Psicanálise e complexidade uma conexão possível

Alcimar Alves de Souza Lima

"Na lógica formal, uma contradição é o indicio de uma derrota, mas, na evolução do saber, ela marca o primeiro passo do progresso em direção à vitória".
Whitehead

"Foi-me necessário reconhecer que o meu sistema era contraditório em si mesmo e essa contradição estava não além da lógica Aristotélica, mas aquém de qualquer lógica, inclusive dialética".
Edgar Morin

Estamos em 1999. O século XXI nos bate frontalmente. É um momento de uma avaliação, mas também um momento de aposta e de tentarmos perceber, nas malhas do tecido social em que a psicanálise está incrustada, como essa tecedura, como esse bater do tear poderá criar novas padronagens e nuanças.

O objetivo deste texto é tentar uma articulação dos textos freudianos com idéias e textos contemporâneos; tentar uma possível articulação de conceitos freudianos, como o de narcisismo, de séries complementares, de pulsões, de libido, etc, com conceitos de outras áreas da ciência, da filosofia e das artes, possibilitando a conexão psicanálise e complexidade.

Edgar Morin em "O método- a vida da vida", nos diz: "Assim, a ambigüidade, a incerteza, o ruído, o erro só em primeira instância são limites, lacunas, insuficiências na comunicação ecossistêmica. Em Segunda instância, são fatores de complexidade, de requinte, de sutilezai".

Tentarei, ao longo desse texto, salientar como Freud, mesmo trabalhando com categorias características de seu tempo, de uma certa forma já levava em conta a contradição, a incerteza, o ruído, a multiplicidade, mesmo isso aparecendo de forma latente.

Ainda nos anos 90 do século passado, Freud produz "Para uma concepção das Afasias" (1891), onde as questões que a linguagem suscita já estão presentes. A meu ver, o surpreendente nesse texto, por excelência neurológico/médico, é já estar contida nele a idéia neurologia/linguagem, inaugurando de certa forma as noções de complexidade que no nosso atual momento histórico aparecem com bastante força. No "Projeto" de 1895, também se pode reconhecer essa característica; se a neurologia é mantida, por outro lado, idéias como de ligação, facilitação, complexos, representação, recalcamento e outros conceitos metapsicológicos já estão claramente presentes.

Desenvolverei cada um desses conceitos. A idéia de ligação "bindung" traz consigo os sentidos de junção, de laço, e o importante que já está contido na palavra bindung é a idéia de laço afetivo, ou seja, a livre intensidade tem que ser atada, fixada, contida. Para que haja organismo, para que haja organização, são necessárias conexões de níveis de organizações, por exemplo nível da natureza inorgânica e nível biológico; nível psíquico e nível somático, e assim por diante.

Freud no "Projeto para uma psicologia científica" nos diz: "Os neurônios devem ser encarados como partículas materiais" pág 395 vol I, isso sinalizando para um tipo de organização material. Logo mais cita "Em primeiro lugar, o princípio de inércia explica a dicotomia estrutural (dos neurônios) em motores e sensoriais como um dispositivo a neutralizar a recepção de Qn', através de sua descarga. O movimento reflexo se compreende agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: o princípio dá o motivo do movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instãncia, vincular o sistema nervoso como herdeiro da instabilidade geral do protoplasma , à superfície externa irritável ( de um organismo), que é interrompida por extensões consideráveis de superfície não irritável. Um sistema nervoso primário faz uso dessa Qn' assim adquirida para descarregá-la nos mecanismos musculares através das vias correspondentes, e desse modo se mantém livre de estímulos.Essa descarga representa a função primordial do sistema nervoso. É aessa altura que se pode desenvolver uma função secundária, pois, entre as diversas vias de descarga, são preferidas e condservadas as que acarretam a interrupção dos estímulos: fuga do estímulo. Em geral, aqui se verifica uma proporção entre a Q de excitação e o esforço requerido para a fuga Do estímulo, de modo que o princípio da inárcia não fique abalado com isso" Freud vol I pág 397

Como as representações são atadas, conectadas nesse contexto de ligação e como tudo isso tem a ver com a dança possível produzida entre o representacional e o afetivo?

Isso nos faz pensar na possibilidade das reações químicas que acontecem nas grandes intensidades e um aparelho psíquico também organizado no calor das intensidades como Freud nos propõe em seu artigo "Introdução ao narcisismo" em que nosdiz que, para que haja surgimento do eu há a necessidade de um novo ato psíquico que funcionaria como organizador do auto erotismo, as vivências de corpo despedaçado sem registros representacioais em palavras. Nesse momento teremos a possibilidade de instauração do narcisismo, portanto, uma conexão entre auto erotismo e narcisismo sempre mediada pela função materna. Começa a aparecer a idéia de compromisso no contexto da organização na relação, a necessidade do outro para que haja uma organização, uma auto organização.

Esse termo ligação é importante para começarmos a trilhar o caminho em direção ao conceito de complexidade que será exaustivamente tratado no texto. Porém já gostaria de salientar que a palavra ligação tem utilização em áreas da química, da física , da tecelagem, no sentido daquilo que enlaça, que tece. Essa extensão avança na biologia com a expressão "tecido conjuntivo". A palavra ligação, em síntese, tem a ver com atar e desatar, tem a ver com trânsito e com fluxo.

O radical bahn da palavra "bahnung" ( facilitação) significa pista, caminho aplainado, estrada. Facilitação é algo como um ato de abrir pistas ou um ato de abrir vias de trânsito. As interligações nervosas entre neurônios em um nível marcam uma organização e o trânsito/conexões entre representações, estabelecem um outro nível de organização.

