Existe uma psicanálise brasileira?

Miriam Chnaiderman

RESUMO
Existe uma psicanálise brasileira?


O artigo questiona uma certa concepção essencialista de inconsciente e o modo como a Europa vem pensando a psicanálise no Brasil. Parece que mesmo entre analistas, uma certa visão edênica parece nortear algumas propostas para incluir o Brasil entre os países onde há psicanálise. São analisadas propostas de encontros entre analistas franceses e brasileiros: o terror de estado, em um certo momento, passou a ter o mesmo papel que a visão paradisíaca que norteava os descobridores da América. O Manifsto Antropófago tem sido injustiçado pela psicanálise.

Se a América é o Outro europeu quem é o nosso Outro? Qual é a nossa marca identitária? Eis algumas das questões que aqui são discutidas.

Existe uma psicanálise brasileira?

Um encontro franco-latino americano


Em 1981, o grupo francês Confrontation organizou um encontro franco-latino americano. Naquele momento, acabara de vir a público, no Brasil, o caso Amílcar Lobo, ou seja, a participação de um psicanalista brasileiro na tortura de presos políticos.

Já na abertura do "Encontro" René Major justificava a "América Latina" como título para um número dos cadernos Confrontation: "porque a América Latina hoje nos designa de maneira exemplar a relação e a não-relação de uma escuta analítica e de uma escuta política, as relações de um Estado freudiano com o poder de Estado. Ela nos designa - e se designa - a urgência de uma concepção analítica de discurso (das relações da teoria e da prática) que se enuncia claramente na continuidade do ato político e social." E termina : "Hoje, a causa da América Latina se designa também como a causa psicanalítica. "1

A primeira exposição foi de Jacques Derrida, que colocou alguns pontos que merecem reflexão. Denominou sua fala "Geopsicanálise". Inicia citando um documento da IPA em que há uma referência a "...o resto do mundo"2. Nesse documento, projeto da Constituição de 1977 aceito no Congresso de Jerusalém, o "resto do mundo" é a Europa, terra de origem e velha metróple da psicanálise, e também todo território ainda virgem, os lugares em que a psicanálise ainda não pisou. O "resto do mundo "é o nome comum , o lugar comum das origens da psicanálise e daquilo que, para além dos confins da psicanálise, é um no man's land, um corpo estrangeiro já nomeado, incorporado, abrangido pela constituição da IPA,. "a colonização psicanalítica de um resto de mundo não americano..."3 Derrida quer nomear a América Latina e fazê-lo de modo diferente do que o fez a International Psychoannalytical Association. Quer refletir, com o termo "geopsicanálise", o que é a terra hoje para a psicanálise.

Indaga-se se haveria uma terra da psicanálise, una e única. Quer ver se essa mundialização em curso desenha sobre a terra, "a mesma terra dos homens"4 , o corpo da terra e dos homens.

O que Derrida defende é que haveria, sim, continentes para a psicanálise; continentes, ilhas, penínsulas virgens, continentes brancos e negros, vários inexplorados. Debruça-se sobre a psicanálise à la carte - brincadeira com "mapa" e "para todos os gostos"- um cardápio onde se escolhe a psicanálise a ser digerida.

A primeira hipótese de Derrida é que o mundo psicanalítico apressa-se em entender o mais rapidamente possível o que quer dizer esse corpo estrangeiro que não pertence a nenhum corpo, que não tem qualquer título, não é de qualquer corporação psicanalítica do mundo ou do resto do mundo, seja europeu ou latino-americano. A seguir, analisa de que forma os comitês da direção IPA se pronunciaram em relação às denúncias de violação dos direitos humanos, questão discutida tanto no Congresso realizado em Jerusalém, como nas suas reuniões posteriores em Nova Iorque. As denúncias vinham da Argentina e, posteriormente, do Brasil, ou seja, da América Latina. Derrida transcreve a declaração a ser enviada a vários organismo internacionais: "A IPA deseja exprimir sua oposição à utilização de métodos psiquiátricos ou psicoterápicos que privem os indivíduos de sua legítima liberdade, a todo tratamento psiquiátrico ou psicoterápico que um indivíduo pode receber baseado em considerações políticas; ao entrave ao segredo profissional com fins políticos. A IPA condena igualmente a violação dos direitos do homem, dos cidadãos em geral, dos especialistas e de nossos colegas em particular."5 Derrida reflete sobre o caráter formal da declaração e sobre a colocação da América Latina no lugar do inomeado.

