurose adulta seriam encenações posteriores de fragmentos desta memória arcaica. Freud, ao se dedicar francamente à interlocução com Rank ( em Inibição, sintoma e angústia), introduz a noção de desamparo, separando-se da necessidade expressa por Rank de situar a origem do desamparo em uma situação concretamente vivida. Para Freud, o desamparo está amplamente impregnado no vivido, mas antecede o vivido: é condição do (vir a ser) humano e não apenas uma característica do recém nascido. Ele afirma que o afeto da angústia constitui em última instância, uma reminiscência do acontecimento do nascimento, entretanto não acredita que o nascimento possa ter sido verdadeiramente uma experiência justamente por não haver ainda um aparelho psíquico capaz de metabolizar este acontecimento e constituir uma experiência. Introduz a experiência do desmame, esta sim, como primeira experiência que se torna o paradigma do surgimento da angústia e pode ser considerada modelo de toda futura situação de angústia. O perigo para Freud é menos uma questão de sobrevivência e mais a ameaça de perder a sua integridade narcísica. Nos primeiros tempos, perder a integridade narcísica se relaciona intimamente à súbita dimensão do aparecer e desaparecer do outro, objeto de amor, descoberto justamente no momento de sua falta. Quando a mãe se ausenta no momento em que a criança espera dela a satisfação, ela se torna subitamente real e nesta condição excessivamente insuportável para a criança - revela a fragilidade, o desamparo infantil que nada mais são que a sua impotência para lidar com as demandas da pulsão sexual que se acumularam sem encontrar seu objeto (a mãe ausente) provocando um excesso de excitações a ser administradas.

Aqui é interessante notar que para Freud, a dimensão traumática está sempre ligada ao desaparecimento da mãe. Com esta leitura, nos arriscamos a cair em uma visão unilateral, impedidos de pensar que muitas vezes o traumático é justamente o aparecimento e a presença intrusiva, ao passo que a ausência dela é necessária para desencadear o processo de simbolização. Tanto Winnicott como Lacan recolocaram este aspecto traumatizante da presença e dos efeitos de obstrução e bloqueio da simbolização e do pensamento.

O traumático para Freud fundamenta-se pois na experiência de separação dos objetos de amor, das fontes de prazer do pequeno infans . O primeiro tempo do trauma é o momento objetivo do nascimento: nele a criança vive uma forte perturbação de sua integridade narcísica pelo aumento de excitações e a mudança de regime de funcionamento do organismo. Mas o primeiro tempo do trauma ainda não pode ser inscrito como representação pela simples razão de não haver ainda aparelho de inscrição. É, porém registrado sob a forma de uma grande perturbação, de um grande acréscimo de excitações articulado à falta de recursos para administrá-las. Unicamente no segundo tempo do trauma, a separação do desmame, torna-se possível constituir uma experiência e inscrever representações. A idéia de Freud é que este segundo acontecimento constitui, retrospectivamente o primeiro (separação do nascimento) na qualidade de vivência traumática. A partir de então, toda perda futura remeterá à condição de abandono e desamparo ante o crescimento incontrolável da exigência pulsional e a falta de um dispositivo adequado para retornar à homeostase.

Segundo Rank, o traumático é a memória do nascimento em estado bruto, sem a presença de um eu capaz de organizar este acontecimento e o ataque de angústia no adulto seria a memória encarnada disto. Freud se opõe a Rank na insistência de que a memória tenha algum conteúdo diretamente ligado ao primeiro acontecimento traumático . Para se contrapor a Rank, Freud se refere à memória dos tempos de glaciação, aludindo a uma época em que a humanidade teria vivido contínuos estados de privação. Ele afirma que esta época da humanidade estaria inscrita nos fantasmas originários que seriam registros arcaicos de transmissão hereditária, exigindo constantemente, um trabalho de elaboração psíquica por parte de cada novo descendente da espécie. Freud se diferencia então de Rank pois afirma que o transmitido é uma disposição, uma tendência para a angústia - propensão esta sem ligação a uma cena ou a uma trama representacional particular. Seriam memórias afetivas que se manifestariam diretamente através de somatizações fazendo um curto circuito entre a vivência arcaica registrada como sinal de angústia e o real do corpo aqui e agora. Em Freud, a idéia da transmissão geracional do traumático não implica necessariamente que o transmitido tenha sido codificado através de representações.

