Por uma psicopatologia da alimentação cotidiana

Daisy Justus

Resumo
Item que compõe o nosso cotidiano, a alimentação apresenta-se nos dias atuais como fator desencadeante de notórios distúrbios. Constituindo uma fonte de gozo, expressam uma forte vinculação com a sexualidade infantil, pela via da regressão. A proposta da Psicanálise será operar uma torção que implique na passagem de uma problemática referida ao corpo, por ordem do manifesto, para alcançar a palavra do desejo ali, onde o inconsciente está latente.

Palavras-chave: Psicopatologia, alimentação, sexualidade, gozo

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Gosto tanto de feijão com arroz!
Meu pai e minha mãe que se privaram
da metade do prato para me engordar
sofreram menos que eu.
Pecaram exatos pecados,
voz nenhuma os perseguiu.
Quantos sacos de arroz já consumi?
Ó Deus, cujo reino é um festim,
a mesa dissoluta me seduz,
tem piedade de mim.
Adélia Prado - "A boca":

Vivemos uma época de forte exigência de perfeição de imagem. Novas figuras do corpo são construídas a partir dos cruzamentos entre narcisismo, sociedade do espetáculo, angústia, pânico, depressão, consumismo, sexo e morte. Essas questões vêm acossando o cotidiano da clínica psicanalítica.

A pressão social por uma figura cada vez mais magra se converteu em uma espécie de tirania de valores. Deste modo os prazeres da mesa são hoje regados por sólido sentimento de culpa, e esse tempero, que passou a fazer parte do nosso cotidiano, do nosso "feijão com arroz", vem sendo acompanhado do crescimento alarmante de toda uma patologia do comportamento alimentar, quais sejam os quadros de bulimia, anorexia, obesidade, compulsão alimentar. Importante ressaltar que paralelamente a essa patologia passamos por um estágio de uma sexualidade pretensamente liberada, enquanto que, paralelamente, o sexo nunca foi tão estudado, codificado, medicado e exibido.

A alimentação está diretamente ligada à biologia, mas não se limita a ela. Sabemos que a humanidade se alimenta de carnes, vegetais, frutas e de imaginário. Mas o simbólico, o onírico, os significantes, os mitos, os fantasmas, a sexualidade também compõem nossas refeições. No ato de nutrição o sujeito, o homem biológico e o homem social estão intrinsecamente misturados. Temos total liberdade para escolher o que, onde, como, e até com quem queremos comer. Mas será que exercemos esse direito de escolha em sua plenitude? Trata-se realmente de um tema transdisciplinar, um objeto de múltiplas entradas, onde os enfoques ditos especializados jamais revelarão "a verdade".

Estendendo a abordagem à Antropologia, lembramos que a cozinha pode ser definida como um processo que simultaneamente une e afasta o mundo natural e o humano, posição tão primordial para a Antropologia quanto a proibição universal do incesto. Segundo Lévi-Strauss, ambas estão prefiguradas pela linguagem. "A palavra é o modelo de ambos, ponte entre o grito e o silêncio, a não significação da natureza e a insignificância dos homens" (Paz, 1977).

Em seu estudo em que se conjugam 187 mitos Lévi-Strauss percebeu a presença de um tema comum, apesar de nunca explícito, qual seja a oposição entre o cru e o cozido, a natureza e a cultura. Melhor dizendo: em todos esses mitos a oposição entre a cultura e a natureza se expressa do mesmo modo como na criação humana por excelência, qual seja a cocção dos alimentos pelo fogo domesticado.

Os símbolos se sucedem em sua contradição: o contínuo e o descontínuo, a vida breve e a imortalidade, a terra e o céu, o aberto e o fechado (as aberturas do corpo humano surgem convertidas em um sistema simbólico referente à ingestão e à dejeção), o canibalismo e o vegetarismo, o incesto e o parricídio, a caça e a agricultura e outros tantos. Lévi-Strauss observa que todos os mitos são metáforas culinárias, e enfatiza que a própria cozinha é, por sua vez, um mito, uma metáfora da cultura.