Indaga-se: "Por que a Associação internacional de psicanálise fundada por Freud há setenta anos não pode tomar posição diante de certas violências (...) a não ser tomando como referência um discurso jurídico pré-psicanalítico, a-psicanalítico, e mesmo as formas as mais vagas e mais pobres desse discurso jurídico clássico, formas julgadas insuficientes pelos juristas ou até mesmo pelos modernos partidários dos direitos do homem?"6 O fato é que não há, hoje, conclui Derrida, problemática política ou de código do discurso político que tenha integrado nele, rigorosamente, a axiomática de uma psicanálise possível, se a psicanálise é possível. Assim como nenhum discurso ético integrou a axiomática da psicanálise, também nenhum discurso político o fez. E, reflete Derrida, quanto menos os discursos psicanalíticos e ético-políticos se integram, mais fácil é a integração ou a apropriação dos aparelhos uns pelos outros, a manipulação do psicanalítico pelas instâncias políticas ou policiais, os abusos psicanalíticos de poder.

Um dos resultados desta postura seria uma dissociação absoluta entre a esfera do psicanalítico e a do cidadão ou do sujeito moral em sua vida pública ou privada. Afirma Derrida: "Essa inacreditável dissociação é um dos traços mais monstruosos do homo psychanalyticus de nossa era."7 Derrida afirma a necessidade de uma nova ética: não apenas uma ética da psicanálise, que para ele não existe, mas de um outro discurso ético sobre a ética em geral, de um outro discurso político, sobre o político em geral, um discurso que leve em conta o que se interpeta como a verdade da psicanálise - e que difere conforme os lugares da psicanálise hoje sobre a terra.

Há uma geografia da psicanálise. É preciso não deixar que se apaguem os traços do mapa. Não há simples interioridade do meio psicanalítico.

Um encontro franco-brasileiro

Em 1989, a Association Freudienne de Paris realizou um encontro franco-brasileiro entre analistas, para pensar "Os efeitos da Psicanálise - adaptação, mudança ou pior ainda". Seu ponto de partida era o "Manifesto Antropófago" de Oswald de Andrade, citado várias vezes no "Argumento", espécie de introdução à discussão proposta. Citando o primeiro parágrafo do folheto do encontro: "Não seria preciso tentar pensar um vínculo social e amoroso suficientemente original, capaz de prescindir de uma tal civilização? "(a civilização " erótica capenga", a civilização do mal estar incompatível com a "faculdade de amar e de trabalhar").

Fica posta a questão da utopia. Mas é estranha tal utopia, anulação da cultura, da civilização.

De que civilização trata o "Argumento" que introduz a temática do encontro? A proposta é de um tema a ser debatido por psicanalistas. Mas, ainda entre analistas, continua presente a visão "edênica" de um paraíso perdido. Que foi a visão de nossos descobridores, e que retorna na visão de nossos pretensos re-descobridores atuais. Afinal, temos algo a oferecer à psicanálise européia! Algum Éden...

Oswald de Andrade, em seu trabalho "A marcha das utopias"8 , denominou "Ciclo das Utopias" aquele que se inicia nos primeiros anos do século XVI com a divulgação das cartas de Vespúcio e que se encerra para ele com o Manifesto Comunista de Marx e Engels. Acredita que as Utopias são, portanto, uma conseqüência da descoberta do Novo Mundo e, sobretudo, da descoberta do novo homem, do homem diferente encontrado nas terras da América. Relata que foi a partir de um contato que Thomas Morus teve em Flandres com vinte e quatro homens, deixados na feitoria de Cabo Frio por Américo Vespúcio, que se originou a criação de sua Ilha da Utopia e o seu entusiasmo por uma espécie de sociedade que divergia da existente, e que viria liquidar as pesadas "taras medievais" ainda em vigor. Vespúcio achava a Europa tão decadente que chegava a afirmar que um sábio não perderia seu tempo em fazer ouvir a voz da razão a homens de Estado completamente amorais.

Oswald vai mostrando como a geografia das Utopias situa-se na América: é um português que descreve para Morus os costumes das gentes do outro lado da terra; a Cidade do Sol de Campanella refere-se a um armador genovês (Cristóvão Colombo); Francis Bacon que escreve A Nova Atlântida em pleno século XVII, faz partir sua expedição do Peru.

Afirma Oswald de Andrade: "...nós, descendentes de portugueses, somos o produto de uma cultura miscigenada que nada deve à árida seara freirática de Port-Royal..."9

Através das cartas de Vespúcio e das Utopias, divulgou-se a existência de uma super-humanidade perdida do outro lado da terra. As Utopias foram as caravelas ideológicas desse novo achado - o homem como é, em si, simples e natural. O primitivo que, pela sua teimosa vocação de felicidade, se opunha a uma terra dominada pela sisudez de teólogos e professores.

Afirma-se no "Argumento" do encontro franco-brasileiro: "Nossos valores, quer sejam de ordem narcísica, quer seja de ordem objetal, se acham assim confrontados com uma relatividade que talvez traga alívio a nossos colegas brasileiros. Isto porque estes valores quando importados e absorvidos podem parecer ainda mais esmagadores: no caso da psicanálise e da antropofagia, cara a Oswald de Andrade, corre o risco de se tornar definitivamente um peso no estômago".