Em Inibição, sintoma e angústia, a angústia adquire a função de sinalizar a proximidade do perigo, promovendo a inibição dos processos psíquicos em geral e em particular a inibição do desejo. Desta sequencia de afirmações é fácil inferir que desejar é muito perigoso, talvez seja o mais alto perigo psíquico, pois envolve um estado de dependência e instala a possibilidade da perda do objeto de amor, revelando mais nitidamente que qualquer outra situação, a condição fragilizada do humano, sua abertura ao estado de desamparo. Em Heidegger isto corresponde ao estar lançado no aberto, no aí - à mercê de condições sobre as quais não temos controle. Na psicanálise é a condição na qual ficamos à mercê do outro e suas imprevisíveis disposições a nosso respeito, sem desconsiderar que este outro é simultaneamente a alteridade da outra pessoa e o outro em mim. A teorização de Laplanche, da sedução generalizada, é bastante esclarecedora para evidenciar todas as possíveis manifestações desta alteridade: desde a que se estabelece entre criança e mãe, até a que age no mundo psíquico dos protagonistas, entre seus aspectos conscientes e suas dimensões inconscientes e indizíveis.

Uma outra contribuição fundamental de Freud é ter re-ordenado a sequência temporal do trauma ao afirmar que a angústia de castração (aos quatro, cinco anos) age retrospectivamente, resignificando as vivências de angústia anteriores e formatando-as como experiências traumáticas no 'só depois'. Para Freud, desde esta época (1926) a problemática edipiana passa a se desenrolar sobre o pano de fundo das vivências mais arcaicas de desamparo e da possível perda dos objetos amados. Esta abertura da situação edípica atual para a constelação afetiva dos antepassados, leva a conceber o sujeito como estando à mercê de excitações transmitidas de geração em geração, não em termos de conteúdos representacionais mas sob a forma de circuitos afetivos que não foram suficientemente nomeados e domesticados. Os aspectos que ainda não acederam à nomeação, esta porção caótica que ainda não se tornou cosmos, que não recebeu o necessário cosmético das palavras e a necessária inserção em um mundo organizado e organizador é nosso aspecto monstruoso, humano-pré-humano: é a animalidade da esfinge que nos desafia e nos lança no enigma de tudo que ultrapassa a medida humana, de tudo que é anterior ao que pôde ser articulado e significado, ao informe, ao desfigurado e ao desfigurante. Estas são as raízes totêmicas e animalescas da transferência, que segundo Fédida precisamos resgatar e analisar.

Para além do mito de Edipo, está a região horrenda e caótica da sexualidade imemorial de nossos pais que nos interpela sempre com uma questão de vida e de morte. De nossa possibilidade de dar uma resposta humana a esta interpelação, disto, como para Edipo, depende a nossa sobrevivência. É uma questão de vida e de morte. Ariano Suassuna começa um poema - Infância- dizendo assim: "Sem lei nem Rei, me vi arremessado, bem menino, a um Planalto pedregoso. Cambaleando, cego, ao sol do Acaso, vi o mundo rugir, Tigre maldoso." Palavras que podem expressar a perplexidade o paciente deprimido diante do que desconhece do mundo. Daí a sua dificuldade de aceitar a estranheza, a alteridade do mundo. A questão que forma o horizonte último da existência e do conhecimento, se consentimos ou não em viver (to be or not to be) se aceitamos a terrível violência de termos sido lançados à nossa revelia neste lugar onde ruge a sexualidade indômita de nossos ancestrais: isto exige dizer sim por uma vida inteira. Não basta respondê-la de uma vez por todas - eis o x da questão - diria Hamlet - é preciso consentir no ato de viver o dia inteiro, a vida toda, a cada nova respiração. Ora isto envolve muitos lutos: o de não podermos tudo, de não termos estado lá, nos auto-engendrando, de não podermos prever e controlar tudo. Dizer sim à própria vida é concordar com os genitores que nos escolheram antes de nós, e com o fato de não termos podido opinar, nem escolher e determinar.