Freud em 1895 escreveu: "A idéia de combinar essa teoria da Qn" com a noção dos neurônios, estabelecida pela histologia contemporânea, constitui o segundo pilar dessa tese. A essência dessas novas descobertas é a de que o sistema nervoso se compõe de neurônios diferentes, homogêneos em sua estrutura, que se mantêm em contato mediante uma substância estranha, terminando uns sobre os outros como se fossem sobre pedaços de tecido estranho (e) nos quais se acham estabelecidas determinadas vias de condução, no sentidode que eles (os neurônios) recebem (estímulos) através dos processos celulares (dendritos) e (deles se descarregam) através de um cilindro-eixo ( axônio). Além disso, possui inúmeras ramificações de vários calibres".Freud vol I pág.391

Freud captou, no próprio interstício do orgânico no registro do biológico, esses desdobramentos contidos na palavra facilitação e partir daí a teoria que começou a criar mostra claramente que a complexidade já estava começando a aparecer de forma embrionária.

Gostaria de ressaltar aqui uma diferença que julgo fundamental entre metáfora e desdobramento.

A metáfora tem por característica o emprego de uma palavra ou expressão em um sentido diferente do próprio por semelhança, como por exemplo: "Não cegue as duas estrelas da alma que são as janelas do sentimento, os olhos". Caldas Aulete

O desdobramento se expressa em uma passagem de fase em níveis diferentes de organização, por exemplo, a água quando está em cada um de seus estados, sólido, líquido ou gasoso, apresenta propriedades diferentes, tais como a agregação das moléculas, a temperatura, a transparência e outras características.Entretanto ela se mantém como água. Um observador reconhecerá essas carasterísticas de seu estado e não a confundirá com outra organização nesses desdobramentos que ela sofreu. Portanto são várias formas de se organizar dentro de uma mesma organização.

No campo biológico, na expansão da vida, por exemplo, encontramos a metamorfose das borboletas (passagem da crisálida para borboleta). São formas desdobradas muito distintas uma da outra; contudo, para se chegar a borboleta, passa-se pela metamorfose da crisálida.

Assim sendo, a "bahnung", como ato de abrir pistas, caminhos, rotas, condiciona uma direção, a qual traz uma mudança de fase em um sentido físico e/ou uma metamorfose no sentido biológico.

No universo psíquico teríamos organizações neurológicas que podem se desdobrar em organizações psíquicas. Com isso não estou querendo fazer uma biologização do psíquismo e sim mostrar níveis de organizações desdobradas.

A palavra "bahn" é também um termo médico/neurológico do século XIX, designando as vias nervosas. Por essas vias que se cruzam, que se interligam, nos conduzem atualmente, começo do éculo XXI, a produzir a idéia de redes, "net", onde circulam impulsos nervosos, neurotransmissores como mediadores químicos, tais como serotonina, nor-adrenalina, e outros, estabelecendo conexões por todo o organismo.

Freud percebeu essa relação da "bahnung" biológica, neurológica, desdobrando-se para formular o arcabouço do aparelho psíquico. Assim sendo, no "Projeto para uma psicologia científica", de 1895, a palavra "bahnung" é usada concretamente para designar via, caminho, trilha indicada, de ligações neuronais. A "bahnung"como instalação de vias instaurava traços, rastros, pistas e esse conjunto produz uma rede. Nesse texto Freud está colocando o acento na conceituação da memória orgânica evidentemente; contudo, é do desdobramento tópico, econômico e dinâmico que tudo isto é posto. Os desdobramentos seguirão por toda a obra, como processo associativo, traço mnêmico, associação, resistência...

Na "Interpretação dos sonhos" (1900) a palavra "bahnung"se ligará à idéia de condensação e deslocamento, que servem de vias facilitadoras para percorrer a rede de associações e investir representações que não entram em conflito com a censura. A essa altura, o desdobramento que criou a linguagem que tem como características código, sistema de signos e ordem simbólica inserida na cultura já está posta, proveniente do processo de desdobramento acima citado. Contemporaneamente, esse processo aparece descrito no artigo "Neuroimagem e neuropsicologia do estriado" - Transpondo a ciência básica e a prática clínica de Scott L.Ranch e Cary R. Savage contido no livro Neuropsiquiatria dos gânglios da base.

Em 1896, em "A herança e a etiologia das neuroses", já aparece claramente a idéia de um aparelho psíquico onde a linguagem está produzindo efeitos claros para a produção de uma neurose. Portanto, há aí uma clara articulação neurose / linguagem. Segundo Freud, "As idéias obsessivas, reconhecidas pela análise em seu sentido íntimo, reduzidas, por assim dizer, à sua mais simples expressão, não são senão reprovações que o sujeito se dirige pelo gozo sexual antecipado, se bem que as reprovações desfiguradas por um trabalho psíquico inconsciente de transformação e substituiçãoii". (grifo meu).

Mostrou-se claramente que, para Freud, o " Projeto" foi a produção de um arcabouço teórico do aparelho psíquico. A citação acima foi elaborada por Freud logo após o "Projeto".

Freud dizia, em uma famosa carta a Fliess, de 1897: "as histéricas mentem", começando a trazer a idéia de que as lembranças que suas analisandas traziam nem sempre haviam ocorrido em seu cotidiano e muitas vezes essas lembranças haviam somente transcorrido em seu universo psíquico, em seu mundo fantasmático, começando, assim, a esboçar o conceito de realidade psíquica e, latentemente, o conceito pilar de complexo de Édipo.

O século XX foi extremamente fecundo para a psicanálise. No seu início, 1900, marca a entrada do século, que só começa realmente em 1901, com "A Interpretação dos Sonhos". Esse texto é um marco fundamental para a psicanálise, colocando os quatro elementos, a saber, condensação, deslocamento, possibilidade de simbolização e elaboração secundária, como quatro conceitos norteadores para esse novo conhecimento ( que a essa altura não tinha ainda duas décadas de existência) com forte acento no representacional.

No caso Dora, o conceito de transferência ainda não era utilizado. Aliás, é a partir deste estudo que Freud mergulhará fundo neste conceito. Sua obra deverá entrar no século XXI com grande vitalidade e potencialidades para mutações.

Voltando ao início do século, logo o conceito de narcisismo entrará em cena. As questões do eu e do outro, suas identificações, e suas possibilidades organizativas com a cultura inauguram uma nova possibilidade para a criação e produção da subjetividade.