Na realidade o sentido final de todas essas metáforas é a morte. Embora a necessidade de sobreviver pela alimentação e pela procriação seja comum a todos os seres vivos, os artifícios com que o homem enfrenta esta fatalidade o convertem em um ser único.

Já Michel Foucault observou que a escolha de um alimento é, em sua estrutura, uma escolha existencial, pela qual se chega à constituição de si mesmo. A arte de comer seria a arte in fine. Em O uso dos prazeres, é possível encontrar uma descrição da dietética como algo equivalente a uma "arte sem museu". Trata-se de algo equivalente a uma lógica do corpo, ao mesmo tempo uma suposta defesa do poder. Segundo Foucault, "a prática do regime como arte de viver é (...) toda uma maneira de se constituir como um indivíduo que tem o cuidado justo, necessário e suficiente de seu corpo" (Foucault,1984). A dietética torna-se ciência da subjetividade, já que ética e estética se confundem. Deste modo pode existir uma ciência do particular que faz ponte com o universal, ou seja, ela é um meio indireto para a construção de si próprio. Onfray, ao tratar desta singularidade que ela autoriza, da auto-elaboração que ela permite, oportunamente, faz referência à conhecida reflexão de Brillat-Savarin apresentada em Fisiologia do gosto: "Diga-me o que comes, dir-te-ei quem és".

Goethe afirmava que a Natureza retira das formas antigas o modelo para as novas, num movimento tal que propicia como que uma rememoração dos primeiros modelos. Sabemos que o desenvolvimento psico-sexual se efetua por etapas sucessivas, marcando a construção da subjetividade e comportando seu eventual recuo: por isso a regressão mantém-se permanentemente possível.

Se a Psicanálise aceita o desafio que a questão propõe, uma primeira referência pode ser o texto "Romances Familiares", onde Freud aborda com clareza o fato de que o ser humano está indubitavelmente ligado à sua família e ao seu entorno, que, por sua vez, constituem a fonte primordial de suas pressões

Freud insistiu neste fato: o passado infantil, tanto do sujeito como das civilizações, permanece sempre vivo: "Os estados primitivos podem ser reinstaurados. O psíquico primitivo é, no seu pleno sentido, imperecível" (Freud, 1915). Esta imagem de um passo atrás aparece na psicopatologia, nos sonhos, na história das civilizações, na biologia, etc. O ressurgimento do passado no presente é ainda marcado pela noção de compulsão à repetição.

O conceito de regressão se articula diretamente com o de retorno do recalcado, que consiste por sua vez no fracasso do recalque e na irrupção do recalcado à superfície. Freud, frisando a importância da fixação, irá observar que "essa irrupção nasce no ponto em que ocorreu a fixação e implica uma regressão da libido até esse ponto preciso" (Freud, 1911). Existem tantos pontos de fixação da libido quantas são suas etapas de evolução.

Rastreando alguns textos freudianos percebemos com nitidez a articulação entre o registro sexual e o registro alimentar, chegando até mesmo a um deslocamento. Ou seja, há como que uma regressão através de suas modalidades as mais arcaicas, chegando inclusive à alimentação fetal.

Nos Três ensaios sobre a Sexualidade Freud chamou de pré-genitais as organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel predominante. A primeira delas é a oral ou organização pré-genital canibal. Observou: "Aqui a atividade sexual ainda não se separou da ingestão de alimentos, nem são correntes opostas dentro da atividade diferenciada. O objeto de ambas as atividades é o mesmo: o objetivo sexual consiste na incorporação do objeto o protótipo de um processo que, sob a forma de identificação, deverá desempenhar mais tarde um importante papel psicológico" (Freud, 1905).

Em Totem e Tabu, texto de 1913, Freud associa com clara nitidez a universal "fobia do incesto" com os interditos alimentares. Destaca a faculdade geral dos tabus de recair, "na maioria das vezes, sobre objetos comestíveis".