Por outro lado, por mais que o uso da linguagem permita reconstituir o fio de nossa história, há para além da narração, um apavorante vazio, algo que sempre nos escapa e foge do controle, uma força animalesca, imensa, indecifrável que preside o acontecimento de nossa aparição aqui. Então é neste sentido, de que as determinações e as destinações fundamentais da vida nos escapam - que podemos falar de desamparo. A própria linguagem sempre tentando se aproximar mais, sempre tentando elucidar mais, descobre sempre, ao fim e ao cabo, alguma coisa decisiva que ainda nos escapa: dimensão opaca, irredutível à nomeação. Aquilo para o qual não encontramos nenhuma palavra, escapa-nos entre os dedos, mas também aquilo que foi nomeado se evade da plena apreensão: paradoxo vivo este habitar a linguagem que sempre promete mais do que cumpre. Talvez os deprimidos possuam uma estranha forma de intuição desta equivocidade das palavras. Certamente os poetas sabem disto, vide poema de George Trakl.

A condição do desamparo é pois anterior ao vivido - é condição estrutural do ser pensante. Pela linguagem somos continuamente lançados aí, à frente de nós mesmos, antecipando os acontecimentos futuros. Porém é a própria capacidade de antecipação do futuro, garantida pela linguagem, que nos torna amedrontados; nos tornamos capazes de imaginar o que virá e o que haverá de pior. Mesmo o poeta, atento ao cultivo das palavras, sente que algo lhe escapa entre os dedos da palavra, entre os dedos da mão, a palavra. Este fundo indecifrável coloca sempre uma ameaça de desabamento a nossos edifícios de sentidos - isto é desamparo. Os nossos próprios edifícios de significados tem suas fundações no trauma, no tumulto e no vazio. Não há garantia possível contra a ameaça de retorno do traumático, não há garantia de um amparo, de uma fundamentação perfeitamente sólida.

Pode-se afirmar que muito cedo a linguagem revela ser impossível "tudo representar". Todo trabalho de representação deixa em aberto um resto inconciliável - é o "umbigo" que continua exigindo novas interpretações. Somos convocados em duas direções opostas: de um lado a um trabalho interminável de decifração e criação de sentidos novos e do outro lado, rapidamente descobrimos a precariedade de nossas teorias, a transitoriedade de tudo. Certamente o deprimido sente uma forte compulsão a dar conta, de maneira plena, do mistério do mundo, e a provisoriedade, a imperfeição de tudo o enlouquece.

Desde a mais fundamental apreensão do tempo, somos frustrados: a apreensão da plenitude do presente é duplamente barrada: pela antecipação do futuro, na forma de uma disposição afetiva que altera o momento atual e pela presença do passado cujas dobras enchem de relevos invisíveis a superfície aparentemente lisa do agora.

Articulação entre a interpretação da pulsão de morte freudiana, a questão do desamparo e uma teoria da depressão proposta por Rubens, baseada em Fairbairn.

Algumas idéias de Fairbairn me pareceram extremamente esclarecedoras quando aproximadas à interpretação da pulsão de morte que venho fazendo nas primeiras páginas deste texto e às idéias de André Green de que o auto-amor e o auto-erotismo são estratégias que protegem das decepções vividas quando se deseja e investe o mundo externo. Fairbairn mostrou que a esquizoidia nada mais era que a produção de objetos internos designados a compensar e substituir os objetos externos que sempre frustram e falham. Na verdade os objetos internos, gerando o que ele chama de um sistema fechado podem ser muito mais facilmente controlados, o que traz consigo inúmeras vantagens. À medida que o sujeito segrega o seu mundo interno, e o faz principalmente a partir das inúmeras situações de frustração e dor, várias dificuldades começam a aparecer e ao mesmo tempo, defesas que procuram diminuir os conflitos também são criadas. Não há em Fairbairn uma teoria da depressão perfeitamente aticulada. Rubens aborda no artigo aqui mencionado, alguns aspectos do pensamento fairbairniano a partir dos quais pode-se criar uma tal teoria.

