As bases para os Estados Gerais

A convocação para a realização dos Estados Gerais da Psicanálise, data de 17 de junho. Não é uma data ao acaso. 17 de junho é uma data que marca uma virada na longa história dos estados gerais.

Do séc. XIV ao séc.XVIII, a realização dos Estados Gerais confunde-se com os períodos de crises. Na França: a guerra dos Cem Anos, a Fronde (partido que atacou Luís XIV no começo de seu reinado), a Revolução. No início e durante quatro séculos, eles se realizaram por convocação do rei e satisfaziam aos deveres de conselho que os vassalos deviam a seu soberano. Entretanto, ao longo dos séculos, as convocações passaram a ser substituídas por eleições que passaram a dar representação de três ordens: o clero, a nobreza e o terceiro-estado. De simples conselho, os deputados passam às reivindicações. A representação igualitária das ordens dará lugar a uma maioria do terceiro-estado, correspondendo melhor à realidade , no seio da qual se encontravam os trabalhadores. A sociedade hierarquizada segundo a "dignidade", será substituída pela república dos talentos. Em 17 de junho de 1789, o terceiro-estado proclama-se Assembléia nacional. Em 9 de julho, a Assembléia declara-se constituinte e, um mês mais tarde, afirma a superioridade de seu poder constituinte com relação à vontade real. Daí por diante, nada será igual como antes.

Pode-se compreender as razões desta analogia para o convite feito a todos os psicanalistas, no sentido de debaterem os problemas cruciais para o futuro da psicanálise, após a experiência de algumas gerações. Se desejamos, juntamente com os signatários da convocação de 17 de junho de 1997, que os Estados Gerais da Psicanálise demarquem um fato importante, é também pensando que a ausência de referência às hierarquias, garantias e legitimidades em vigor, é o que dá aos participantes a oportunidade de inaugurar algo diferente dos colóquios, congressos ou jornadas que conhecemos. Não que estes eventos não tenham lugar em nossa reflexão e em nossas trocas. Nem, muito menos, que as sociedades de psicanálise ou grupos de psicanalistas, tal qual existem, não tenham razão de ser com suas competências, sua legitimidade e eficácia. Mas, tornou-se indispensável nos dias de hoje, que a autonomia destas instituições possa confrontar-se com a heteronomia e defrontar-se com o que lhes é menos familiar como modo de formação, de trabalho clínico e teórico, de iniciação à pesquisa e de reconhecimento.

Tornou-se evidente que uma condição indispensável para que os Estados Gerais sejam importantes e inaugurem alguma coisa, que eles não possam ser apropriados por nenhuma instância individual ou coletiva e que possam debater entre si suas legitimidades. Esta é uma posição, todos concordarão, que pertence muito "naturalmente" ao dispositivo psicanalítico, a liberdade de associação, e a transferência, que , por si-mesma, não poder ser apropriada. Repito com insistência: não se trata de Estados Gerais daquele que é seu iniciador, este nada mais faz que representar uma aspiração; nem são estados gerais do comitê de preparação em via de se constituir; nem de todos aqueles responsáveis em cada país. São os Estados Gerais de todos os signatários da convocação. Desde então, as numerosas assinaturas testemunham que estes Estados Gerais respondem a um desejo amplamente compartilhado e que este desejo não segue as linhas de divisões tradicionais. Estarão presentes psicanalistas de todas as tendências e pertencentes a diferentes instituições. O comitê de preparação está atento ao conjunto de preocupações, inquietações e expectativas de todos.

Para que o debate psicanalítico possa estar à altura do interesse que ele suscita, é também preciso que fique o mais afastado que possa de recriminações vãs ou de puros protestos. É preciso que o debate seja exigente quanto aos trabalhos que determinam a prática da psicanálise e o funcionamento das instituições que se mostram responsáveis, mas que funcionam diferentemente, garantindo que não garantem nada.

Estes Estados Gerais não desejam, de forma nenhuma, ser uma tribuna aberta aos simples protestos contra tal ou qual prática, contra tal ou qual instituição, mas um lugar onde possam ser apresentadas proposições novas concernentes à prática e à instituição que interessam especialmente às que já existem. Não podemos ignorar que existe uma forma de degradação da prática psicanalítica que coloca questionamentos sobre as formas de avaliação, de seleção, de reconhecimento dos psicanalistas, bem como as formas de sua marginalização; que existem associações de psicanálise que se alicerçam na manutenção de uma transferência que tende a assegurar a manutenção do grupo - até sua implosão; que existem condições sócio-econômico-políticas de exercício da psicanálise que a deixam em liberdade relativa com relação a uma ideologia dominante, que a ligam de alguma forma a um sistema de classes, que a submetem ao controle do Estado; que alguns entre nós não levam em consideração senão a realidade psíquica e que outros tendem a articular esta realidade interna à realidade externa, isto é, às condições nas quais ela se desenvolve e ao contexto em que se insere; que alguns consideram que não há nenhum lugar para uma ética dentro da psicanálise ou para uma ética da psicanálise, a lógica interna de seu discurso lhe basta, enquanto que outros estimam que há na psicanálise uma ética específica do desejo e que é urgente que esta inscreva em sua prática e suas instituições o discurso ético-político que lhe pertence; que alguns sustentam que a psicanálise é apolítica enquanto que outros pensam que tal posição a expõe a todo tipo de manipulações pela política e que o pensamento psicanalítico é simultaneamente sócio-ético-político; que alguns consideram que o pensamento freudiano está ultrapassado devendo ser substituído por sucessores, enquanto que outros consideram que o retorno a Freud é sempre atual.

Nenhuma destas questões deixará de ser examinada nos Estados Gerais. Por outro lado, qualquer tomada de posição deverá ser rigorosamente argumentada e discutida.

Se, como alguns imaginam, estes Estados Gerais poderiam vir a abrir uma nova organização internacional, isto não ocorrerá senão através do desejo e da vontade do conjunto de participantes, através de uma assembléia constituinte, e com proposições viáveis para o futuro. Não é o objetivo primeiro destes Estados Gerais. O único objetivo que eles sustentam até o momento é a possibilidade de um grande debate, aberto e construtivo.

Sabemos, desde já, que os Estados Gerais se realizarão no grande anfiteatro da Sorbonne em Paris e que deverão acontecer no mês de maio, durando uma semana. Já são numerosos os psicanalistas brasileiros que assinaram a convocação. Numerosos serão também, assim o espero, seus trabalhos e suas contribuições.

Pelos Estados Gerais,

René Major, Paris.

Tradução de Helena Vianna