Parece que nós, pobres psicanalistas brasileiros, engoliríamos o estranho que jamais seria metabolizado. Morreríamos de azia.

Para Tzvetan Todorov, é a desoberta da América que vai fundar "nossa identidade"10 ("nossa" aí, diz respeito à Europa) atual. Em seu livro sobre a conquista da América, o foco é a descoberta que o eu faz do outro. A descoberta da América tem valor paradigmático. Nada mais indicado para marcar o início da era moderna do que o ano de 1492, quando Colombo atravessou o Oceano Atlântico. Afirma Todorov: "Somos todos descendentes diretos de Colombo.... (...) Os homens descobriram a totalidade de que fazem parte."11

O fato é que parece que a Europa precisa ainda nos colocar em lugar de alteridade para se reassegurar de suas conquistas.

Muita coisa aconteceu desde que os Manifestos de Oswald foram escritos. Oswald de Andrade teve um grande papel no Modernismo no Brasil. Após ter escrito os Manifestos encaminhou-se para a esquerda. Ao iniciar sua fase de militância política marxista, abjurou sua atitude de chefe de vanguarda antropófaga, afirmando que - como tantos outros de sua geração - passara pela experiência vanguardista por efeito de uma inquietude mal compreendida, que ignorava a origem social e o fundo político dos seus anseios. Refere-se a um "sarampão antropofágico" que atingira indistintamente aqueles que não tinham recebido a vacina marxista.

Em 1945, Oswald rompe com a orientação marxista e dois anos depois proclama o seu retorno à antropofagia. O fim da Segunda Guerra Mundial não trouxera, conforme ele esperava, o ocaso dos imperialismos, das ditaduras e da moral burguesa. É pleno Estado Novo, ditadura de Getúlio Vargas.

Depois do Estado Novo de Getúlio, em 1964, há o golpe militar e passamos por longa ditadura.

E eis que, na proposta do encontro franco-brasileiro de 1989, espera-se que nós, analistas brasileiros, tenhamos algo a contribuir, exatamente porque passamos pelo terror . A utopia resgatada a partir da violência do Estado: porque vivemos tudo isso, encarnamos de forma ainda mais contundente o lugar da utopia. É alto o risco que corremos quando tomamos uma história sangrenta como identidade nacional - só nos resta então a melancolia e a petrificação da história.

No parágrafo final do "Argumento" do encontro franco-brasileiro: "...os analistas brasileiros ocupam um lugar privilegiado para virem discutir conosco, se desejarem, de sua experiência".

Além do homem primitivo das Américas, agora o exotismo existe também em relação à ditadura militar. Parece até que a nova utopia européia é desvendar as formas de sobrevivência sob condições de violência policial, repressão e tortura. Como se isso nos tornasse mais puros em uma suposta sabedoria ou capacidade miraculosa de nomeação do indizível do terror.

Lacanianos no Brasil

Contardo Calligaris, em seu ensaio "Uma história crítica", publicado pela APPOA12 , procura pensar o que foi o Encontro de Caracas, no qual Jacques Alain Miller lançou o significante "Lacano-americano". Relata: "Quando conversava recentemente com um amigo argentino sobre o fato de que na "Reunião Lacano-americana de psicanálise" eu continuava achando estranho que se glorificasse este significante, que era de Miller, ele me respondeu que a coisa não tinha importância, pois com um significante nós fazemos o que queremos. Eu estranhei, pois um significante acarreta a sua história; se o que ele estava dizendo fosse verdade, não teria nenhum problema que nós, sendo nacionais e socialistas, fundássemos um partido nazista. O problema é que o significante nazista tem uma história..."

O texto que Lacan "leu" em Caracas fala de sua decepção com seus alunos, e que estaria vindo ao sul para ver se as coisas estariam melhor com as pessoas que, sem serem alunos dele, sem ter se analisado com ele ou se formado no seu ensino direto no quadro da Escola Freudiana de Paris, teriam uma relação principalmente com os seus textos. Essa proposta funda uma estratégia de difusão da psicanálise como operação cultural; ela permite que a legitimidade seja fundada na apropriação e gestão de um patrimônio textual e nada mais. É disso que irá se tratar: transmissão da psicanálise como transmissão de uma doutrina e formação dos analistas na transmissão de uma doutrina, ou seja, volta à época primeira da "instrução" como produção de analistas. Nisso, esquece-se a primazia absoluta da análise do candidato - que justamente, não é candidato, é analisando.

Continuamos no lugar de alguma utopia, a utopia de uma transmissão desejada, de uma catequização sem protesto. Engolir sem vomitar, mesmo que com azia.