Partindo da obra de Fairbairn, Rubens afirma que a depressão pode ser entendida como um mecanismo generalizado de conservação da situação endopsíquica e de homeostase do mundo interno, isto é, procura preservar um modo estereotipado de experimentar o mundo. Neste sentido a depressão seria uma técnica para evitar ou pelo menos negar a existência de mudanças. O desejo de negar mudanças e portanto negar a experiência da perda, é uma das resistências humanas mais profundas. Pode-se compreender tal resistência diretamente dentro da perspectiva fairbairniana na medida em que isto representa a tentativa mais radical de manter a situação endopsíqucia existente, característica do que Fairbairn chama de sistema fechado. Poder entender esta resistência humana - a mais profunda delas - como expressão da invisível pulsão de morte e como sendo a tentativa mais radical de constituir e manter fechado o sistema psíquico nada mais é, em minha opinião que fazer ressoar através dos próprios termos - a mais radical estratégia - e a mais profunda resistência - as palavras usadas por Freud ao descrever a pulsão de morte.

A interpretação da pulsão de morte freudiana aqui adotada leva à concepção de uma tendência conservadora conduzindo à construção de estruturas e sistemas defensivos com objetivo último de frear o regime de livre escoamento da pulsão de vida e levar à constituição de barreiras externas e internas ao aparelho psíquico. Embora Rubens não mencione a pulsão de morte, ao descrever o desejo de negar mudanças e a experiência da perda como objetivos últimos da 'técnica' da depressão, apresenta uma excelente descrição do que seria a ação da pulsão de morte, segundo a interpretação que procurei desenvolver nas primeiras páginas deste texto. Toda minha argumentação procurava diminuir a importância da agressividade, do ódio e do sadismo como exemplos eletivos do trabalho da pulsão de morte e procurava ressaltar o caráter de retorno à quiescência e da constituição de um mundo próprio como sistema fechado como os melhores exemplos da ação das pulsões de morte. Por outro lado, negar a experiência da perda é antes de mais nada negar o desamparo, o qual se define justamente como resultado da experiência de perda das fontes supridoras, os objetos de amor. Neste sentido estamos sempre teorizando a respeito de uma mesma tendência conservadora, usando diferentes nomes. Trata-se da estratégia defensiva que procura, de maneira mais ou menos radical manter o status quo, fechar o sistema de trocas com o ambiente e criar estruturas e freios, sempre com o objetivo de diminuir o desamparo e assegurar a homeostase do mundo interno. Poderia dizer que o deprimido é quem ama o já estruturado, ama-o com paixão e dele não pode se separar nunca.

Segundo Rubens, por diversas razões metapsicológicas que não convém explicitar aqui, (mas remeto o leitor ao artigo citado), Fairbairn nunca se dedicou a construir uma teoria da depressão mas aponta, em vários textos para uma dimensão clínica - o sentimento de futilidade - que é tão recorrente nos pacientes deprimidos e que pode ser o ponto de partida para a construção de uma teoria da depressão fairbairniana 'a posteriori', em sintonia com o que venho desenvolvendo desde Freud. Eis uma citação indicativa disto em Fairbairn:

"o termo familiar de 'depressão' é frequentemente aplicado na prática clínica a pacientes que poderia ser descritos como sofrendo de um sentimento de futilidade"(1944, p.9)

Este sentimento de futilidade é aquela sensação de que nada vale a pena, de que o agir cotidiano é enfadonho e entediante, que nenhum relacionamento é suficiente ou gratificante, que a cota de frustrações ligadas ao trabalho e à vida social é excessivamente grande e capaz de estragar todo o prazer de viver. Este sentimento de futilidade e inutilidade de qualquer esforço que possa levar ao crescimento ou à mudança, acaba por se transformar em uma completa ausência da capacidade de sentir prazer, tão ampla e generalizada, que finalmente não valerá mais a pena viver.