Mais adiante, ao estudar o caso do Homem dos Lobos, Freud diz sentir-se inclinado, "embora com as devidas reservas", a considerar o distúrbio no apetite de seu paciente "como resultado de algum processo na esfera da sexualidade". Afirma que a diminuição da pulsão de nutrição (embora possa certamente ter outras causas) chama atenção para uma deficiência, por parte do organismo, no domínio da excitação sexual. Nessa fase o objetivo sexual só pode ser o canibalismo, o propósito de devorar; no caso do referido paciente, surge através da regressão de um estágio mais elevado, na forma de um medo de "ser comido pelo lobo". "É sabido", continua Freud, "que existe uma neurose nas meninas que ocorre numa idade muito posterior, na época da puberdade ou pouco depois, e que exprime a aversão à sexualidade por meio da anorexia. Essa neurose terá que ser examinada em conexão com a fase oral da vida sexual" (Freud, 1918).

Em sua pesquisa sobre a clínica da anorexia mental Éric Bidau apontou a supremacia de um particular laço mãe-filha, "unindo uma e outra no sofrimento de uma história passional". Afirma ser um enigma a intensidade dessa dependência, defendendo, porém, a hipótese da anoréxica estar "sob o domínio do desejo incestuoso de sua mãe" e permanecer "intocada" pelo desejo do pai; "ela permanece inacessível à sedução como fantasia organizadora que introduz ao Édipo". (Bidau,1998).

Éric Bidau mostra que na anorexia "o abandono e o afastamento progressivo do objeto alimentam um masoquismo mortífero que só se pode compreender nos termos de um paradoxo. Com efeito, a diminuição do investimento no objeto é acompanhada por um refluxo narcísico: há uma preocupação exclusiva com si mesma. Se a anoréxica ameaça sua própria vida, não é por falta de interesse pela sua própria conservação, mas, ao contrário, porque ela só faz ocupar-se disso e se vê na impossibilidade de se interessar por outra coisa" (idem).

Não há despreendimento, nem espaço para qualquer conjectura. "A dualidade fixa do domínio mãe-filha não permite à morte enfrentada desempenhar um papel mediador, colocar-se como um limite" (ibidem). A posição narcísico-passional, longe de se desfazer, consiste em submeter-se à fascinação, "no absoluto de uma imagem estancada, de uma cena onde se petrifica a relação de tentação". O alimento é, então, um ponto de sideração.

Temos aqui um ponto essencial: a pregnância do apego pre-edipiano à mãe e a dificuldade para a jovem anoréxica de ultrapassar essa ligação para que se elabore a mudança do objeto de amor da mãe para o pai. Sendo assim a anorexia se constitui não só como um movimento de poder, mas também como um sintoma de desejo, um desejo de nada.

Podemos concluir, com Bidau, que ao lado do caráter regressivo acima referenciado das patologias alimentares, tomando a anorexia como exemplo, temos que dar ênfase também à constelação narcísica que parece ser um ícone na maioria das desordens alimentares contemporâneas. A estrutura narcísica serve de escora, reforça Pierre Aimez, ao projeto geral de negar a separação, a castração, a dependência, o Édipo e a morte: "Ela estipula, conseqüentemente, a nostalgia da organização pré-natal, fusional. Compreendemos sem dificuldade que, para a organização narcísica da criança, o desmame representa, após o nascimento, uma nova catástrofe confirmando a separação primitiva".

A angústia de castração atravessa a estrutura subjetiva. Sabemos também que a experiência do desmame mantém-se indefinidamente enquanto perda de objeto e primeira ferida narcísica, mantendo-se como "ponto de fixação-regressão em torno do qual oscila todo psiquismo".

Lacan apontou que Freud situou como pulsão de morte algo que "para nós depende do fato de que a morte do homem, bem antes de se refletir, de maneira sempre ambígua, no pensamento, é experimentada por ele na fase de miséria original que vive desde o traumatismo do nascimento até o fim de seus seis primeiros meses de prematuração fisiológica, e que ecoará em seguida no traumatismo do desmame" (Lacan, 1946).

