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Os novos antidepressivos e seu impacto sobre a população
Rubens Coura
É muito inquietante para quem, como eu, prescreve e acompanha o uso dos psicofármacos antidepressivos há muitos anos, observar as reações dos vários setores da sociedade frente às novas versões desses medicamentos: como, por exemplo, presenciar as atitudes muitas vezes desavisadas e passionais de diversos profissionais, tanto "a favor" como "contra" tais medicamentos. Se essas mobilizações emocionais representarem um início de conscientização quanto aos enormes riscos inerentes ao uso de qualquer remédio; se representarem também uma percepção (ainda que incipiente) da quimera que consiste em pensar que alguma droga, unicamente por si, possa produzir um verdadeiro benefício psíquico - poderemos então considerar que há um movimento populacional de progresso na concepção que as pessoas têm de saúde, bem-estar geral e evolução psíquica.
Encontramos, além de textos laudatórios aos mais recentes antidepressivos (inibidores da recaptação da serotonina), outros que os condenam de todas as formas: desde assinalando efeitos colaterais muito danosos que incluem a indução de tentativas de suicídio, até afirmações de que se pode curar Depressão por meios "naturais" (alimentação sadia e exercícios físicos)1. Nos Estados Unidos, por exemplo, a pesquisadora Ann Blake Tracy, Doutora em Psicologia e Ciências da Saúde, escreveu um livro intitulado Prozac: Panacea or Pandora? (1994), no qual descreve os insucessos e os efeitos nocivos da Fluoxetina em cerca de 1.000 pacientes que teriam sido acompanhados por longo tempo.2
Em outro site da Internet, localizamos o tema The Dark Side of Prozac, no qual se descreve o mecanismo geral de ação da Fluoxetina e onde seus riscos de uso são comparados aos do uso de cocaína.3
No entanto, a ênfase nos efeitos colaterais desses e de outros antidepressivos não me parece a melhor forma de alertar a população quanto aos seus riscos, pois é sabido que mesmo medicamentos considerados "heróicos", como a penicilina (e seus derivados atuais) e o ácido acetil-salicílico (a aspirina) tiveram, e ainda têm, suas vítimas até fatais pelo mundo afora - sem que isso contra-indique seu emprego nos pacientes em geral. Também o insucesso do emprego de antibióticos derivados da penicilina, inclusive em muitas infecções hospitalares, bem como o insucesso terapêutico da aspirina em diversas modalidades de dor e de inflamação, não os tornam, em absoluto, medicamentos desprezíveis: continuam, com justiça, considerados úteis e respeitáveis pelos médicos em geral - e dentro do mais legítimo espírito hipocrático.
Acredito que a argumentação frágil contra os novos antidepressivos, por um lado importante, derive da decepção conseqüente ao desejo secreto de que tais medicamentos trouxessem a felicidade definitiva para as pessoas; não o aceitável e consciente tratamento da Depressão ou da Melancolia, mas a resolução última do conflito psíquico.
Creio que alguns psicanalistas também corram o risco de deslizarem, sutilmente, por esse lado de expectativas fantasiosas em torno dos novos antidepressivos - sem se darem conta disso. Basta vermos as atitudes de se tentar discutir tais psicofármacos em paralelo direto com a prática psicanalítica, como se ambos tivessem os mesmos pressupostos, os mesmos desenvolvimentos e os mesmos resultados: nessa superposição simplista, é claro que os antidepressivos ficarão, ilusoriamente, como sessões de análise concentradas em comprimidos - mais eficazes, mais rápidos e mais econômicos que as referidas sessões no divã. Dentro dessa medicalização da psicanálise, alguns psicanalistas ficam na mesma posição que alguns psicoterapeutas de pacientes aidéticos que tiveram sua clientela reduzida, tão pronto surgiram os medicamentos inibidores de protease; suas psicoterapias se baseavam na cura médica (em seu estrito sentido positivista), partilhando com os pacientes sua crença num porvir onde a Ciência traria a solução definitiva para a AIDS. É lamentável e compreensível que tais pacientes voltassem totalmente suas expectativas apenas para a obtenção e a garantia de suprimento da nova droga que pode prolongar suas vidas.