Segundo a teoria de Fairbairn viveríamos encerrados em um paradoxo vivo, pois, se de um lado é imperioso constituir um aparelho psíquico como sistema fechado e diminuir a área de exposição ao que vem de fora, contato e trocas com o ambiente, de outro lado as perdas em termos de plasticidade e vitalidade são incalculáveis. Só quem viu uma pessoa deprimida, pode dizer através desta caricatura extrema, o horror que é a exigência de estruturação à qual não cessamos de responder e à qual não podemos nos furtar. A função estruturante que está a serviço da manutenção da vida é responsável por perdas e danos incalculáveis: acabam conduzindo o ego a um completo impasse, a um estado de impotência. Embora as perdas sejam incalculáveis em termos absolutos, pode-se começar a enumerá-las, o que nunca terá fim: perda do contato vitalizante, a perda do dinamismo dos vínculos, o envelhecimento, a construção de ideais, ideologias e sistemas fechados, o racismo, o fundamentalismo, a severidade superegóica, a dessexualização de todos os vínculos, a estagnação, a rigidificação dos princípios, das posições, o massacre do desejo, da vontade de viver, a solidão, a servidão, a pobreza, os preconceitos, a guerra, a violência, e finalmente a morte. Para se proteger do desamparo é preciso construir barreiras rígidas, porém estas gradativamente tornam o ego incapaz de se expressar e nesta medida, sua própria existência se torna comprometida ... "o efeito característico do estado esquizóide é sem dúvida um sentimento de futilidade"( Faribairn, 1941 p.51).

Segundo Rubens, e isto me parece bastante óbvio, o senso de futilidade que Fairbairn estava descrevendo é o que conhecemos como depressão. Este senso de futilidade não é, nesta teoria, baseado em um re-direcionamento da agressão ou na culpa edípica. É um estado de desamparo, impotência, e imobilização que deriva da incapacidade do indivíduo de abandonar seu apego absoluto e imutável aos objetos internos em face dos acontecimentos que o pressionam a fazê-lo. Em outro nível representa a tentativa geral de negar qualquer mudança no estado interno de coisas (o satus quo).



Ao falar da depressão como esta tentativa geral de negar a mudança do status quo, implicitamente afirma que ela pode ocorrer em todos os níveis do desenvolvimento, com diferentes 'tonalidades' dependendo do estágio considerado. Haveria então diferentes qualidades do sentimento de futilidade esquizóide que não apareciam nas manifestações depressivas de estágios posteriores, mas é possível traçar uma linha de continuidade entre estes diversos sentimentos de futilidade. A idéia de que a estratégia depressiva pode ser utilizada em diferentes etapas de desenvolvimento está de acordo com outra idéia fairbairniana, a de que técnicas histéricas e obsessivas ocorrem nos diferentes estágios do desenvolvimento. Fairbairn considerava que mecanismos paranóides, fóbicos, histéricos e obsessivos podiam ser acionados em diferentes momentos para lidar com os conflitos entre amor e ódio. Chamava-os de 'técnicas transicionais' e atribuía-lhes a função de estratégias defensivas para administrar, combinando-as, a tendência a afrouxar o vínculo libidinal com o objeto, característico do ódio e a tendência a manter o vínculo libidinal e a posição da libido ameaçada pelo ódio.

Rubens acredita que o excesso de ênfase sobre a agressividade, nas descrições clínicas da melancolia em Abraham e Klein impediram de discernir um aspecto muito mais profundo: a tristeza que surge do reconhecimento e da aceitação da perda, que caracterizam um processo de luto normal, em nítido contraste com a depressão que é a negação do contato com a perda e sua dor, a tentativa neurótica de recusar e negar a perda.