Mas será que essa visão é privilégio do grupo milleriano? E, como nos comportamos nós, brasileiros, nesse lugar do exótico?

No ensaio de Charles Melmain que abre a coletânea organizada pela Association Freudienne Internationale, D'un inconscient post-colonial, s'il existe, denominado "Complexo de Colombo", coloca-se que a questão do colonialismo será pensada a partir de um ponto de vista exclusivamente psicanalítico. Pois, em termos éticos ou políticos, quem não seria contra o colonialismo? Melman não quer aplicar conceitos psicanalíticos para pensar essa questão. Baseia-se no que pôde apreender com os pacientes que conheceu e que pertencem a regiões habitadas pelo colonialismo. E, para ele, o originário do colonialismo, o encontro de dois mundos que ocupam lugares em permanente conflito, é algo que se mantém, mesmo quando as formas políticas mais óbvias desapareceram: "Essa colocação inicial de um conflito entre esses dois lugares que só podem ser regidos pela violência e pela força, por uma espécie de guerra, de forma de guerra permanente, e onde o encontro não se fará com um semelhante, mas sempre com um outro, isto é, alguém sobre quem sempre se deve repetir o ato de violência inaugural, me parece a situação, a herança ao mesmo tempo política e espiritual, a catástrofe espiritual e política deixada pelo colonialismo, mesmo quando essa forma, digo claramente - política - não existe mais."13 Há o que denomina uma heterotopia radical, heterotopia com incidências subjetivas importantes. Que conseqüências teria tudo isso para a transmissão da psicanálise?

E o Brasil?

Todorov procura entender de que forma a Europa lidou com a descoberta de um outro radical. Para Todorov, toda a história da descoberta da América, primeiro episódio da conquista, é marcada por esta ambigüidade: a alteridade humana é simultaneamente revelada e recusada. O ano de 1492 já simboliza na história da Espanha este duplo movimento: nesse mesmo ano o país repudia seu Outro interior, conseguindo a vitória sobre os mouros na derradeira batalha de Granada e forçando os judeus a deixar seu território; e descobre o Outro exterior, toda essa América que virá a ser latina.

O terrível paradoxo se instaura: nós, brasileiros, qual é o nosso Outro? É de um Outro que nos vem a autorização de ser Outro?

A linguagem só existe pelo outro, hoje podemos dizer. Lacan nos mostrou como de um Outro se constitui um Eu, imagem jubilatória de encontro com um olhar constituinte.

Em nossa história, fomos um dos "outros" europeus. Falamos no lugar da alteridade como assinala Todorov. E parece que continuamos mantidos nesse lugar. Mas que "Outro" nos dá nossa marca identitária?

Para Octávio Souza, psicanalista que vem se dedicando a esses temas14 , a recorrência a uma identidade nacional seria uma estratégia para lidar com a utopia colonizadora. A produção cultural brasileira teria uma tendência a reforçar a identidade nacional, o que pode ser explicado por um desenraizamento original, tanto do homem americano em relação à tradição européia, quanto do próprio europeu e seus descendentes. Também conta para este reforço identitário o fato de que, a partir do sonho europeu, a América foi condenada a ser o projeto histórico de uma consciência alheia. A expectativa européia em relação às colônias do Novo Mundo não foi, portanto, para que se mantivesse a tradição, mas para que houvesse uma ruptura que possibilitasse a realização da utopia do Velho Mundo.

Octávio Souza quer analisar o peso desta herança inevitável que carregamos: o fardo da gênese nacional enquanto Éden. Há uma identificação com o olhar dos colonizadores europeus diante do Novo Mundo. O que busca provar é que a fantasia de um Brasil paradisíaco teria levado à construção de uma identidade brasileira com os traços de exotismo (sensualidade, alegria, jeitinho brasileiro). Haveria duas formas de projeto utópico: a concepção de um estado ideal a ser atingido, e a noção de um "mandato utópico purificado". Nesse segundo caso, não se tem uma idéia muito precisa sobre como se quer que as coisas mudem; só se sabe que há um desejo de que mudem, e aí tudo ficará melhor. No primeiro caso, estão à disposição do destinatário todas as respostas razoáveis. No segundo tipo, não se sabe o que aceitar. A utopia que os europeus deixaram como herança para a América é muito mais próxima da forma purificada. Daí as dificuldades para sustentar este mandato utópico, pois toda resposta dada é, ao mesmo tempo, uma aceitação e uma recusa do mandato. O que Souza propõe é que a busca de identidade nacional foi uma saída inventiva para tal impasse. Solução na qual nos constituímos naquilo que nos ordenaram que fôssemos.