A questão pulsional está presente na obra inteira de Freud, começando com a dualidade entre pulsões de auto-conservação e pulsões sexuais, evoluindo a nova dualidade entre pulsões do ego e pulsões sexuais e para a última concepção de Freud, que opõe as pulsões de vida às pulsões de morte. Essa última concepção marcará grandes transformações teóricas em sua obra. O peso dado ao sexual será relativizado e a pulsão de morte, como produção / criação, ocupará um grande espaço.

Estou começando esse texto assinalando alguns "flashs" de como alguns conceitos fundamentais se historicizaram para podermos, um pouco mais na frente, trabalhá-los com mais profundidade, porém já agregados aos a conceitos da teoria da complexidade, os quais não estavam elaborados no tempo de Freud. Ele vai compondo a psicanálise como uma grande sinfonia. Não se intimida, em seus textos, de recorrer aos filósofos gregos pré-socráticos e socráticos, quando estes são necessários para dar mais um acorde a essa sinfonia. Nessa medida, ele percorre a filosofia, a literatura. A ciência de sua época é exaustivamente trabalhada. Explora o cotidiano, as artes plásticas e todos os campos do conhecimento que estão ao seu alcance. Assim sendo, ele produz um método para esse novo campo do conhecimento que está sendo criado. Esse método, em suma, é extremamente novo e empolga o mundo com idéias revolucionárias. Porém, para sua época, impregnada de determinismo, isso foi visto com muita desconfiança, como falta de rigor científico.

Que concepção de Ciência estaria na base desse julgamento?

O início do século é extremamente determinista. As idéias newtonianas, laplacianas, são as dominantes. Freud tenta se enquadrar nesses rigores, porém deles escapa a todo momento.

O conhecimento, naquela altura, está, do ponto de vista epistemológico, mergulhado em partições, cada campo do conhecimento devendo ter fronteiras precisas. A biologia, a física, a química, eram vistas cada uma dentro de seu universo e as ciências da natureza deveriam ser completamente separadas das ciências humanas. Nada de articulações, nada de complexidade.

Porém, alguns autores do início do século, tais como Ludwig Boltzmann, Henri Poincaré e Freud, estão atentos à essa metamorfose que a ciência está sofrendo, isto é, a passagem do determinismo ao acaso, levando em conta a irreversibilidade do tempo.

Prigogine nos diz: "O paradoxo do tempo só foi articulado tardiamente, na segunda metade do século XIX, graças aos trabalhos do físico vienense Ludwig Boltzmann. Ele acreditara poder seguir o exemplo de Charles Darwin na biologia, e fornecer uma descrição evolucionista dos fenômenos físicos. Sua tentativa teve como efeito pôr em evidência a contradição entre as leis da física newtoniana, baseadas na equivalência entre passado e futuro e qualquer tentativa de formulação evolucionista que afirme uma distinção essencial entre o futuro e o passado. Na época, as leis da física newtoniana eram aceitas como e expressão de um conhecimento ideal, objetivo e completoiii".

Em 1905, Poincaré assinala com muita precisão - em O valor da ciência - a necessidade de criação de uma nova mecânica. No bojo dessas idéias, trafega pela concepção de verdade e pelas possibilidades do progresso da ciência.

Sobre a verdade, diz: "Quando falo aqui da verdade, sem dúvida quero falar primeiro da verdade científica; mas quero falar também da verdade moral, da qual o que chamamos de justiça não é senão um dos aspectos. Parece que abuso das palavras, que reuno sobre o mesmo nome dois objetos que nada têm em comum; que a verdade científica, que se demonstra, não pode de modo algum aproximar-se da verdade moral, que se sente. Contudo, não posso separá-las, e aqueles que amam a uma não podem deixar de amar a outraiv".

Com este pensamento de Poincaré, começamos a aproximar a ciência da cultura e da construção da ética, das leis, em vez de as pensar como leis eternas e válidas em todos os contextos. Nesse sentido, Poincaré nos alertará alguns parágrafos adiante: "Os progressos da ciência parecem pôr em perigo os mais estabelecidos princípios, inclusive aqueles que eram encarados como fundamentais. Nada prova, contudo, que não se chegará a salvá-los; e mesmo que só se consiga fazer isto imperfeitamente, ainda subsistirão, embora transformados. Não devemos comparar a marcha da ciência com as transformações de uma cidade, onde os edifícios envelhecidos são impiedosamente demolidos para dar lugar a novas construções, mas sim com a evolução contínua dos tipos zoológicos, que se desenvolvem sem cessar e acabam por se tornar irreconhecíveis aos olhares comuns; mas um olho experimentado reencontra sempre os vestígios do trabalho anterior dos séculos passados. Não se deve crer, pois, que as teorias antiquadas foram estéreis e vãsv "

Poincaré, numa contemporaneidade fantástica com Freud, mostra neste parágrafo uma ciência que leva em conta a evolução e as possibilidades da cultura, uma se intercambiando com a outra.

O conceito freudiano de séries complementares, contido na vigésima terceira das Conferências de Introdução à Psicanálise de 1917, aponta para essa mesma direção, ou seja, como levar em conta o novo e as produções sem deixar de lado a tradição.

Produção e novo estão numa báscula contínua, em perene movimento articulado com a tradição, com a herança. Vamos aqui entrelaçar a questão das séries complementares freudianas (que leva em conta as vivências dos ancestrais e as vivências infantis), com a tentativa de Poincaré articular a evolução dentro das ciências como um todo, e não só dentro da biologia.

Em Pulsões e destinos de pulsões, de 1915, Freud deixa bem claro o seu pensamento em relação à ciência: "Temos ouvido expressar mais de uma vez a opinião de que uma ciência deve ser edificada sobre conceitos fundamentais claros e precisamente definidos. Na realidade nenhuma ciência, mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro princípio da atividade científica consiste na descrição de fenômenos que logo são agrupados, ordenados e relacionados entre si... A princípio, deve apresentar certo grau de indeterminação... Porém, o progresso do conhecimento não tolera a inalterabilidade das definiçõesvi".

Temos então, já em Freud, as postulações que começam a levar em conta a indeterminação e o acaso, concomitantemente com a questão da herança e da tradição. Essa questão - herança e tradição - é recorrente na obra de Freud: a pulsão como conservadora e como possibilitadora do novo estará sempre na sua mira.

