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Insuficiência imunológica psíquica
Manoel Tosta Berlinck
À Maria Cristina Rios Magalhães,
por quem, sofro de uma certa insuficiência.
Em 1552 foi publicado, na Espanha, um livro denominado Brevíssima relación de la destrucción de las Índias Ocidentales (1996) que se transformou imediatamente num bestseller com várias e repetidas edições na Holanda, Inglaterra e Alemanha. A partir do livro escrito por Frei Bartolomé de las Casas, criou-se a chamada leyenda negra - rótulo mordaz através do qual se propagou por todo o mundo protestante europeu a imagem dos espanhóis como um povo sanguinário, cruel e corrupto: analfabetos truculentos que se lançaram sobre o Novo Mundo como aves de rapina; uma imagem que persistiu durante mais de um século, principalmente na Alemanha e na Holanda, independentemente das atrocidades que esses países vieram a cometer nas nações que, pouco mais tarde, colonizaram.
No texto emocionado e pungente da Brevíssima relación, de las Casas, com audácia surpreendente, chama os conquistadores - que, na época, desfrutavam do auge do seu prestígio e fama - de "sujos ladrões", "tiranos cruéis", "sangrentos destruidores".
Tendo participado da conquista de Cuba e assistido à degola de sete mil índios ordenada por Panfílio de Narváez, assim descreve de las Casas a memorável cena em outro livro que escreveu, conhecido por Apologética história:
No dia em que ali chegaram, os espanhóis pararam de manhã para o desjejum no leito seco de um riacho que ainda conservava algumas poças d'água, que estava repleto de pedras de amolar: o que lhes deu a idéia de afiar as espadas. Chegando à aldeia, alguns tiveram a idéia de verificar se as espadas estavam tão cortantes quanto pareciam. Um soldado, subitamente, desembainhou a espada (que parecia tomada pelo diabo), e imediatamente os outros fizeram o mesmo e começaram a estripar, rasgar e massacrar aquelas ovelhas e aqueles cordeiros, homens e mulheres, crianças e velhos, que estavam sentados tranqüilamente, olhando espantados para os cavalos e os espanhóis. Num instante, não restam sobreviventes de todos os que ali se encontravam e o sangue corria por toda a parte, como se tivessem matado um rebanho de vacas.
Esta cena é típica da conquista da América espanhola que, em quarenta anos, "pela tirania e diabólicas ações dos espanhóis, morreram injustamente mais de doze milhões de pessoas, homens, mulheres e crianças; e verdadeiramente eu creio", diz Frei Bartolomé de las Casas, "e penso não ser absolutamente exagerado, que morreram mais de quinze milhões".
Trata-se, indiscutivelmente, do maior, mais amplo e eficaz genocídio de que se tem notícia no Ocidente moderno, sendo bem maior do que o praticado pela Alemanha nazista com judeus e ciganos europeus.
Sem menosprezar a virulência do ataque espanhol aos índios - virulência que ocorreu pela espada e pela gripe, como atesta o relato de Cortez em A conquista do México (1996) - seria necessário observar a visão que de las Casas tinha dos habitantes nativos das Américas:
Deus criou todas essas gentes infinitas, de todas as espécies, mui simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fiéis a seus Senhores naturais e aos espanhóis a que servem; mui humildes, mui pacientes, mui pacíficas e amantes da paz, sem contendas, sem perturbações, sem querelas, sem questões, sem ira, sem ódio e de forma alguma desejosos de vingança.
São também umas gentes mui delicadas e ternas; sua compleição é pequena e não podem suportar trabalhos; e morrem logo de qualquer doença que seja.