Pierre Aimez coloca a questão: "As patologias alimentares gravitam todas, mais ou menos, em torno da recusa desta "castração original". O desejo do sujeito, na impossibilidade de se envolver nas esferas do imaginário e do simbólico, mantém-se preso à rede de necessidades corporais. A "mãe má" empanturra, e deste modo sufoca o desejo nascente. A sociedade de consumo arremata esta ceva: e deste modo, ela faz signo à "delinqüência alimentar" atual. Toda privação é registrada como uma frustração e, de imediato, a nutrição torna-se, para muitos, o remédio privilegiado para a restauração de uma integridade narcísica perpetuamente ameaçada... Há como que uma perseguição a uma embriaguez narcísica, para anular as feridas sucessivas ao eu" (Aimez, 1979).

Françoise Dolto em A Imagem Inconsciente do Corpo reafirma essa abordagem observando que, ao ocorrer de forma positiva, o desmame desperta a possibilidade e provoca o desejo de inserção da palavra e, portanto, da exploração de novos meios de comunicação. São prazeres diferentes, com objetos que, apesar de não poderem ser mais incorporados, serão suportes de transferência do seio para um prazer ainda maior, partilhado com todos aqueles que compõem seu referencial simbólico.

Dolto adverte que o desmame inclui a figura da mãe: é necessário que também ela aceite o rompimento da dualidade onde a criança se encontrava totalmente dependente de sua presença física. A castração oral da mãe exige que ela mesma finalize sua relação erótica, enriquecendo a comunicação com seu filho, estendendo-a para além da alimentação, do lidar com seus excrementos e da "devoração" com carícias. Poderá, e deverá, explorar o uso da linguagem, que passa a se constituir como um prazer em si mesmo. São possibilidades de relação simbólica que são promovidas a partir desta castração.

Quando se trata do caso de ter sido a própria mãe uma criança ferida em sua relação filha-mãe, e a essa mãe permanecer fixada, o resultado será que o bebê passará a desempenhar para ela o papel de "fetiche deste seio materno arcaico do qual ela mesma foi desmamada de forma traumática" (Dolto,1992).

Ainda com Freud, já aprendemos que a fase oral da sexualidade deixa marcas permanentes nos usos da linguagem. "O oral é o emblema regressivo do sexual". Além da separação deste objeto parcial, o seio da mãe, que é também seu primeiro alimento, abre a possibilidade de "uma alimentação variada e sólida", que permita ao filho dizer o que quer... comer.

Vale recordar que há um hiato, um corte, entre a experiência da satisfação (ou seja, a saciedade após a absorção do objeto da necessidade no recém-nascido) e a impressão mnêmica da satisfação. Trata-se de uma perda de objeto e uma subtração de gozo no caminho que vai da experiência de satisfação ao traço mnêmico. A partir daí, como escreve Freud, "o desejo se transforma em alucinação" e "o pensamento não passa de um substituto do desejo alucinatório".

Prosseguindo essa abordagem, retomamos O mal-estar na civilização onde vamos ver que o movimento da humanidade em busca da felicidade, sustenta simultaneamente duas finalidades opostas: "Esta aspiração tem duas faces: por um lado, evitar a dor e, por outro, buscar grandes gozos (...) A tarefa de evitar o sofrimento relega a segundo plano aquela de obter o gozo". Há como que um abrandamento do princípio de prazer, já que é princípio de constância, e uma tendência à redução absoluta das tensões como princípio de gozo (princípio de Nirvana) (Freud, 1929).

Mais tarde, no seminário VII, Lacan aponta uma parceria entre o princípio de prazer e o princípio de realidade para alcançar um princípio de não-prazer. Porém, será exatamente o princípio de prazer, como princípio de não-desprazer, que irá fazer impedimento à obtenção do gozo mantendo-nos afastados deste. "Quem é que, em nome do prazer, não amolece, desde os primeiros passos um pouco sérios em direção a seu gozo?" (Lacan, 1988).

"Impressões freqüentemente dolorosas são, muitas vezes, fontes de fortes gozos, e não respondem às condições requeridas pelo princípio de prazer" (Freud, 1920). Deste modo o princípio de prazer é um princípio regulador em proveito da pulsão de vida, enquanto o princípio de Nirvana, proveniente da pulsão de morte, estabelece um vínculo singular com o gozo.