Freud mergulha densamente na cultura, articulando as séries complementares à herança contextualizada na cultura, ou seja: linguagem e pulsões emaranhadas. Dá à palavra uma dimensão pulsional, e diz também que toda pulsão é um fragmento de atividade.

Caos/ordem e fractais

Disso podemos começar a pensar se a pulsão como um conceito-arco que estabelece conexões com o caos e com as organizações crescentes em perene movimento.

Podemos nos aproximar das emanações do caos através das organizações fractais. Um fractal é uma maneira de visualizar o infinito; é uma possibilidade de captação da complexidade com pequeno número de dados, pois o grau de irregularidade permanece constante em diferentes escalas, mostrando que a natureza exibe uma "irregularidade regular". O conceito de fractal remete a uma primeira unidade de organização a partir da pulsação do caos, e pode também ser concebido como a rota para o caos e as expressões possíveis emanadas dele.

As organizações fractais são uma forma de ver a repetição diferencial em vez de se deter nos grandes sistemas: estes estão para o século XIX assim como a organização fractal está para o início do século XXI.

Outra idéia fundamental que está presente na complexidade é a de que na relação entre a parte e o todo, não é somente a parte que está contida no todo, mas também o todo está contido na parte. Esta idéia tão fundamental foi também desenvolvida por Mandelbrot no conceito de fractal, elaborado em 1975. Ele vinha trabalhando com formas e dimensões, propondo uma geomentria muito específica em torno de padrões irregulares constantes na natureza. A idéia de fractal contém algumas vertentes que analisaremos nessa citação:

"A palavra fractal vem do adjetivo fractus, do verbo frangere: quebrar, fraturar. Um fractal é uma maneira de ver, de visualizar o infinito. O fractal é a possibilidade de captação da complexidade com um pequeno número de dados.

Mandelbrot foi além das chamadas uma, duas, três dimensões.A dimensão zero qualifica o ponto. A dimensão um, a reta. A dimensão dois, o plano. A dimensão três, o volume. A quatro, o espaço-tempo. As dimensões fracionárias, ou fractais, são dimensões "entre", por exemplo, entre o um e o dois. São formas extremamente complexas e simples, pois, através de regras simples, se vislumbra o infinitovii".

Exemplificando, na natureza não encontramos retas, cubos, ou seja, as formas euclidianas, mas árvores, montanhas, litorais, os sistemas vasculares, os brônquios. Essa é a geometria da natureza e a forma com que ela se expande, movimenta e cria é a de bifurcações. O mais apaixonante é que isso tudo está dentro de uma auto-organização. Assim sendo, o estudo do que chamamos auto-organizações e bifurcações é fundamental para o pensamento psicanalítico, pois é através desses conceitos que vamos poder formar uma outra concepção do que chamamos história. Todos os novos paradigmas da ciência têm a ver com esse conceito.

A especificação do conceito de fractal é fundamental para nos aproximarmos do conceito freudiano de compulsão de repetição que nos conduzirá ao conceito de intensidade. Chamo atenção para a articulação desses conceitos com a psicanálise do século XXI.

Nessa "rota para o caos", ou nessa virtualidade que o caos produz, que é fractal, existe uma aproximação possível com o conceito de pulsões em Freud: "A pulsão, por outro lado, não atua como uma força de choque momentâneo; ela sempre atua como uma força constanteviii", diz ele em Pulsões e destinos de pulsões. Em meu modo de entender, esta frase mostra que a pulsão pode variar nas intensidades, enquanto o constante tem a ver com o potencial, com a virtualidade que sempre está presente no organismo vivo.

O conceito de pulsão em Freud é certamente mais amplo do que a questão da virtualidade que nele está contida. Ele se estende das virtualidades até as relações objetais. No entanto, a potência e a virtualidade estão latentes neste conceito e passam a ser colocadas claramente quando se postula que a intensidade da pulsão é constante. Esse constante se refere a uma torneira que não se fecha enquanto houver vida; as variações estão ligadas às intensidades do jorro de água dessa torneira. Portanto, a constância está articulada à duração da vida e à variação articulada a intensidades emanadas por essa virtualidade.

O conceito de pulsões se expande da virtualidade (que é da ordem do caótico, do apresentacional), até o representacional. Neste percurso não-linear, trafega das intensidades não-representacionais até às relações objetais.

No conceito freudiano de pulsão, que é somato-psíquico, temos quatro elementos organizadores: força, fonte, alvo e objeto. A meu ver, esse é o conceito mais amplo que temos dentro da psicanálise, pois o próprio conceito de inconsciente está contido nele.

O conceito de caos, como Deleuze e Guattari o postulam, é o seguinte: "Define-se o caos menos por sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda forma que nele se esboça. É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas possíveis que surgem para desaparecer logo em seguida, sem consistência, nem referência, sem conseqüênciaix".

Para essa conceitualização, os autores se basearam em uma experiência de Ilya Prigogine: trata-se da cristalização de um líquido super-fundido, que permanece líquido a uma temperatura inferior à sua temperatura de cristalização. "Num tal líquido formam-se pequenos germes de cristais, mas esses germes aparecem e depois se dissolvem sem gerar conseqüênciasx".

Como podemos articular essa experiência de Ilya Prigogine, a conceitualização do caos, e o conceito de pulsões freudianas?

O fundamental desse conceito filosófico não está centrado na questão da desordem, e sim na questão das intensidades e da virtualidade. É um conceito estético, posto que se trata da produção de formas e do desaparecimento das formas em concomitância. Daí a idéia de virtualidade.

Na experiência de Ilya Prigogine, portanto, algo ocorre na natureza e servirá para metaforizações. Pode-se deduzir que, quando se chegou ao estado de germes de cristalizações, isso fatalmente deveria gerar conseqüências naquela matéria. O surpreendente é que os germes de cristalização desaparecem sem gerar conseqüências. Isso mostra que não existe, nesse caso, garantia de persistência para as marcas dessa cristalização. Por isto, Deleuze e Guattari concluem que essa virtualidade, quando persiste como virtualidade, não deixa rastro algum "sem consistência, nem referência, sem conseqüênciaxi".