Temos notícia de diversas formas de notáveis e preciosas intervenções psicoterápicas de profissionais junto a pacientes aidéticos e a pacientes portadores do vírus da AIDS; o que estou tentando destacar aqui é um dos possíveis descaminhos, inconscientemente engendrados, no atendimento psicoterápico a esses e a quaisquer outros pacientes também padecendo de alguma moléstia considerada incurável.
O engano dos psicoterapeutas que mencionei é próximo àquele que levou ao súbito esvaziamento de muitas clínicas de Tisiologia (uma especialidade médica que veio então a se encolher grandemente) quando do surgimento da Estreptomicina (em 1944), o primeiro quimioterápico eficaz contra o bacilo de Koch - e da reafirmação de melhores possibilidades de cura com a Isoniazida (em 1952).4 Vários desses tisiologistas, muitos deles trabalhando em sanatórios, chegavam também a acenar ingenuamente, para seus pacientes, com a esperança no futuro promissor da Ciência: sem percebê-lo, transmitiam a esses enfermos sua expectativa inconsciente de que chegaria o grande momento em que a cura para a tuberculose seria "descoberta" - e que aí todos os pacientes que sofriam desse terrível mal seriam não propriamente tratados com o novo medicamento, mas, sim, felizes para sempre...
Nessa atitude de imperceptivelmente assim situarem seus tratamentos, é claro que tais tisiologistas estavam antecipando seu suposto obsoletismo como profissionais de Saúde - e que estavam marcando uma data imaginária para a despedida dos doentes que neles confiavam suas vidas. Tudo como numa infeliz e burocrática espécie de "aviso prévio" aos enfermos sob seus cuidados, no sentido de não mais contarem com seus préstimos - na dependência exclusiva do "relógio de ponto" da Ciência.
Mas a tuberculose não foi, afinal, debelada; no presente, o Prof. Antônio Ruffino Netto* nos alerta que "a cada 90 minutos um brasileiro morre por causa da tuberculose." E que, no plano mundial, ocorrem 3 milhões de óbitos anuais em decorrência dessa doença.5
É sabido, também aqui, que houve grandes mudanças na atenção e na prevenção da tuberculose - e de que existem múltiplos fatores sociais, econômicos e de mentalidade populacional a influenciarem os atendimentos aos pacientes com essa moléstia. Também se sabe do verdadeiro heroísmo de muitos médicos (inclusive tisiologistas) e de outros profissionais de saúde no cuidado com pessoas tuberculosas. O que destaco nessas páginas é tão-somente um possível equívoco do pensar de alguns médicos do passado, quando do surgimento das drogas eficazes contra a tuberculose. Isso deve ocorrer ainda na atualidade, com o encantamento de alguns pela expectativa fantasiosa de uma droga nova e de mágicas possibilidades definitivas contra essa enfermidade.
Por que falar em psicoterapeutas de pessoas com AIDS e em médicos de doentes tuberculosos quando estamos tratando do assunto dos antidepressivos? Simplesmente porque vejo esses mecanismos íntimos das pessoas se repetirem, em especial nas reações e atitudes de diversos profissionais que atendem demandas pelo sofrimento psíquico - inclusive na de alguns psicanalistas de nossos dias, no que diz respeito a um quase imperceptível fascínio pelos antidepressivos de nova geração.