Segundo Nestor Braustein, o sujeito psíquico é como que o efeito de uma articulação entre "o Outro do sistema significante, da linguagem e da lei, por um lado, e o Outro que é o corpo gozoso, incapaz de encontrar um lugar nas trocas simbólicas, surgindo nas entrelinhas do texto como pressuposto (...) O gozo fica assim confinado por essa intervenção da fala a um corpo entregue ao silêncio, o corpo das pulsões, da procura compulsiva de um novo encontro sempre faltoso com o objeto". O gozo será sempre aquele de um corpo, corpo dilacerado por um fluxo contínuo e desordenado de excitação.

Lacan define assim o gozo: "O que chamo de gozo, no sentido em que o corpo o experimenta, é sempre da ordem da tensão, do forçamento do dispêndio, até mesmo da exploração" (Lacan, 1999). Sem dúvida alguma, há gozo no nível em que começa a aparecer a dor, o sofrimento, o desconforto por um comer a mais ou a menos. E será somente no enfrentamento desse nível do sofrimento e do mal-estar que se poderá ficar frente a frente com toda uma dimensão da origem que, de outra maneira, permanecerá oculta.

Prosseguindo vamos encontrar na teoria do trauma a abordagem freudiana de um excesso de excitação e de investimento, de um gozo que ultrapassa "o sistema amortecedor das representações ou dos significantes". Lacan fala desse excesso, como um furo no simbólico. É deste modo que "o gozo se torna o exterior, o Outro no interior de si mesmo", escreve ainda Braunstein.

A compulsão de comer ilustra bem essa questão. É preciso que o Outro que expõe o sujeito a atos e pensamentos absurdos continue existindo; é preciso acreditar nesses pensamentos, para poder continuar com a hesitação, continuar com o embaraço que o criou. E seu gozo se fixa exatamente no esforço que esse trabalho exige. Assim, faz-se necessário que ele continue ignorando a origem, e que o Outro também não saiba, porque, se ele se perguntar de onde eles vêm, não vai poder continuar gozando disso, a hesitação se desmantela pela ausência de concepção das proposições que lhe dão fundamento (Amorim e Sant'Anna, 1999).

O gozo é interditado ao sujeito falante e a lei se erige sobre esta interdição. É aquela que Freud afirma, sob o nome de complexo de castração, e que faz com que a lei do prazer entre na ordem simbólica: a lei do desejo. O princípio de prazer, como barreira contra o gozo, impõe limites à tensão que nasce no interior do organismo. Em contrapartida, o gozo não está do lado da vida, considerada como uma medida menor. Ele não serve para preservar. Ele é, segundo uma fórmula de Lacan, aquilo que não serve para nada.

O gozo é lógico e indisciplinado na medida em que abstrai, abre mão da palavra. Dito de outro modo a palavra usada, vazia, plena de sentido não tem poder para modificar o modo de ser do sujeito. Há como que uma dissimulação da própria vida.

Cada sujeito goza a seu modo. Mas, ao mesmo tempo, "o sujeito é um sujeito que não sabe", afirmou Lacan. O saber a respeito do eu só pode ser conseguido por aquele que diz, o que implica em abrir mão do gozo e do sofrimento.

Temos assim mesclado, em uma maquinaria complexa e precisa, a dupla trama neurose e enfermidade orgânica - obesidade x magreza. Segundo Paul-Laurent Assoun, esta enfermidade orgânica funda um pertencimento que torna possível uma posição subjetiva, presa a um real, e não uma simples patologia. Há nisso uma verdadeira Weltanschauung, visão do mundo articulada em torno de uma versão masoquista de um si mesmo e do outro.

Trata-se de uma clínica onde só se fala de pesos, calorias, carboidratos, exercícios, dietas, sobrevivência. São pacientes que chegam com todo tipo de conhecimentos acerca de temas referentes à alimentação e aos cuidados do corpo. Obesos, compulsivos, anoréxicos, bulímicos, enfim, todos se encontram presos nesta armadilha, inclusive familiares e os que deles cuidam. Não é o caso, em hipótese alguma, de reduzir as desordens alimentares a neuroses, ao lembrar que há que se reconhecer certa enfermidade do desejo, cuidadosamente disfarçada e mascarada graças à imagem do corpo enfermo, seja na obesidade, seja na magreza por vezes cadavérica. O que não quer dizer que não exista razão para pensar que o corpo pode exibir uma imagem que por si só faz um depoimento de uma des-simbolização.