A realidade da perda na experiência humana é um dos fatos mais centrais e decisivos de nossas vidas finitas. Estar vivo significa eventualmente morrer. Fazer um vínculo sempre abre a possibilidade de ter que lamentar a sua perda. Rubens escreve em um trabalho sobre a tragédia: "o processo de viver, o crescimento e mudança implica e perda contínua. Mover-se para um novo estágio de vida sempre envolve abandonar o nível anterior, formular uma nova integração da própria experiência sempre envolve abandonar uma integração anterior. (Rubens, 1992, p. 356).

Os processos de crescer e mudar são o que Fairbairn chama - viver em um circuito aberto. A noção fundamental da psicopatologia de Fairbairn é que a doença nada mais é que uma tentativa de viver em circuito fechado.

Escreve: "a manutenção de tal sistema fechado envolve a perpetuação do relacionamento vigente entre as várias estruturas egóicas e seus respectivos objetos internos assim com entre elas" (Fairbain, 1958).

Este sistema fechado seria decorrente do esforço de isolar, controlar e preservar aspectos intoleráveis da experiência, através da internalização dos objetos, criando vários sub-sistemas, compondo um circuito fechado. Este seria criado através de uma clivagem e mantido através de repressões. Em razão da incapacidade do Eu de lidar com os aspectos mais intoleráveis da experiência, isto é, do desamparo, impunha-se a criação destas estruturas que diminuíam a vulnerabilidade do Eu porém isto acabou prejudicando o crescimento e a expressão de si. Estas estruturas patológicas constituíam para ele o núcleo esquizóide e eram preservadas dentro da psique como sistemas cristalizados (ou circuitos fechados) que lutavam por se expressar sempre de acordo com o mesmo, imutável padrão no qual se basearam..

A depressão seria então a mais conservadora das manifestações psíquicas. Tem como propósito a manutenção de sistemas ou circuitos fechados do mundo interno. Ela procura manter o vínculo com os objetos internos, opondo uma resistência total ao reconhecimento do que é diferente, estrangeiro, seu lema é : nada de alteridade. A depressão não sabe fazer luto, não tem estômago capaz de metabolizar perdas. É desencadeada quando alguém se opõe violentamente a uma transformação ou a uma perda que ameaça afetar o 'mundo interno'. É pois resistência ao crescimento e a qualquer mudança que não se encaixa com a expectativa do sistema fechado. São precisamente as mudanças que conduzem ao crescimento, as que mais ameaçam o status quo interno, provocando toda sorte de recuos.

Novas experiências de um relacionamento profundo e afetivamente engajado tem o poder de afrouxar os padrões incorporados, porém, do outro lado, a depressão busca ativamente manter, conservar, preservar o mesmo.

Em seu discurso o deprimido ilustra muito claramente este aspecto conservador: sente falta de esperança, de ânimo ou vontade de mudar. Sente impotência e desamparo, e está convicto de que nada pode ser alterado. Ele se sente completamente incapacitado para lidar com as perdas e para sobreviver ao que está ocorrendo ou ameaça ocorrer. Vai entrando em uma imobilização psíquica e física: qualquer ação significativa é afastada com o sentimento de que 'não vale a pena'. Este sentimento de futilidade e falta de sentido estende-se para o viver como um todo. O deprimido se recusa a viver em circuito aberto.

A perda é um fato irrevogável do mundo externo, entretanto. Ocorre apesar de todos os esforços para evitá-la, é uma realidade apesar de todas as tentativas de negá-la. É por isso que o deprimido é obrigado a se retirar para o sistema fechado, o seu mundo de objetos internos. Lá pode se agarrar à crença de que relacionamentos, objetos e estados do self podem ser mantidos em um estado eterno e imutável, do mesmo modo que os objetos soterrados de Pompéia (mencionados por Freud) se tornaram ao mesmo tempo preservados e inaccessíveis, através do soterramento. Neste mundo interno não há morte ou perda, mas também não há crescimento ou mudança. Pompéia é uma cidade morta. O preço desta eternidade é a ausência de vida e de vitalidade.