Em outras palavras do mesmo autor, se, por um lado
Sobre esses cordeiros tão dóceis, tão qualificados e dotados pelo seu criador como se disse, os espanhóis se arremessaram no mesmo instante em que os conheceram; e como lobos, como leões e tigres cruéis, há muitos tempo esfaimados, de quarenta anos para cá, e ainda hoje em dia, outra cousa não fazem ali senão despedaçar, matar, afligir, atormentar e destruir esse povo por estranhas crueldades; de tal sorte que de três milhões de almas que havia na ilha Espanhola e que nós vimos, não há hoje de seus naturais habitantes nem duzentas pessoas, por outro, é necessário considerarmos a insuficiência imunológica a ataques virulentos tanto externos quanto internos, que provocam o extermínio de populações humanas. Como denominar essa insuficiência imunológica tão bem descrita por Frei Bartolomé de las Casas senão com o adjetivo "psíquica"? De fato, os índios americanos, ao tempo da conquista espanhola, sofriam de uma insuficiência imunológica psíquica que os tornava indefesos diante dos virulentos ataques da espada e da gripe espanhola.
Essa incapacidade de se proteger contra ataques virulentos habita o imaginário ocidental que possui numerosas e repetidas manifestações da insuficiência imunológica psíquica.
Não cabe, neste trabalho, uma listagem analítica dessas manifestações pois o que interessa reconhecer é que, desde a Bíblia Sagrada até O coração informado (1985), de Bruno Bettelheim, o que se repete na história do Ocidente é um mito das origens da subjetividade humana que se apóia na ameaça do extermínio da espécie por uma insuficiência imunológica a ataques virulentos vindos originalmente do exterior.
Neste sentido, a psicanálise não é diferente e se insere nessa tradição. O aparelho psíquico é, desde os começos da psicanálise, uma construção que responde à violência primordial que ameaça a existência física do sujeito e da espécie e, ao mesmo tempo, é insuficiente para proteger o sujeito de ataques virulentos tanto internos como externos. Em Neuroses de transferência: uma síntese (1987), Freud constrói um mito das origens da psicopatologia psicanalítica que coincide com o da subjetividade humana. Assim, é possível dizer, com Freud, que não só o ser humano apresenta um desamparo originário, como este se deve à insuficiência imunológica a ataques virulentos vindos do exterior. A chamada era glacial ameaça a sobrevivência da espécie que encontra, nas neuroses de transferência, formas criativas de se proteger dessa ameaça e que vão constituindo o psiquismo humano. Para Freud, pelo menos nesse importante texto, não há como separar corpo e psique, não há como distinguir subjetividade e psicopatologia e não há como supor que as manifestações psicopatológicas não sejam somáticas e se distingam da subjetividade. Para Freud, histeria, perversão, obsessão etc. são modos de subjetivação, ou melhor, são a subjetividade pois o sujeito se constitui somente por essa via. É por isso que é possível se falar de uma psicopatologia fundamental, pois o que não institui a subjetividade pela via psicopatológica produz o extermínio.
Entretanto, apesar dessas descobertas tão importantes, ainda estamos longe de compreender porque certas populações são mais vulneráveis do que outras a ataques virulentos, e porque se deixam destruir sem esboçarem sequer uma defesa manifesta. Que todos somos portadores de um desamparo originário que é responsável inclusive por uma insuficiência constitutiva do aparelho psíquico, não se discute. Essa é uma importante descoberta freudiana. Que a subjetividade humana se manifesta, ainda que de forma evanescente, pela via psicopatológica, também não se discute. Mas ainda que sejamos todos iguais, há uns que são mais iguais do que outros constituindo, assim, um enigma que pede imperativamente um esforço de pesquisa e de compreensão. A esse desamparo adicional que, como uma paixão, expõe o sujeito ao extermínio é que estou denominando de insuficiência imunológica psíquica.
Essa estranha manifestação da subje-tividade humana tem sido uma de minhas preocupações desde 1982 quando escrevi trabalho intitulado "Entre a Aids e o beijo da mulher aranha" publicado em Psicanálise da clínica cotidiana (1988).
Aqui pretendo relatar caminhos e veredas, rios e igarapés percorridos pela minha pesquisa desde aquele artigo.
