Considerações sobre a reunião do dia 16/02/02 em São Paulo

Sérgio Telles

Muito grosso modo e somente para fundamentar o que passo a argumentar, lembro que no correr da história - tirando o modelo sempre excepcional dos gregos - o poder foi exercido pelo mais forte ou pela escolha divina. A Revolução Francesa é um passo definitivo ao estabelecer os modelos de nossa moderna democracia - ou seja, o poder é exercido por representantes do povo, que os escolhe através do voto secreto. A legitimidade do poder repousa agora nisso, ser ele referendado democraticamente. Todos conhecemos os percalços que ainda hoje envolvem - as mentiras, as seduções, a corrupção - a realização concreta deste ideal.

Esse modelo mais amplo de gerência da coisa pública serve de modelo para o funcionamento das instituições de modo geral. Tais instituições congregam pessoas em torno de objetivos comuns que se organizam para melhor consegui-los. É sabido como as instituições podem facilmente ser desvirtuadas em meras estruturas de poder. Esquecidas de suas prerrogativas primeiras, que é o organizar o interesse que congrega as pessoas que a ela pertencem, passam a ser o palco de lutas de puro poder. Como é uma patologia geral das instituições, nossas instituições psicanalíticas não podem pretender ser exceções a esta regra.

A questão do poder assombra e incomoda e talvez por isso mesmo não podemos nos furtar de examina-la. As implicações fantasmáticas do poder, ou seja, a onipotência narcísica e a não castração simbólica, apesar de muito conhecidas e freqüentemente lembradas são sempre perigos iminentes.

Um dos objetivos dos Estados Gerais, a meu ver, seria possibilitar uma reflexão sobre o exercício do poder nas instituições psicanalíticas, tarefa que caminha pari passu com o estudo da história destas instituições, que começa a emergir da repressão. Como Derrida afirma em "O mal de arquivo", os arquivos, a informação e seu armazenamento, a organização da memória e da história, tudo isso é privilégio dos arcontes, dos detentores do poder. A história é, por definição, um campo da repressão, do esquecimento, da denegação e do arquivo.

Em sendo assim, nesta nossa última reunião, ao saber de como têm funcionado os grupos no Rio e em Paris, veio-me a pergunta de como está se organizando o poder em nossas reuniões.

Especificamente, soube que em Paris tem havido um certo mal-estar entre algumas pessoas que se sentem excluídas do movimento na medida em que as reuniões se realizam no apto. de René Major e é necessário um convite para participar das reuniões. Isso me parece radicalmente diferente do nosso funcionamento, onde o convite é feito via internet para cerca de 3.500 pessoas. O mesmo ocorreria no Rio, onde - fui informado na reunião - tem havido algumas dissidências, com algumas pessoas que se dizem "indicadas" por René Major (RM) ou Elizabeth Roudinesco (ER) e como tal se sentem no direito de exercer o poder.

Penso ser legítimo o poder que RM e ER possam deter, na medida em que foram os criadores, mentores e organizadores originais deste movimento. Parece-me legítimo também que seu nome autorize a outros de exercerem o poder. Cristina Magalhães, entre nós, exerce um poder conquistado no trabalho e envolvimento que foi grandemente responsável pelo sucesso das reuniões realizadas até o presente.

Essa questão se colocou quando foi lembrado que aqui em São Paulo, as reuniões, supostas "assembléias gerais" para as quais são convidados - como já vimos - milhares de pessoas, na verdade se constituem de grupos muito pequenos, como a própria reunião onde discutíamos isso. Ao que ouvi então, no Rio, as assembléias são convocadas e caso não haja quorum, são canceladas.

Penso que isso levanta algumas questões, qual seria o quorum legítimo nesse nosso tipo de comunidade que virtualmente pode compreender milhares de pessoas espalhadas pelos mais variados rincões? Pessoalmente, penso que nossa decisão em São Paulo, sob a coordenação de Cristina, é um exemplo de "realpolitik" - o quorum suficiente é aquele que se faz presente, apesar da larga convocação. Funcionamos como uma corriqueira assembléia de condomínios de apartamento, onde uma minoria comparece e é esta que decide e realiza, não por usurpar o poder, mas por necessidade de evitar a paralisia e a inação.

Como falei anteriormente, uma das maiores conquistas dos Estados Gerais é o fato de que cada analista fala por si, em seu próprio nome, sem se sentir tolhido por filiações institucionais, que deteriam para si mesmas o uso da palavra. Essa é uma posição muito valorizada por todos nós e que deve ser defendida sempre.

Penso que na medida em que nosso movimento progride, talvez ele tenha de enfrentar novas formas de organização, devamos escolher representantes para diversas funções administrativas.

Isso não deve ser confundido com um abrir mão da tão querida posição de falarmos em nosso próprio nome. Continuaremos falando em nosso próprio nome, mas devemos entender que haverá situações onde isso seria praticamente impossível, sendo necessário que um representante o faça por nós, representante que seria escolhido por meios democráticos e voto.

Não devemos levar ao pé da letra a idéia de falarmos em nosso próprio nome.

E-mail: setelles@uol.com.br