É fácil perceber então que o mergulho do deprimido na experiência da perda é um sofisticado método de evitar o contato real com a dor da perda. De fato, a reação deprimida busca negar a realidade, de modo a preservar o estado interno anterior. Desde Freud se tornou claro que se o luto (ou a tristeza) envolve a aceitação da perda e resulta na decisão de prosseguir vivendo, por outro lado, a depressão trabalha contra uma resolução que capacite a continuar vivendo.

Deste ponto de vista, existe uma relação inversa entre tristeza e depressão. Desde que possamos experimentar tristeza, não se está deprimido e desde que se está deprimido, não se poderá experimentar tristeza. Isto é verdade, pois a tristeza é uma reação à aceitação da perda, envolve temporalização, entrada no rio de possíveis transformações, ao passo que a depressão é sempre negação do movimento, da perda e da transitoriedade de tudo. Clinicamente é muito importante diferenciar entre estes dois estados diametralmente diferentes.

É preciso rever a velha idéia de que o advento de uma depressão durante a análise é um sinal positivo. Quando um paciente atingiu um ponto no qual alguma mudança estrutural pode ocorrer - ou está ameaçando ocorrer - é bem possível que o paciente possa recorrer à defesa da depressão para bloquear ou negar a mudança. Se não houvesse ameaça de mudança, esta reação não seria necessária. Podemos então prosseguir na direção contra a qual a depressão está se colocando. Se a depressão está clamando que as coisas estão indo mal e perigosamente mal, isto é a perspectiva do desejo não saudável de manter o sistema fechado. Tal consciência pode ajudar o analista e o paciente a encontrar coragem para suportar esta passagem.

Entretanto, o desenvolvimento mais positivo durante o tratamento não é a emergência da depressão, que representa, enfim uma resistência a uma mudança iminente, mas a emergência da tristeza, que marca a aceitação real da mudança. Freud havia dito que a análise transforma a dor neurótica em uma dor comum. Apenas a depressão pode ser objeto de análise, a tristeza não o é, e recuperar a capacidade de se entristecer é um sinal de cura. A conclusão não é pessimista, já que a tristeza contém nela as mais radicais possibilidades de resolução, ao passo que a depressão luta para desafiar qualquer tipo de resolução.

Freud (1917) concluiu que há um elemento narcísico na escolha de objeto que predispõe alguém à depressão. Recordando a definição de Freud da identificação primária como "o investimento de um objeto que ainda não foi diferenciado do investimento do sujeito", à qual Faribairn aderia, fica claro que Freud e Fairbairn reconheceram que a inabilidade para experimentar tristeza e perda está baseada em um nível primitivo de conexão com o próprio mundo de objetos internos. Esta conexão não permite perder alguém sem que se perca a porção do Eu que está ligada com o objeto. É para evitar tal perda do Eu que a pessoa deprimida se retira em seu mundo interno, para negar a possibilidade de uma perda narcísica.

Ao voltar a agressividade destinada originalmente ao objeto, para o self, a manobra depressiva consiste em evitar a tristeza de ver o objeto se perdendo de vista, e o jeito de se cegar é tornar mau o self . É mais difícil aceitar a ausência do objeto do que tornar mau o self, trocando o mal incondicional da ausência de suas fontes de prazer por uma maldade condicional ou moral, que permite operar de modo menos aterrorizador. É sempre mais fácil suportar a perda da 'bondade' (o termo 'bounty' que significa a generosa dádiva) parental, se reconhecendo como moralmente mau. Para este autor (Fairbairn), sentir-se mau seria mais uma técnica de isolar-se do acontecimento da perda, evitando-o; é sempre uma tentativa de preservar a situação endopsíquica.