As idéias que aqui apresentarei podem parecer um tanto estranhas e por isso solicito a indulgência da escuta de todos.
Partindo do relato de Frei Bartolomé de las Casas fui levado a perguntar o que haveria de comum nos genocídios que se repetiram no Ocidente, a partir da matança dos índios centro-americanos, passando pelos índios sul-americanos, pelos judeus e pelos ciganos, já que todas essas populações são tão diferentes entre si?
A resposta mais óbvia a essa pergunta é que todas essas populações foram confrontadas com violentos ataques virulentos vindos do exterior. Mas essa resposta esbarra com uma grande dificuldade, pois enquanto essas populações não apresentaram nenhuma grande resistência coletiva sistemática a esses ataques, outras populações - como a dos vietnamitas - quando expostas a ataques de mesma natureza apresentaram resistência heróica.
Prefiro falar de populações humanas do que de sujeitos porque estes colocam problemas adicionais que são mais difíceis de serem tratados. Assim, por exemplo, se tomarmos o caso da relação torturado-torturador que se inscreve no processo de colonização e que foi tão bem descrita e analisada por Franz Fanon em Os danados da terra em que o torturado vai, rapidamente, se identificando massivamente com o torturador, é difícil distinguirmos se se trata de uma insuficiência imunológica psíquica que decorre da posição de colonizado, tal como é descrita por Fanon, ou se estamos diante de uma encenação sadomasoquista. Porém, o grande livro de Fanon pode nos ajudar se pensarmos o processo mesmo de colonização como um ataque virulento contra populações que apresentam uma insuficiência imunológica psíquica.
A partir dessas questões fui levado a pensar na organização sócio-psíquica dessas populações e algumas hipóteses frutíferas começaram a surgir.
Assim, todas as populações massacradas possuem uma longa tradição comunitária que se opõe à tradição societária, ambas descritas por sociólogos e antropólogos como Max Weber, Ferdinand Töennies, Claude Lévy-Strauss e Louis Dumont.
O que caracteriza as relações sociais comunitárias em oposição às relações sociais societárias é que as primeiras se revestem de uma ausência de individualismo. Na comunidade, as pessoas nascem para ocupar posições fixas previamente determinadas. A mobilidade social é, também, definida por normas rígidas previamente estabelecidas, de forma que os membros da comunidade não se deslocam segundo critérios pessoais. Os desvios das normas institucionalizadas, quando ocorrem, são acompanhados por punições também conhecidas, de forma que não há espaço social para aquilo que se denomina liberdade pessoal. As noções segundo as quais é possível ocupar diversas posições, se deslocar no espaço social segundo critérios pessoais, e inventar relações sociais são praticamente desconhecidas nas relações comunitárias. Quem já viu ou leu O violinista no telhado compreende perfeitamente não só o que seja a comunidade que, no caso dos judeus chama-se shtetl, como percebe claramente as dificuldades enfrentadas diante de um ataque externo virulento. Os deslocamentos, as condensações e as dispersões são vistos pelos membros da shtetl como mecanismos indesejáveis que ameaçam a comunidade que possui precedência em relação a seus membros. Com a persistência dos ataques externos virulentos, tendem a se salvar os membros que abandonam os princípios da comunidade adotando uma atividade que se expressa por movimentos físicos e psíquicos.