Há, entre os intelectuais brasileiros, uma certa lamentação relativa a uma falta de tradição local. É bastante comum a afirmação da inexistência de singularidades que nos distingam enquanto nação. Exemplo disso é Roberto Schwarz que, em seu trabalho sobre a impropriedade que caracteriza o Brasil, no seu estudo sobre Machado de Assis15 , mostra como a linguagem em que se expressava o desejo de autenticidade era sempre alheia. Seu ponto de partida é a disparidade entre uma sociedade escravista e as idéias do liberalismo europeu. Monta-se então uma "comédia ideológica" que vai marcar uma "impropriedade de nosso pensamento". A Independência foi feita em nome de idéias francesas, inglesas e americanas. Idéias que vinham do liberalismo e que fizeram parte de um identidade nacional. Era inevitável o choque dessas idéias com a escravidão e seus defensores.

A colonização teria produzido o latifundiário, o escravo e o "homem livre". Esses homens livres, não sendo nem proprietários nem proletários, dependeriam do "favor" para ter acesso a privilégios. E, em nossa sociedade, até mesmo as pressões liberais eram comandadas pelo favor. Na Europa, a civilização burguesa postula a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura desinteressada, a remuneração objetiva, a ética do trabalho. O favor, para Schwarz, pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais. Cria-se o paradoxo brasileiro: ao mesmo tempo que os argumentos da burguesia européia eram adotados contra o arbítrio e a escravidão, na prática proliferava o favor. Cria-se uma coexistência estável e, estranhamente, as idéias e razões européias passaram a justificar o favor. Este assegurava o desaparecimento da escravidão. Legitima-se o arbítrio com razões racionais. Schwarz conclui o primeiro capítulo que tem como título "As idéias fora do lugar" com a seguinte afirmação: "Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente, o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio."16 O Brasil parece então condenado a estar sempre fora de centro em relação à Europa, destinado a cumprir o vaticínio de Charles Melman.

Parece haver um sentimento negativo em relação à produção nacional, que passa a ser vista apenas como uma desajeitada cópia, sem qualquer originalidade.

Por incrível que pareça, essa visão de Brasil já está presente no Modernismo, que, em 1922, vai propor um antídoto a tudo isso. O estranho é que essa visão negativizante permaneça até hoje, depois de tudo que vem acontecendo. Depois mesmo inclusive do próprio Modernismo.

Uma proposta brasileira

É a partir de uma análise do que vinha acontecendo no Brasil que Oswald de Andrade elaborou o Manifesto Antropófago. Aliás, a criação do termo "antropófago" no lugar de "antropofágico" coloca o poético em primeiro plano. Só os psicanalistas puderam desmetaforizar Oswald de Andrade e transformar sua poeticidade em "tubos digestivos" (expressão utilizada por Contardo Calligaris em Hello Brasil). No Manifesto são levantadas as oposições que caracterizam o Brasil e que permeariam a moral, o direito a religião. Tudo teria se dado a partir de uma primeira censura: a da Catequese. O código ético do Senhor de Engenho é decorrente da conquista espiritual dos Jesuítas conjugada ao Poder temporal dos mandatários da Coroa. É o código do patriarca dono de escravos, com "moral de cegonha". Mas Oswald acredita que ainda está presente, de forma reprimida, o poder real do tacape; que, sob a aparência das instituições importadas, ainda existem a política e a economia primitivas. O antropófago nu se opõe ao índio "vestido de senador do império". Se era preciso resgatar o impulso antropofágico da rebeldia, é porque havíamos sido lustrados com os adornos europeus, com um pensamento imposto, e que nos obrigava ao exotismo. Era preciso uma reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos.

O que Oswald fez foi constatar uma colonização das idéias e modos de ser Mas queria batalhar por uma arte brasileira, caraíba. Ou seja, não fica apenas na constatação de um destino de ser cópia. Transforma tudo isso em criação. Criação para exportação. A revolução internacionalista começa por uma revolução caraíba. O movimento antropofágico não é nada nacionalista. Assume a técnica como propiciadora de condições para mais ócio e mais prazer, é internacionalista. É o assumir do que caracteriza de forma absolutamente singular o nosso Brasil que nos universalizamos.

Caetano Veloso começa seu livro Verdade Tropical observando algo que singulariza o Brasil: "todos os outros países da América consideram-se suficientemente descobertos por Cristóvão Colombo em 1492", mas o Brasil "teve que ser descoberto depois, separadamente."17 O Brasil apareceu oito anos depois como continente independente ou uma ilha descomunal Observa que os Estados Unidos são um país sem nome - América é o nome do continente onde, entre outros, os Estados de colonização inglesa se uniram, e a mera designação da união desses estados não constitui uma nomeação; já o Brasil é "um nome sem país". Os portugueses parece que fizeram questão de marcar que haviam chegado a um lugar absolutamente outro em relação àquele que os espanhóis haviam descoberto . Já nossa descoberta leva a pensar que nascemos como aqueles que vêm ao mundo para apaziguar forças em conflito. Embora apreendamos na escola que foi por acaso que Pedro Alvares Cabral descobriu o Brasil, a bula papal que ratificou o Tratado de Tordesilhas - estipulando que as terras a serem descobertas a leste de determinado meridiano pertenceriam a Portugal, e deixando as que estivessem a oeste dessa linha para a Espanha - mostra o quanto essa nova descoberta era necessária no equilíbrio das forças políticas na Europa.