Freud inicia o capítulo de Pulsões e destinos de pulsões falando sobre indeterminação; depois evolui para falar de virtualidade, ao dizer que não se trata de uma força de choque momentânea, e sim uma produção constante.

Mas produção constante de quê? Existem duas possibilidades em Freud: a pulsão como conservadora e a pulsão como produção/criação.

A pulsão como conservadora consiste em um elo geracional que, através da genealogia do afeto, faz trafegar as séries complementares. A pulsão como produção/criação, através dos atos produzidos no aleatório e no caos, cria o primeiro jogo auto-criado - o fort-da freudiano - que também entrará nas séries complementares a posteriori. Isto será desenvolvido mais adiante.

Existe uma última concepção de afeto em Freud, a qual diz: "Através disso nós nada afirmamos, o que poderia dar à angústia um lugar de exceção entre os estados de afeto. Achamos que também os outros afetos são reproduções de acontecimentos antigos, de importância vital, eventualmente pré-individuais, e nós os comparamos, como típicos e comuns ataques histéricos congênitos, aos ataques individualmente adquiridos mais tarde da neurose histérica, cuja gênese e significado, como símbolos mnêmicos se tornaram nítidos para nós através da análisexii".

Essa última concepção de afeto em Freud aponta para um elo geracional, onde o pré-representacional fica embutido no afeto. É um registro de movimento, de sinfonia.

Hélio Pellegrino nos diz: "A linguagem é a terceira margem do rio, confluência do sonho e da realidade, núpcias da pulsão e do logos, que, no transporte da paixão, engendra o verboxiii". Assim, nos mostra que, para se ter o verbo, existe a necessidade de um caminho de intensidades que percorre as gerações; aqui e acolá, aparece o verbo, sempre acoplado à intensidade. Assim, temos uma genealogia do afeto entrelaçando as produções/criações no desenrolar da história de cada subjetividade.

Freud abre uma possibilidade para captar alguma coisa da dimensão caótica, portanto não-representacional. Estamos mergulhados no apresentacional. Como o apresentacional poderá ganhar representabilidade? A pulsão em Freud é um através, um conceito arco, que capta as emanações do caos - sempre fractais - através de seus constituintes, que, como já falamos, são: fonte, força, alvo e objeto; estes vão orquestrando uma movimentação.

As apresentações serão captadas por esse dispositivo pulsional, que não é somente do campo da linguagem, mas trafega nele. Em especial, a pulsão é somato-psíquica: portanto, temos produções de diversas ordens. Essas produções irão, desde alterações químicas no corpo, distúrbios metabólicos, produções tumorais, até chegar a expressões simbólicas como as dos sintomas neuróticos. A clínica articulada com o pulsional leva em conta todas essas expressões, e não somente as simbólicas.

Para pensar a psicossomática, temos que nos atirar no pré-representacional e no não-representacional. Os órgãos ou funções atingidas são assignificantes; precisamos trafegar pelas intensidades pulsionais para melhor compreender essas conexões e integrar a psicossomática no bojo da teoria psicanalítica: pois a vicissitude psicossomática é uma possibilidade de todo sujeito.

As formas fractais como expressão de criação que advêm do caos, produzem formas que possuem uma organização que se repete; porém, como emanação do caos, também surgem configurações novas.

As formas dos fractais, a essa altura, precisam de uma conexão mais clara com a psicanálise: essa conexão aparece em relação aos conceitos de repetição e compulsão de repetição. Esta é uma produção da pulsão de morte, enquanto a repetição está articulada ao princípio do prazer, em conexão com a pulsão de vida.

As neuroses traumáticas são detectadas através dos sonhos traumáticos: estes são tentativas de captar fragmentos (formas fractais) do acontecimento traumático e articulá-lo ao aparelho psíquico. Em si, o acontecimento traumático não dispõe de palavras. Daí, a necessidade econômica dos sonhos traumáticos. Uma vez esses sonhos repetidos à exaustão, eles ganham uma nova organização, e essa organização é fractal.

A forma fractal, como pré-representacional, faz a conexão entre o acontecimento traumático intenso e o restante da vida psíquica, produzindo o sonho traumático, que não é realização de desejo e sim a possibilidade de instauração de marcas em um universo representacional contido no sonho traumático. É essa compulsão de repetição que colocará no aparelho psíquico a possibilidade de flagrar o acontecimento intenso; e, se este ganhar marcas no aparelho, poderemos ver nisso a positividade da pulsão de morte: pois a compulsão de repetição é a fórmula mais pura que temos de expressão desta pulsão.

Dentro do aparelho psíquico, esse novo que foi introduzido em forma fractal (proveniente do acontecimento traumático) será integrado. Estamos então diante de um aparelho criativo, e não somente repetitivo, e que também se orquestra nas intensidades pulsionais assignificantes. As formas fractais que são produzidas no e pelo caos podem ser capturadas, e depois também repetem - em diversas escalas uma forma. Isso entra em conexão com pontos de fixação que, uma vez produzidos no acontecimento, repetem diferencialmente em - diversas escalas - algo da intensidade do acontecido, numa tentativa de integração. O caos disruptivo, que transborda toda a possibilidade de ordem, pode ser a via para repensar a psicanálise, já densamente mergulhada na cultura,e articulada com a complexidade.

Para compreendermos a complexidade/psicanálise, devemos aproximá-la da idéia de conexões, de articulações claras, de níveis organizacionais, de auto-organização, produção e evolução.

Na complexidade, o conhecimento necessita do auto conhecimento. Há uma necessidade de aprofundarmo-nos nas questões do movimento, de como flagrar o movimento dentro do movimento e não congelá-lo.

A noção de contradição também é fundamental para compreendermos a idéia de complexidade e de sistemas abertos, pois a contradição está não além da lógica aristotélica, mas aquém de qualquer lógica. Quando estudamos o campo pulsional, a meu ver temos que levar tudo isso em conta.