A culpabilidade melancólica é uma auto-flagelação que mantém a pessoa no mesmo lugar, em face de todo e qualquer estímulo que promova mudança. O paciente que fica se acusando de fumar, ingerir drogas, ser infiel, comer em excesso não demonstra sentir um remorso que leva realmente a uma mudança da situação. Esta auto-flagelação serve como penitência para que fique na mesma posição.

Em resumo, a estrutura do mundo interno é, nesta teoria, criada e mantida através de clivagens e repressões e a depressão trabalha para isolar a estrutura da abertura à mudança e à perda, inerentes à experiência com o mundo exterior. A depressão ataca o sentimento de vitalidade e eficácia e o desejo de viver para criar uma homeostase e um sentimento de inércia, de maneira a reassegurar que o mundo interno não precisará ser mudado por que não há vontade para mudá-lo. Seria uma tentativa ativa de defender os vínculos já estabelecidos.

A grande questão para o analista é conseguir penetrar sob os mecanismos defensivos nos sistemas neuróticos fechados que estão sendo defendidos. Se compreendemos a depressão como recusa da perda, para manter a integridade de um sistema fechado, pode afrouxar-se a resistência ao processo de abertura do sistema. Se o desamparo, a desesperança e a impotência dos deprimidos são vistos como ataques à capacidade positiva da pessoa para o crescimento, exatamente nos momentos em que este crescimento é possível, pode-se, através do desmascaramento do mecanismo, diminuir a oposição ao crescimento.

Neste trabalho procurei mostrar que a interpretação da pulsão de morte como retorno à quiescência mineral e desejo de não mais desejar é a tendência mais radical para combater a vivência do desamparo e os perigos que ameaçam a homeostase narcísica. É também a mais profunda resistência e recusa a qualquer mudança no status quo. A tarefa do analista seria favorecer que o deprimido possa afrouxar o seu apego às reminiscências de todas as frustrações e ressentimentos que o mantém firmemente apegado ao passado, permitindo que se inicie um processo de luto. Esquecer as infindáveis picuinhas da infância, sair da posição de reis e rainhas profundamente ofendidos, deixar passar o passado e admitir as perdas e a transitoriedade de tudo são outros tantos objetivos que envolvem uma entrada no tempo e no regime de transformações. Se o paciente pode abandonar as crostas mineralizadas e amortecidas onde se refugiou e abrir seu mundo interno na direção centrífuga e irradiante do Eros, aumentando seus investimentos objetais e podendo se expor um pouco mais ao desamparo, uma grande vitória analítica pode ser comemorada. A luta entre aceitar a própria vulnerabilidade e o desejo de se fechar em uma fortaleza vazia são os pólos deste conflito que deverá ser re-atualizado no campo da transferência. Será preciso fazer o luto de milhares de microferimentos ao longo de uma vida, para aceder à capacidade de amar e ao prazer de pensar a experiência de sua vida. Vimos que a capacidade de sentir tristeza verdadeira é o sinal de que este processo de liquidação do passado foi posto em curso. Freud nos ensinou que a essência do perigo consiste na ameaça de perder suas fontes de prazer e segurança, ou em última análise, a ameaça de ter seu narcisismo rasgado. Ora, nada é mais ameaçador para o narcisismo do que a experiência de amar e por isso pode-se dizer que a maior ameaça ao equilíbrio narcísico é a emergência do desejar. Nesta direção trabalha o analista, contra a maior tendência conservadora que se tem notícia: a dinâmica do paciente deprimido. Entretanto, às vezes quando está para ter início este crescimento, a mudança assusta o paciente, que volta a se agarrar a suas velhas certezas, ansioso por manter o circuito interno bem fechadinho. Neste ir e vir contra e através desta forma mineral de resistência, transcorrem as análises dos deprimidos.

Elisa Maria Ulhôa Cintra
Endereço(s) eletrônico(s): elcintra@netpoint.com.br
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