E, assim continua sendo. Na psicanálise, isso é evidente. No momento em que Lacan dissolve a Escola, Miller funda o significante lacano americano. Em função do significante lacano-americano, a Association Freudienne, passa a promover encontros franco-latino americanos.

Uma das facetas de uma alteridade é nossa marca da tortura, da opressão, e hoje, da pobreza, da miséria, do desemprego. Que de fato são dados brasileiros. Mas não somos apenas isso. O que os portugueses avistaram era de uma pujança única. Pujança que nos acompanha. O perigo nisso tudo é a petrificação seja em que lugar for, em uma imobilidade que só traria alívio a outros em busca de identidades únicas.

Somos marcados por nossa história, assim como qualquer país é marcado pela sua. Temos já uma história que dá especificidades à psicanálise no Brasil. O inconsciente não é a-histórico. Cada vez mais mais se pesquisam os efeitos trans-geracionais em todas as histórias de cada subjetividade. Melman tem razão quando pensa que há um originário presente em todas subjetividades. Mas como destino? Ou como marca que deve passar por uma apropriação? Apropriação da história, produção permanente, e não congelamento seja lá em que lugar for.

É possível acompanhar na psicanálise no Brasil todos os movimentos que enumerei para a questão da cultura brasileira. Para que pudesse haver psicanalistas brasileiros, foi preciso importar da matriz. Quem mandava era a IPA. Mais uma vez, as idéias fora do lugar.

Embora a necessidade da psicanálise fosse sentida a partir do trabalho na saúde pública ( especialmente em São Paulo), o custo da formação analítica, os poucos analistas didatas, a aura européia que revestia a formação fizeram que houvesse um imenso hiato entre a psicanálise nos seus primórdios, e a realidade de nosso país. Como se só o mundo interno merecesse consideração, e o inconsciente pairasse, levitando com suas asinhas. Prova disso foram as posições conservadoras que os analistas da Sociedade de Psicanálise tomaram no conturbado ano de 1968. A Meca continuava sendo Londres.

Mudaram as Sociedades ligadas à IPA e vieram os vários grupos lacanianos. Mas parece ser difícil descolar de um lugar de colonizado. A Meca passou a ser Paris.

Buscar um trabalho com uma história que é singular não quer dizer propor um nacionalismo tacanho, de Jeca Tatu. É trabalhar com Oswald de Andrade, numa deglutição saudável do que nos foi legado pela Europa em favor de uma criação própria. Até de exportação - por que não?

Exemplos e exemplo

A América Latina está carregada de exemplos de como o movimento psicanalítico pôde (e pode) ser uma forma de resistência à opressão de Estado. Haja visto o grupo Plataforma e Documento na Argentina.

No Brasil pipocaram grupos de formação fora da IPA. Seja porque em várias capitais só se aceitavam médicos, seja pela necessidade de um pensamento mais inserido no mundo. Esse movimento está descrito no livro Guardiães da ordem de Cecília Coimbra..18 O termo escolhido é "pedagogia da submissão", para referir-se a como era transmitida a psicanálise nas Sociedades vinculadas à IPA e que mantinham a análise didática como eixo de formação. Cecília aponta, com fundamento, que a rigidez, o distanciamento, a neutralidade era sinônimos de cientificidade: "A psicanálise, ensinada como uma teoria abstrata praticada por especialistas abstratos (...) produz um espaço protegido,asséptico, onde a realidade cotidiana não entra, onde a neutralidade impera."19 Depois de acusar as Sociedades oficiais de conivência com o terrorismo de Estado do começo dos anos 70 - após análise do caso Amílcar Lobo - Cecília Coimbra descreve o surgimento de outros estabelecimentos de formação analítica. Nos anos sessenta surgem no Rio de Janeiro o "Instituto de Medicina Psicológica" e o "Círculo Psicanalítico". Mas, estes grupos não atingiram o mesmo prestígio e poder que as Sociedades ligadas à IPA. A Clínica Social de Psicanálise é fundada em 1972 por Katrin Kemper e seu grupo. A idéia de sua criação surge quando Katrin e alguns de seus colaboradores , entre os quais Helio Pellegrino e Chaim S. Katz fazem um trabalho na Faculdade Cândido Mendes com os pais,os encontros "psicodinâmicos". O auditório ficava lotado e discutia-se a educação e formação dos jovens. Vai se fortalecendo o desejo de uma clínica que possa atender à população de baixa renda, com a implementação de trabalhos grupais. As sociedades "oficiais se inquietam e em 1975/76, a direção da SPRJ chama Helio Pellegrino e sugere que o nome seja substituído para Clínica Social de Psicoterapia: "a psicanálise nào pode ser conspurcada pelas propostas contidas no projeto que se tenta desenvolver na Clínica Social, ainda que tais propostas ficassem somente nas intençòes e discursos de seus integrantes."20 Cecília critica o assistencialismo presente nas propostas da Clínica Social, e a ilusão de que o trabalho terapêutico poderia levar à conscientização.