A boca tem função dupla. Ao mesmo tempo que se abre para a ingestão do objeto que vai suprir a necessidade, qual seja, o alimento, ela propicia uma certa satisfação, colocando um desejo em cena. O objeto do desejo é um lugar-tenente do objeto, mesmo quando se trata de alimento. Logo, algo é visado para além do objeto proposto.

De fato, não se trata do alimento. Trata-se de uma outra coisa, cujo lugar é ocupado pelo alimento. A demanda é dirigida para essa outra coisa que não o objeto chamado por ela; é demanda de uma presença, sempre uma demanda de amor. Assim sendo, a demanda anula a particularidade de tudo o que pode ser concedido, transformando-o em prova de amor (Lacan, 1958).

Com relação às patologias alimentares, sabemos que a Psicanálise força o sujeito a se deparar com o vazio onde ele supunha haver um Outro a quem se submeter. O gozo nos captura e nos fixa no fantasma, o que se constitui num alto preço cobrado pelo gozo. Mas como, no cotidiano da clínica psicanalítica no que se refere às patologias da alimentação, passar do gozo da submissão à condição de sujeito desejante? O que fazer do excesso pulsional que pressiona na direção da repetição e do gozo e encontrar uma saída criativa?

Nessas patologias alimentares não é o caso, como vimos, do objeto-comida, mas da crise com relação ao impossível de ser dito. Trata-se de um gozo auto-erótico e que está submetido, como tal, à repetição. A dimensão do ato do analista pede aqui todo seu vigor. O desejo do analista ocupará um lugar central, já que determina uma lógica e sua ética. Deverá operar-se uma virada que implique na passagem de uma problemática supostamente referida ao corpo para alcançar a convicção da existência do inconsciente. Como um devaneio inscrito no corpo, as patologias alimentares são o indício de um mistério que se encarna, mas que podemos esperar recolocar em movimento, por meio da fala e do equívoco, a partir dos quais tudo permanece possível (Ansermet, 1999).

A Psicanálise deve levar em conta o que está escondido no corpo, isto é, não deve se deixar iludir pelo manifesto. O psicanalista precisará estar descompromissado para surpreender-se pelo que não surpreende, para ir bem mais além da imagem que o corpo oferece. Há que suportar a incerteza, o mistério e a dúvida para além do sentido implícito na imagem corporal e na queixa do sujeito. Essas são marcas implícitas da escuta do analista que sai em busca das moções inconscientes e conflituosas que estão implícitas nos sintomas da referida patologia da alimentação.

A Psicanálise mudou. Não analisamos mais como Freud analisava. Hoje falamos em clínica do gozo, e o sujeito em análise fica frente a frente com a soberania da resistência, mantendo um sofrimento encharcado de gozo, particularmente nas referidas patologias alimentares. Como faz o poeta, o analista deverá estar aberto para a dimensão criativa, já que a realidade deverá ser recriada, reinventada, permitindo a inserção do novo, da diferença no mais cotidiano e vital de nossos atos: a alimentação. O limite (ou excesso) será transformado em criação. Há que se inventar, literalmente, todo os dias, um novo prato, sem descuidar do preparo físico... da linguagem. Ser gourmet, e não gourmant, degustando o desejo e não devorando o objeto, saboreando o feijão com arroz diário através de um novo paladar a cada dia.

Concluímos com a palavra poética de Adélia Prado.

Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão, macarrão grosso)
quero comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não,
(vi um gato no caminho, fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz elétrica e o pai
consumir com o gasômetro, eu como).
Vamos ficar no escuro, mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na comida, no pensamento
toma a forma das coisas. Quando a senhora tem
raiva sem xingar é igual a ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito mãe. Vou comer agora não.
Vou esperar a luz elétrica.
Adélia Prado -"A menina do olfato delicado"


Bibliografia
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