O processo colonizador não é maléfico em si e pode se constituir num ataque virulento externo bem sucedido dependendo, portanto, da insuficiência imunológica psíquica da população colonizada e esta, por sua vez, depende, em parte, da organização social existente na colônia. Tanto no caso de vírus e outras doenças que se instalam nos corpos, até o caso de populações que invadem territórios pertencentes a outras populações, a colonização apresenta, sempre, uma complexidade que necessita ser cuidadosamente analisada. Compare-se, por exemplo, os casos de Angola e Moçambique com o do Brasil, todos, aparentemente, colônias portuguesas. Em artigo intitulado "A desintegração do Zaire" publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 06 de maio de 1997, António Amaral De Sampaio, ex-embaixador do Brasil na Síria, na ex-Iugoslávia e, ultimamente, na África do Sul, observa pertinentemente que:
Exceto as antigas "províncias ultrama-rinas" portuguesas, onde em mais de 400 anos de incompetente exploração dos nativos nada foi feito a fim de prepará-los para o exercício da soberania - e atual situação de Angola e de Moçambique constitui exemplo da obscurantista política colonial lusitana - e, excluindo os exemplos grotescos da Uganda de Idi Amin e da República Centro-Africana de Bokassa, em nenhum outro país a herança do colonialismo se revelou tão apavorante quanto no Congo Belga, ou Zaire, ou atual República do Congo logo após a independência (1960).
Por que, então, sendo o Brasil uma colônia portuguesa conseguiu escapar desse funesto destino lusitano? A resposta a esta pergunta pode ser encontrada na elite luso-brasileira que engendrou a independência do Brasil em 1822. Essa elite, que denomino a geração de José Bonifácio, nascida no Brasil, foi educada quase toda na Universidade de Coimbra onde aprendeu o romantismo, o iluminismo e o liberalismo vigentes na Europa durante a segunda metade do século XVIII. Aprendeu, também, o caráter retrógrado e expoliativo da política colonial portuguesa. De volta ao Brasil, essa elite luso-brasileira de bacharéis coimbrães fez uma opção político-ideológica pelo Brasil, enquanto nação independente de Portugal, que conservaria a integridade de todo o seu território e que permaneceria unida pela língua e por um regime formalmente liberal, mas, de fato, elitista e iluminista. Assim, a geração de José Bonifácio realiza seu projeto e instaura o bacharelismo, versão brasileira do liberalismo, que é juridicamente liberal, mas que é regido, também, pelo favor, pela panelinha, pelo jeitinho e outros mecanismos sociais que asseguraram, por muito tempo, uma hegemonia que proporcionou a independência, a rearticulação do Brasil com a Europa e a unidade territorial e lingüística de nossa civilização.
Ora, assim pensada, a geração de José Bonifácio rompeu com a tradição para assegurar a vida nacional independente. Nada disso foi realizado nem em Angola nem em Moçambique.
A situação do Vietnã tem muito a nos ensinar a respeito da insuficiência imunológica psíquica. A adesão do Vietnã do Sul aos invasores, sem uma defesa imunológica, produziu uma intensa desorganização social que foi acompanhada por um enfraquecimento generalizado que levou à prostituição, às drogas, ao jogo, à corrupção genera-lizada, à altas taxas de suicídio e de criminalidade, sem falar das doenças venéreas. Ao mesmo tempo, o heróico povo do Vietnã do Norte "optou" por um outro caminho: o da resistência ativa que implicou no abandono de alguns princípios comunitários como o apego à terra, a imobilidade geográfica e social, a obediência a hábitos regidos por costumes ancestrais.
Em 1967-1968 era Professor de Métodos e Técnicas de Pesquisa em Sociologia da Cadeira de Sociologia I na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e, devido ao clima estudantil e a interesses científicos, resolvi oferecer um curso sobre "Técnicas revolucionárias de mudança social". Tendo voltado aos Estados Unidos para terminar e defender o doutorado na Universidade de Cornell, no segundo semestre de 1968, aproveitei a oportunidade para preparar o Curso que ofereceria em março de 69, em São Paulo, e coletei e li praticamente todos os manuais de guerrilha e de contra-guerrilha disponíveis nos Estados Unidos, de Che Guevara ao General Giap. Retornando ao Brasil, em dezembro de 68, com a mala cheia de manuais de luta armada, tomei conhecimento da existência do AI-5 que havia acabado de ser editado e que não só impossibilitou a realização desse interessante projeto, como requereu a destruição imediata de toda a literatura e das notas que havia escrito sobre o assunto.