A conexão pulsional / complexidade levará à produção de novos conhecimentos que, dentro da antiga epistemologia, ficavam asfixiados.O aparelho psíquico, para ganhar uma dimensão complexa, tem que ser visto como tendo características de um sistema aberto, estabelecendo as conexões entre cultura e aparelho psíquico. Um sistema aberto está sempre podendo se arejar com outras variáveis. Ele não recusa o novo.

O determinismo muitas vezes fecha o sistema, estabelecendo relações de causa e efeito. Isso deve ser superado, pois, com o determinismo fechado, não poderíamos compreender nem mesmo as séries complementares freudianas, que articulam o vivenciar pré-histórico com as vivências infantis e com o cotidiano da vida para a produção do sujeito. Esse sujeito que Freud postula é um sujeito que traz a tradição e a herança, articula-as com sua infância, vive o seu tempo e assim se produz como sujeito historicizado em sua época.

A compulsão de repetição deve ser separada do conceito de repetição. A repetição aparece em Freud desde o início da sua obra e sempre articulada ao princípio do prazer. A concepção de compulsão de repetição aparecerá em "Além do Princípio do Prazer" em 1920 e estará articulada à pulsão de morte. Assim sendo, a repetição está articulada ao princípio do prazer e à pulsão de vida; a compulsão de repetição está articulada ao além do princípio do prazer e à pulsão de morte.

Essa diferenciação é fundamental para podermos começar a esboçar a idéia de um "pré - representacional" e sua relação com o registro das representações. No texto "Além do Princípio do Prazer", Freud começa falando das neuroses traumáticas, portanto, de intensidades e não de representabilidades. Após essa explanação ele traz a idéia de como surge o primeiro jogo auto-criado de uma criança. Primeiro jogo e auto-criado, são idéias que estabelecem uma distância com o determinismo fechado e levantam de imediato a questão da criação. A questão da compulsão de repetição na psicanálise sempre ficou muito ligada à pulsão de morte, mas em seu aspecto mortífero e empobrecedor.

Se nos atentarmos, nesse texto Freud está dando grande ênfase ao primeiro jogo auto-criado. Ele está esboçando a idéia de possibilitar o surgimento do simbólico, na espécie humana, através do jogo de intensidades; daí, o início do texto estar pautado pelas neuroses traumáticas. O texto se move, então, através das relações entre intensidades traumáticas e possibilidades de produção e criação.

Prigogine, através de seu conceito de estruturas dissipativas, mostra-nos como nos sistemas que caotizaram (portanto, sistemas de pura intensidade, pura virtualidade, onde nenhum caminho pode se predizer), surgem espontaneamente estruturas dissipativas que são novas, disruptivas e inesperadas. São potências, são virtualidades de que podem devir organizações.

Prigogine nos diz: "A atividade humana, criativa e0 criadora, não é estranha à natureza. Podemos considerá-la como uma amplificação e uma intensificação de traços já presentes no mundo físico e que a descoberta dos processos longe do equilíbrio nos ensinou a decifrarxiv".

Nesta citação de 1996, em "O fim das certezas", Prigogine está intimamente conectado com o Freud de "Além do Princípio do Prazer", texto no qual ele articula a neurose traumática com circunstâncias nas quais o aparelho psíquico está mergulhado em intensidades caóticas. Na linguagem freudiana, "Creio que podemos nos atrever a conceber a neurose traumática comum como o resultado de uma vasta ruptura da proteção anti-estímulovx".

Aqui começa uma elaboração fundamental, em Freud, para tentar mostrar como, através de uma grande intensidade, o aparelho psíquico, que já possui uma organização, caotiza-se frente a essa intensidade. Com esse abrupto, essa surpresa diante da qual o aparelho psíquico se depara, este não tem como defender-se com o medo ou com a angústia. Assim sendo, postula essa vivência como terrorífica, levando à caotização do aparelho psíquico. Como o aparelho caotizado encontra uma possibilidade de organização? Essa possibilidade chama-se compulsão de repetição, que é um fragmento do acontecimento que tentará marcar, produzir um traço, neste aparelho psíquico. Essa marca, esse traço, deverá ser produzido no id e a conseqüência dessa marca aparecerá na compulsão de repetição dos sonhos traumáticos e em qualquer compulsão de repetição que não necessariamente venha pela via do sonho. O sonho traumático não é realização de desejo, mas produção / criação de uma fração do acontecimento que entrará nos sistemas psíquicos nas altas intensidades, mostrando que os sistemas psíquicos são abertos ao acontecimento e inseridos na cultura.

É nessa situação que a intensidade produz o novo. No caso, o novo é a compulsão de repetição, que capta uma fração do acontecimento e tenta marcá-la no aparelho psíquico. Nós podemos captá-la na forma de compulsão de repetição, que é uma produção da pulsão de morte.

Segundo Freud, no capítulo VIII de Inibição, Sintoma e Angústia, "Opinamos que também os outros afetos são reproduções de acontecimentos antigos, de importância vital, pré individuais, semelhantes a ataques histéricos universais, típicos, congênitos; comparamo-los com os ataques da neurose histérica que se adquirem tardiamente e individualmente, ataques estes últimos cuja gênese e significado de símbolos mnêmicos nos foram revelados com nitidez pela análisexvi".

Portanto, a compulsão de repetição nos remete às intensidades da neurose traumática, mas também nos remete a uma arqueologia do aparelho psíquico. Mostra-nos que esse aparelho é aberto pois o acontecimento o transforma; mas que ele também traz níveis de organização bastante arcaicos, pré-históricos, ancestrais.

No texto "O ego e o id", podemos encontrar uma conexão com essa idéia: "As vivências do ego parecem, a princípio, estar perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante freqüência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em vivências no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das experiências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-asxvii".

Chegamos a um momento onde temos um Freud que trabalha muito com o representacional e o pré-representacional. Estamos tentando mostrar que, em "Além do Princípio do Prazer", existem claros indícios de como a intensidade pode ganhar representabilidade. A partir de nossos dias, temos que pensar o representacional como um sistema aberto e criativo e não como espelho do mundo real.