Há o boom des faculdades de psicologia, há o boom dos trabalhos grupais. Para Cecília Coimbra é na segunda metade da década de setenta que se delineia "um novo perfil" nos movimentos psi carioca e paulista. Surgem vários grupos que rompem com as Sociedades ligadas à IPA. No livro Guardiães da Ordem Cecília Coimbra faz uma análise, não só descritiva, mas ideológica também de cada um desses grupos que buscavam a diferença.

O Sédes Sapientiae, que comemora vinte anos de existência, é um dos grupos arrolados por Cecília Coimbra. O Sédes surgiu como uma das formas de resistência à ditadura militar. Ainda era 1975. Ainda havia mortes por tortura, perseguições: a anistia só veio a ocorrer em 1979. Desde seus primórdios, desde as primeiras reuniões, o sonho era bastante próximo do que está proposto na exposição de Derrida: vincular a psicanálise à nossa realidade brasileira, enraizarmo-nos em nossa história. Em documento redigido por todos os que estão e alguns dos que estiveram vinculados ao Curso de Psicanálise do Departamento de Psicanálise, por ocasião dos vinte anos do Instituto Sédes Sapientiae, podemos ler: "Queríamos que a Psicanálise deixasse de pairar acima das contradições de nossa realidade, queríamos trabalhar com a população excluída dos direitos e dos bens sociais. Pensávamos que nossa prática não podia se apolítica. Trabalhar com a Psicanálise era parte de uma opção que nos vinculava à luta pela democracia, na batalha pelos direitos humanos..." Poderíamos aqui falar, do mesmo jeito que Cecília Coimbra falou da Clínica Social, de uma ilusão de conscientização e de um assistencialismo? Ou, há aqui o nomear de uma postura ética que nos norteia enquanto psicanalistas?

Com o surgimento do Sédes, embora o nome do curso ainda fosse "Curso de Psicoterapia de Orientação Psicanalítica" (em um tentativa vã de não conflito, haja visto o affaire Helio Pellegrino/ SPRJ), rompeu-se a hegemonia da IPA em São Paulo. Saudável ato analítico. A proliferação saudável de focos se multiplicando em possíveis leituras de Freud.

Há, sim, uma psicanálise brasileira. Mas que não é aquela que entra na miragem européia. Há uma psicanálise brasileira porque há um caminho próprio já percorrido, com as marcas de uma história. Uma história em que a busca de um embate com questões que são da cultura brasileira vem nos atravessando.

Quando se fala em psicanálise brasileira não há como não lembrar os encontros do Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, com bananas e coqueiros, escola de samba e tudo o mais. O Colégio editou a importante revista Revirão, na qual questões importantes da cultura brasileira são apresentadas e discutidas. O que é um fato inusitado entre psicanalistas brasileiros. O Colégio foi o primeiro estabelecimento lacaniano e foi fundado em 1975 por M. D. Magno e Betty Milan. Inicalmente apenas queriam congregar analistas para discussão dos textos de Freud e Lacan. É em 1979 que se organiza o Centro de Estudos, encarregado da fomação em psicanálise, explicitando a distinção entre formação em psicanálise e formação psicanalítica. A primeira é uma transmissão claramente pedagógica e condição para a segunda. Em 1981 há uma modificação dos estatutos e é criado, vinculado ao Colégio Freudiano, o Instituto Jacques Lacan, responsável pelos dois tipos de formação. É no ano seguinte que se organiza o chamado sarau. Cecília Coimbra cita o documento que define o Sarau: "é um encontro contituído por uma única sessão em que um convidado é entrevistado por um cartel especialmente constituído (...) O convidado é sempre alguém que represente determinada posição existencial no campo social (artista, intelectual, elemento de alguma minoria ou maioria, cinetista, operário, etc. ) (...) A funçào é colocar fora da situação analítica, os analistas e estudidoso da psicanálise interessados na posição de receberem do convidado, o realto de sua visão a respeito de sua própria posição diante da cultura. (...)....trata-se de receber a transmissão do discurso de um Outro que bem poderá contribuir para sua reflexão no campo da psicanálise." O primeiro convidado foi Caetano Veloso.