Entretanto, a leitura preparatória para o curso que nunca ocorreu serviu para que percebesse alguns elementos comuns nesses livros que foram escritos para o combate a ataques virulentos ou, então, para lutar contra inimigos considerados virulentos.
Em primeiro lugar, o que fica mais evidente na comparação entre os que fracassaram e os que foram bem sucedidos na luta anticolonial é a autonomia. Os índios centro-americanos confundiram os espanhóis com deuses e, assim, perderam qualquer possibilidade de autonomia e não puderam esboçar qualquer gesto de defesa diante do ataque virulento dos espanhóis. Algo muito semelhante, por incrível que pareça, ocorreu com os judeus diante do nazismo. Eles "não acreditaram" que os nazistas fossem capazes de tanta crueldade. Ou, dito de outra maneira, muitos estavam tão felizes na Alemanha e na Polônia que nunca pretenderam sair de lá, mesmo diante das ameaças dos nazistas. Essa falta de autonomia de judeus e de ciganos parece estar intimamente associada à natureza comunitária das relações sociais predo-minantes nestas populações.
Há, na falta de autonomia, uma perspectiva ótica que precisa ser levada em conta. A falta de autonomia se manifesta por uma perspectiva que relaciona esteticamente o pequeno com o grande. Tanto nas descrições de Frei Bartolomeu de las Casas como na chamada "estética do nazismo" se representa o grande, o majestoso, do lado dos espanhóis e dos nazistas e é essa a ótica que informa, de maneira sistemática, tanto a estética da colo-nização como a da insuficiência imunológica. Psicanalistas diriam, com razão, que estamos, aqui, diante de uma estética fálica onde o colonizado fica na posição do destituído diante da grandeza do colonizador.
Ora, se a falta de autonomia é regida por uma estética fálica, é necessário se pensar sobre as possibilidades de deslocamento psíquico que introduza uma outra estética.
Como se sabe, o deslocamento é uma das principais armas da guerra de guerrilha, que é sempre uma guerra de movimento, ainda que nunca esteja descartada a possibilidade de uma guerra de posição pois o próprio movimento assegura o domínio sobre um território. Porém, a identificação, quer seja a um território como, por exemplo, a pátria, quer seja a uma identidade social pode ser fatal para o que é objeto de um ataque virulento externo. Estar sempre pronto a mudar de território, ou melhor, se deslocar num território, a mudar de fisionomia, de profissão, de nome e de grupo de pertinência é uma das regras básicas da luta anticolonial. Mas é, também, uma das regras básicas do combate contra ataques virulentos externos. Assim, os manuais de guerrilha recomendam que o guerrilheiro não deve nunca entrar em contato com sua família de origem e deve estar sempre misturado na massa sem se identificar com ela.
Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes aborda esse problema da luta anticolonial em Pacto re-velado. Psicanálise e clandestinidade política (1994). Renato Mezan faz a seguinte descrição sucinta e clara do importante livro de Dodora:
Durante os "anos de chumbo" da ditadura militar, grupos de oposição ao regime escolheram, como modo de ação, a militância clandestina. Deixando para trás laços de família, amizade e profissão, os clandestinos abandonavam sua identidade civil, seu nome, por vezes sua aparência física, e mergulhavam na vida miserável dos deserdados e despossuídos. Qualquer que seja a avaliação da eficácia política desta iniciativa, a originalidade deste livro consiste em tomar o problema pela outra ponta: qual o custo psíquico, para o militante, desta experiência de perda e substituição de identidade? Com que meios mantinha-se o equilíbrio emocional, numa situação marcada pelo anonimato forçado, pelo risco de vida permanente e por frustrações mais pesadas do que as que todos temos que suportar? (cf. Arantes, 1994, 4a capa).