Desde Kant, o conceito de Real sofreu algumas alterações bastante significativas. No conceito kantiano, o real é impossível de ser apreendido, é inatingível e aproxima-se do conceito da "coisa em si". Para Kant, tem-se acesso aos fenômenos, mas não à "coisa em si". O fenômeno é aquilo que "aparece" enquanto representação da "coisa em si" (Real).

Porém, nas concepções mais atuais da ciência e da filosofia, uma outra concepção sobre o real pode ser elaborada: é possível ter acesso ao real através do acontecimentxviii . Ou, mais especificamente, o real é o acontecimento.

O Acontecimento é uma irrupção, portanto, da ordem do acaso e do caos. Opera-se aqui com uma dimensão do real como possível de apresentação e apreensão. Um real é tido então, como aquilo que se introduz na individualidade produzindo nesta uma ruptura e instaurando possibilidades de novos acontecimentos.

Ao introduzirmos a questão do real como acontecimento, temos que fazer uma digressão a respeito das antigas concepções da ciência clássica, a qual separava radicalmente sujeito e objeto. Em "O que é vida?" Erwin Schrödinger trabalha essa questão: "Coloco, por assim dizer, meu próprio eu sensível (que havia construído esse mundo como um produto mental) de volta nele - com o pandemônio de conseqüências lógicas desastrosas que fluem da cadeia supra-citada de conclusões errôneas. Iremos abordá-las uma a uma; por ora, gostaria apenas de mencionar as duas antinomias mais conspícuas devidas à nova percepção do fato de que um quadro moderadamente satisfatório do mundo só foi alcançado pelo elevado preço de nos retirarmos a nós mesmos do quadro, decaindo para o papel de observador desinteressadoxix".

A ciência, em seu transcorrer histórico, precisou, por longo período, deixar o mundo frio, retirar dele as sensações, os afetos; o mundo se tornou mudo. As intensidades nada têm a ver com isso; intensidade não é energia; ela tem a ver com cores, com musicalidade, com tons, sinfonia, poesia, com ritmo. Intensidade tem a ver com compasso, com cadência, com repetição, com a criação e produção de compulsões de repetição que irão se organizar, podendo chegar a uma sinfonia ou a uma simples canção de ninar, dependendo somente desse metabolismo dos acontecimentos dentro da cultura. A intensidade não é mensurável como a energia. A energia é mensurável, a intensidade é compassada. Por mais que se queira saber dos decibéis que povoam uma sinfonia, jamais se chegará por essa via a explicar porque essa sinfonia produziu uma lágrima ou um sorriso. Isso não retira a importância da energia e das medições da ciência clássica. Estamos procurando um outro conceito (intensidades) diferente dos conceitos clássicos.

Freud, em "O problema econômico do masoquismo" já caminha nessa direção, mostrando que não se trata da restrita questão quantitativa e mensurável; trata-se, sim, de algo de outra ordem. Assim sendo, ele postula: "Talvez seja o ritmo, a ordem temporal das modificações, dos aumentos e diminuições da quantidade de estímuloxx".

A antiga ciência pretendia compreender o mundo natural nesse universo tumular. Essas questões levantam o seguinte problema: a antiga ciência separando radicalmente sujeito e objeto, trouxe grandes contribuições para a humanidade e, pragmaticamente, ela funciona muito bem para explicar os sistemas fechados e deterministas. Os sistemas caóticos, a produção, a criação, o acaso, ficam fora desses sistemas.

Tomemos como exemplo Einstein, grande pensador e cientista do século XX que elaborou a teoria da relatividade, a qual tanto desenvolvimento científico trouxe a este século. Apesar disso, mantinha um pensamento extremamente determinista quando diz que: "Se a lua, enquanto efetua o seu eterno curso ao redor da Terra, fosse dotada da consciência de si mesma, estaria profundamente convencida de que se move por sua própria vontade, em função de uma decisão tomada de uma vez por todas. Da mesma forma, um ser dotado de uma percepção superior e de uma inteligência mais perfeita, ao olhar o homem e suas obras, sorriria da ilusão que esse homem tem de agir segundo a sua própria vontade livre. Essa é a minha convicção, embora saiba que ela não é plenamente demonstrável. Se pensassem até suas últimas conseqüências o que sabem e o que compreendem, poucos seres humanos permaneceriam insensíveis a esta idéia, na medida em que o amor de si mesmos não os fizessem rebelar contra ela. O homem defendeu-se contra a idéia de que é um objeto impotente no curso do universo. Mas o caráter legal dos eventos, que se afirma de maneira mais ou menos clara na natureza inorgânica, deveria cessar de verificar ante as atividades do nosso cérebroxxi".

Atualmente pensadores como Ilya Prigogine, Erwin Schrödinger, Edgar Morin, Gilles Deleuse e Felix Guattary e outros, levam em conta o caos, a diferença e o acaso .

Essas idéias tão fechadamente deterministas de Einstein nos mostram como esse pensamento não só tomou conta do século XIX como também foi uma crença fortíssima do século XX. Como, em sua própria citação, Einstein diz que sua convicção não é plenamente demonstrável, pois escapa da lógica matemática que ele utilizava.

Não havia nenhum espaço para se pensar a produção / criação dentro dessa concepção fechada no determinismo. Na natureza inorgânica não caberia nenhuma produção do novo e na biologia não caberiam mutações ao acaso. Estamos trabalhando em um universo onde sujeito e objeto estão radicalmente separados.

Falemos de Schrödinger, que tem o pensamento do pesquisador que está voltado para o microcosmo e tem como produção a equação que norteia a física quântica. Em suas concepções ele trabalha profundamente essa relação sujeito / objeto e pode nos oferecer concepções mais criativas sobre essa questão. Ele nos diz:

"Afirma-se que as recentes descobertas na física avançaram até a misteriosa fronteira entre o sujeito e o objeto. Essa fronteira, assim nos dizem, não é uma fronteira nítida de fato. Somos levados a entender que nunca observamos um objeto sem que ele seja modificado ou tingido por nossa própria atividade ao observá-lo. Somos levados a entender que, sob o impacto dos nossos refinados métodos de observação e de pensamento sobre o resultado dos nossos experimentos, aquela misteriosa fronteira entre sujeito e objeto foi derrubadaxxii".