Para Cecília Coimbra essa abertura é apenas aparente, pois as práticas desse grupo continuam enclausuradas e exteriores ao que acontece em volta: haveriam dois territórios bem delimitados; ' de um lado, a formação em que há os seminários, os cartéis, etc; de outro, os saraus, nos quais, pôr uma fresta, pode-se acompanhar o que se passa no mundo."21 A antropologia, as ciências sociais, são apenas instrumentos auxiliares da psicanálise. É a psicanálise que dará uma compreensão da cultura brasileira. C. Coimbra aponta como a trajetória do Colégio acaba sendo o de Magno, o "zelador da doutrina". E, para Magno e seus "seguidores" há um estatuto específico para a Psicanálise no campo da cultura. Chamam de "Clínica Geral" a intervenção feita na cultura pela psicanálise que, pôr ter um discurso específico pode porduzir diferentes cruzamentos. Coimbra fala em um " imperialismo" da psicanálise.

Betty Milan vem tendo toda uma produção em que dá continuidade ao trabalho com a cultura brasileira tal como era proposta pelo Colégio. Em entrevista a partir do seu livro sobre o futebol, declara: "Brinca o menino e o adulto porque a cultura que temos nos autoriza a isso, pôr ser ela precisamente a cultura do brincar, que nos diferencia como o droit dos franceses, o honor os espanhóis e o fairplay os ingleses. (...) A todas as idades nós brasileiros, fazendo de conta, brincamos, teatralizando espontaneamente a realidade. (...) A cultura do brincar é contra-cultura de massa...PÁTRIA BRINCAR é a nossa..."22 O outro seu livro é sobre o Carnaval. Nos textos desse livro, Betty Milan delicadamente não psicanalisa a cultura. Apenas se delita com o gingado, com a brincadeira, com a falta de seriedade. O que pode ser perigoso.

Parece que o exótico, no sentido discutido pôr Octávio de Souza, norteia a concepção de cultura, tal como é proposta pôr Magno e Betty Milan. Caetano Veloso em Verdade Tropical defende que não há pôr que temer o exotismo: de fato há coqueiros em nossas praias; de fato, a mestiçagem nos caracteriza. O terrível é se somos reduzidos a isso. A tropicália se apropriou disso tudo, mesclou com alta tecnologia da indústria fonográfica e fez músicas em que a Coca-Cola virou lírica lua.

Afirmar a existência de uma psicanálise brasileira não é folclorizar. É defender que existe psicanálise inglesa, francesa, nigeriana, australiana... É defender que a psicanálise é sempre atravessada pela história, pelo contexto em que ela contece. A psicanálise também é uma prática social. Se. propõe uma cisão entre o cidadão da pólis e o sujeito do inconsciente, corre o risco de ser agida pôr fatores recalcados da cultura que podem acarretar em terríveis repetições. Isso não quer dizer psicanalisar a cultura. Pelo contrário, é propor que a psicanálise possa acolher outros mundos para com eles se questionar. Novos focos de criação e pensamento podem levar à constituição de uma nova ética onde a psicanálise ocorra como um dos registros possíveis.

Quando Oswald de Andrade resgata o matriarcado não está negando a metáfora paterna como já disseram vários lacanianos. Está propondo que novas formas não hierarquizadas de estado devem emergir, formas não institucionalizadas. Afinal, o feminino é sempre o que escapa... E, aí, Oswald é absolutamente precursor de todo um teorizar lacaniano sobre o feminino. Temos muito a apreender, enquanto analistas, se nos debruçamos sobre fatos de cultura sem ter a preocupação de enquadrar no que já está estabelecido como teoria.

A psicanálise brasileira trabalha com o inconsciente - como todas as psicanálises - mas dispõe-se a descobri-lo a cada momento e em cada contexto; como toda psicanálise de qualquer lugar.. Daí a geografia necessária da psicanálise. A busca sempre de um lugar próprio. Dentro e fora da psicanálise. É da singularização absoluta que surge o universal mutante.

É preciso encontrar novas formas de invenção, incorporar nossa história em propostas de devir, de vida. Buscarmos ser o outro, do outro, do outro, do outro. Sempre o avesso do avesso do avesso do avesso. Permanente movimento em linhas de fuga. Coerentes com a escolha de sermos psicanalistas.

Miriam Chnaiderman

Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Sédes Sapientiae, ensaista, doutora em Artes pela ECA-USP, autora de O hiato convexo: literatura e psicanálise (Brasiliense, S.P.) e Ensaios de Psicanálise e Semiótica (Escuta, S.P. ), diretora do curta-metragem Dizem que sou louco.