O livro de Dodora chama a atenção, portanto, para uma série de problemas relacionados à questão que aqui está sendo tratada. Assim, é preciso notar que ataques virulentos podem ocorrer a partir de forças pertencentes a um território que também é o dos atacados. Em outras palavras, a colonização pode ser tanto vinda de fora como de dentro do território. É claro que essa segunda possibilidade supõe uma sociedade diferenciada e complexa. Assim, não é o simples fato de existir comunidade que existe insuficiência imunológica psíquica. Em sociedades complexas, ataques virulentos podem ocorrer entre suas partes. É preciso notar, também, que a autonomia é um processo que resulta sempre em perdas e essas precisam estar constantemente sendo examinadas pois podem provocar insuficiência imunológica psíquica.
Em segundo lugar, os manuais de guerrilha enfatizam a necessidade da criatividade imaginativa ativa e da improvisação, ou seja, de uma disposição onírica de combinar ativamente recursos escassos que não estão habitualmente relacionados. A este respeito, recomendo a leitura do texto de Laura de Mello e Souza, "Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações" publicado no primeiro volume da História da vida privada no Brasil (1997). Quando trata da luta portuguesa contra os invasores holandeses em Pernambuco, a grande historiadora brasileira refere-se à habilidade adquirida pelos portugueses para obterem recursos escassos da terra para sua sobrevivência, enquanto os holandeses, estrangeiros que eram nessa terra, sofriam com a falta de mantimentos. Ora, estamos novamente, aqui, diante de uma estética que informa os portugueses a respeito de recursos diante de atacantes virulentos externos.
Em terceiro lugar, os manuais de guerrilha enfatizam o princípio da iniciativa, ou seja, da atividade em detrimento da passividade. Um guer-rilheiro passivo é um guerrilheiro morto. O guerrilheiro não pode permitir que o inimigo tome a iniciativa do combate. Mesmo quando se mantém quieto diante de um ataque massivo, o guerrilheiro está no comando das ações. Quando o inimigo ataca maciçamente um deter-minado território, é necessário abandonar o território atacado e contra-atacar o inimigo desde um outro território que não está sendo considerado, naquele mo-mento, pelo inimigo. Essa prática desnorteia o inimigo e o deixa perdido no espaço do combate.
Chamo a atenção dessas regras porque elas me parecem úteis para pensarmos a questão da insuficiência imunológica psíquica.
As regras e recomendações dos manuais de guerrilha se opõem francamente tanto às imagens passivas e imobilizadas que Frei Bartolomeu de las Casas produz a respeito dos índios centro-americanos como às imagens da shtetl que são apresentadas em O violinista no telhado quanto, finalmente, à estética nazista que sempre coloca os colonizados numa posição inferior.
O corpo humano, incluindo, obviamente, o aparelho psíquico, já que este não se distingue daquele, pode ser visto como um território a ser protegido de invasores virulentos indesejáveis. Combatê-los requer recursos psíquicos que podem, aparentemente, coincidir com o individualismo, mas que não são necessariamente individualistas. Esses recursos são, entretanto, úteis para aumentar a insuficiência imunológica e proteger o corpo contra atacantes virulentos externos.
Dentre esses recursos gostaria de destacar a fantasia que cada sujeito tem a respeito da posse de seu corpo enquanto campo, enquanto território com recursos naturais. Quando me refiro, aqui, a recursos naturais estou pensando na physis, a noção grega de natureza, que poderia ser traduzida por brotação.
No Ocidente, graças a uma velha tradição que separa corpo e alma, soma e psique, carne e espírito, é comum ocorrer um total desconhecimento a respeito do próprio corpo. Esse desconhecimento é campo fértil para fantasias melancólicas que enfraquecem sobremaneira as defesas a ataques virulentos externos. Fantasias que produzem representações frágeis e pobres do próprio corpo são equivalentes a fantasias maníacas que contêm uma concepção onipotente do corpo. Essas fantasias inconscientes que revelam um desconhecimento, uma falta de intimidade com o corpo e, até mesmo, uma recusa do reconhecimento da existência do corpo são, muitas vezes, responsáveis pela insuficiência imunológica a ataques virulentos externos.