Já temos aqui um pensador onde sujeito e objeto são levados em conta sem fronteiras e, isto, dentro do pensamento científico. Outra citação sua bastante contundente é que:

"O mundo me é dado somente uma vez, não uma vez como existente e uma vez como percebido. Sujeito e objeto são apenas um. Não se pode dizer que a barreira entre eles foi derrubada como resultado da experiência recente nas ciências físicas, pois essa barreira não existexxiii".

Gostaria agora de retornar ao início das proposições freudianas contidas no começo desse texto. Na idéia de narcisismo, há toda uma concepção de eu e de outro e toda a idéia de inseparabilidade que poderíamos articular entre eu/outro/relação objetal. As relações objetais estão totalmente tingidas das relações narcísicas. Freud já percorria com muita desenvoltura esse terreno e tentou nos mostrar as filigranas desse processo em que não é possível localizar o sujeito e o objeto. Essa articulação sujeito/objeto/meio circundante é sempre uma idéia de relação, de conjunto, de contexto. Então, como vemos, Freud já não traz a idéia de fronteiras.

O próprio ego, nos primórdios, é id que, com os movimentos das séries complementares, pode se organizar e obter diferenciações. Essas diferenciações se rearticularão em uma próxima geração.

Freud introduz em sua teorização movimento, combinatória, articulações, trânsito, transmissões, imprecisões e acasos, levando, como conseqüência, o bombardeamento total da idéia de indivíduo. A subjetividade, para Freud, é sempre pensada como efeito efêmero de complexas relações em perene movimentação.

A organização da linguagem dentro das mais diversas culturas habita os corpos que somos, sendo o motor para movimentar nossos desejos; porém, essas intensidades que nos habitam não são energias e nem ocupam lugar físico. As posições e lugares em que as intensidades se movimentam são as séries complementares, em que a constelação edípica é o organizador. Assim sendo, o conceito de pulsões em Freud é um conceito arco, é um através que capta as emanações do caos (sempre fractais).

As características que Freud atribui às pulsões são: fonte, força, alvo e objeto. Esse conceito é extremamente amplo e não contém a palavra sujeito. Estabelece-se uma relação com um objeto, porém, ele não articula, no conceito de pulsões, a questão sujeito/objeto. É uma idéia de produção/direcionamento/alcance de um alvo, e concomitantemente, perenemente, isto está em andamento enquanto houver vida.

Tentamos mostrar como a psicanálise estabeleceu conceitos que podem ser importantes na transdisciplinariedade. Sem perder as suas especificidades, esses conceitos podem sofrer transformações e mutações em sua própria especificidade, assim como podem transformar, com seu conteúdo, outros conhecimentos e disciplinas.

Da maneira como Freud concebeu o método psicanalítico, a complexidade esteve presente, ainda que de forma latente. Isso já foi uma grande antecipação.

Alcimar Alves de Souza Lima. Psicanalista, membro e professor do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Diretor Científico da Associação Paulista de Medicina, SJC/SP.

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i Morin, Edgar - O método II - A vida da vida, Publicações Europa- América Ltda., l980, pág. 40
ii Freud, S. - Obras Completas de Sigmund Freud., Madrid, Ed. Biblioteca Nueva, 1970, pág.284.
iii Prigogine, I. O fim das certezas - Tempo, caos e as leis da natureza , São Paulo, UNESP Editora, 1996, pág.10
iv Poincaré, H. O valor da ciência Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, pág. 5
v Poincaré, H. op.cit. pág. 8
vi Freud, S. Pulsiones Y destinos de pulsiones, in Obras completas de Sigmund Freud, Buenos Aires, Amorrortu Ed., 1979, pág. 105.
vii Lima, Alcimar alves de Souza, Além do Princípio do Prazer, in Alonso, S. e Leal, A . Freud: Um ciclo de leituras, S. Paulo, Escuta, 1997, pág. 249
viii Freud, S. op.cit. pág. 114
ix Deleuze, G. e Guattari, F. O que é Filosofia? Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992, pág. 11.
x Deleuze, G. e Guattari, F. op. Cit. , pág.153
xi Deleuze, G. e Guattari, F. op. Cit., pág. 153
xii Freud, S. Hysterie und Angst, Frankfurt, S. Fisher Velag, 1993, pág. 274 - tradução segundo a cadência do texto em alemão, sem preocupação de estilo em português.
xiii Pellegrino, H. Édipo e Paixão in Os sentidos da Paixão, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pág. 321
xiv Prigogine, I. O fim das certezas - Tempo, caos e as leis da natureza São Paulo, UNESP Ed. 1996, pág. 10
xv Freud, S. Obras Completas de Sigmund Freud. "Além do Princípio do Prazer"( 1920). Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 18, 1979.
xvi Freud, S. Obras Completas de Sigmund Freud. "Inibição, Sintoma e Angústia" (1926), Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 8, 1979.
xvii Freud, S. Obras Completas de Sigmund Freud. "O Ego e o Id" (1923), Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 19, 1979.
xviii "O conceito de acontecimento requer algumas vertentes que muitas vezes não se encaixam e criam complexidades difíceis de serem visualizadas.
xix O conceito é formado por vários elementos díspares que poderíamos assim esboçar: real, acaso, bifurcação, fractal, compulsão de repetição, repetição, pulsões, simbólico e caos." ( Alonso, S. e Leal, A. Freud: Um ciclo de leituras, 1997).
xx Schrödinger, E. O que é vida?, São Paulo; Fundação Ed. UNESP/Cambridge, 1997, p. 132.
xxi Freud, S. Obras Completas de Sigmund Freud. "O problema econômico do masoquismo" (1924). Buenos Aires: Ed. Amorrortu, 19, 1979, p. 166.
xxii Prigogine, I. O fim das certezas, São Paulo: UNESP Editora, 1996, p. 20.
xxiii Schrödinger, E. "op. cit", p. 139.
xxiv Idem, p. 140.

Bibliografia

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