O trabalho de pesquisa que vem sendo desenvolvido por Ana Cleide Guedes Moreira no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Núcleo de Psicanálise do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC de São Paulo aprofunda e amplia a constatação de Gallo segundo a qual a depressão melancólica acelera substancialmente a velocidade e a intensidade da destruição das defesas do organismo pelo vírus HIV. Pacientes soropositivos melancólicos tendem a morrer muito mais rapidamente do que pacientes portadores de vírus que não apresentam crise melancólica.
Observa-se, também, que pacientes com insuficiência imunológica têm uma estrutura psíquica muito semelhante à dos índios centro-americanos descritos por Frei Bartolomé de las Casas. Não só revelam uma grande incapacidade de se proteger contra ataques virulentos externos, como há uma disponibilidade a ataques virulentos endógenos que freqüentemente levam à destruição. Essa destrutividade psíquica inconsciente é uma herança e não convém que menosprezemos o ódio destrutivo de nossos antepassados, especialmente o das mães narcisistas. O ódio materno é, ainda, muito pouco estudado, mas os livros de Conrad Stein, As erínias de uma mãe (1988) e a coletânea organizada por Teresa Pinheiro e Helena Besserman Viana, As bases do amor materno (1991), são suficientes para revelar que associado ao amor existe um ódio destrutivo que pode ser uma das bases da melancolia e que se expressa, por exemplo, pela superproteção dos filhos. Esses personagens destrutivos que são também designados de mãe-fálica, têm a capacidade de produzir em seus filhos um desconhecimento da capacidade de se cuidar e se proteger, já que todo o poder é concentrado na mãe fálica. Tal poder imaginário lança o filho no âmbito de um desamparo passivo e, ao mesmo tempo, lhe permite desenvolver uma disponibilidade para se entregar ao outro e esse é um campo fértil para a colonização perniciosa, um campo onde pode vicejar a insuficiência imunológica psíquica.n
Manoel Tosta Berlinck
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Bibliografia
1. ARANTES, Maria Auxiliadora de Almeida Cunha, Pacto re-velado. Psicanálise e clandestinidade política, São Paulo, Escuta, 1994.
2. BERLINCK, Manoel Tosta, "Entre a Aids e o beijo da mulher aranha: sobre a direção do tratamento" in Psicanálise da clínica cotidiana, São Paulo, Escuta, 1988, pp. 43- 49.
3. BETTELHEIM, Bruno, O coração informado, trad. de Celina Cardim Cavalcanti, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
4. CASAS, Frei Bartolomé de las, Brevíssima relação da destruição das Índias. O paraíso destruído. A sangrenta história da conquista da América espanhola, trad. de Heraldo Barbuy, Porto Alegre, L&PM, 1996.
5. CORTEZ, Hernan, A conquista do México, trad. de Jurandir Soares dos Santos, Porto Alegre, L&PM, 1996.
6. FANON, Franz, Os danados da terra
7. FREUD, Sigmund, Neuroses de transferência: uma síntese, trad. de Abram Eksterman, Rio de Janeiro, Imago, 1987.
8. HILFERDING, Margarete; Pinheiro, Teresa e Vianna, Helena Besserman, As bases do amor materno, São Paulo, Escuta, 1991.
9. MELLO E SOUZA, Laura de, "Formas provisórias de existência: a vida cotidiana nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações" in col. dirigida por Novais, Fernando A., vol. org. por MELLO E SOUZA, Laura de, História da vida privada no Brasil 1. Cotidiano e vida privada na América portuguesa, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
10. SAMPAIO, António Amaral De, "A desintegração do Zaire" in O Estado de São Paulo, 06 de maio de 1997.
11. STEIN, Conrad, As erínias de uma mãe. Ensaio sobre o ódio, São Paulo, Escuta, 1988.
*Publicado no Boletim de Novidades da Livraria Pulsional, de nº 103, novembro de 97.
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