Não devemos nos esquecer de que os medicamentos antidepressivos, a rigor, não são tão recentes: existem desde a década de 30 (as Anfetaminas) e com mais funcionalidade desde a de 50 - por uma estranha e até inquietante coincidência, através da Iproniazida, uma das primeiras drogas eficazes no combate à tuberculose e que é ainda uma droga tuberculostática atual - dotada do efeito colateral de poder estimular o psiquismo de pacientes tuberculosos deprimidos que a utilizavam.6
Esse inesperado efeito colateral de um remédio contra a tuberculose abriu uma nova era na Psicofarmacologia. Mas e quanto aos desastrosos efeitos colaterais de antidepressivos, denunciados até por depoimentos divulgados via Internet? Tampouco representam novidades, pois nas próprias pesquisas neurofarmacológicas ou psicofarmacológicas, a maioria desses efeitos já era descrita; é o caso da Fluoxetina (sendo Prozac apenas um dos seus nomes comerciais):
Seus efeitos colaterais principais são: náuseas, tremor, sonolência, sudorese, cefaléia, nervosismo.
E também, na seqüência:
Teicher et al. (1990) relataram a emergência de uma intensa preocupação com o suicídio em seis pacientes no início do tratamento com fluoxetina. Isso também pode ocorrer com outros antidepressivos.7
De fato, os próprios e mais antigos antidepressivos tricíclicos (utilizados no mundo inteiro há aproximadamente quarenta anos), como a Imipramina, também apresentam riscos para o paciente:
A ação desinibidora costuma aparecer nos primeiros dias, antecedendo a antidepressiva, fato que representa grave perigo nos pacientes com idéias de suicídio, adquirindo a necessária coragem para cometer o ato.8
Na própria bula atual (elaborada em 1996) do medicamento antidepressivo Cloridrato de Imipramina, encontramos, na "Informação ao Paciente", as possíveis reações que podem ocorrer com o uso da droga:
(...) ... secura da boca, distúrbios visuais; prisão de ventre; ganho de peso; reações alérgicas na pele, cansaço, confusão, distúrbios do sono, ansiedade, agitação, vertigens, tremores, dores de cabeça, fraqueza muscular; aumento da freqüência cardíaca, náuseas, vômito, diarréia e falta de apetite.9
Nessa mesma bula medicamentosa, encontramos entre as "Reações adversas":
Efeitos psíquicos:
Freqüentes: sonolência, fadiga, sensação de inquietação, confusão, delírios, desorientação, alucinações... estados de ansiedade, agitação, distúrbios do sono, oscilação de depressão a hipomania ou a mania.
Rara: ativação de sintomas psicóticos.
Casos isolados: agressividade.10
Mesmo em bula de quase dez anos antes (de 1987) do mesmo antidepressivo, encontramos, entre as diversas possíveis "Reações adversas", alusão a arritmias cardíacas, insônia, estados confusionais transitórios, elevação de ansiedade. E também:
Em casos raros, foram relatados distúrbios da função hepática, hiperpirexia, tinido, aumento das glândulas mamárias, galactorréia, perda de cabelos e convulsões.11
E é grande a listagem de outras possíveis reações adversas em vários setores do organismo, além do psiquismo. Como poderá uma pessoa se queixar do uso de uma droga como essa em si, no caso de ser vítima de alguma dessas tantas e tantas reações possíveis e previstas? E mesmo numa eventual falta dessas advertências, como poderia alguém acreditar, verdadeiramente, que medicamentos com o suposto poder de "extirpar" uma depressão ou uma melancolia, não tenham também um potencial de acarretar grandes riscos para o organismo humano - incluindo aqui o seu psiquismo?
Creio que este seja o ponto mais importante dessa discussão: a aparentemente tola suposição de que a Ciência possa contornar eficazmente as questões do psiquismo deve fazer parte não de uma mera ignorância de efeitos colaterais ou de mecanismos de ação de drogas. Essa noção deve se prender, isso sim, a algo que podemos considerar como uma espécie de solene desprezo pelas próprias e íntimas moções pulsionais: um sintoma como qualquer outro, racionalizado nos termos dos créditos científicos do momento. Ironicamente, a melhora do quadro depressivo ou melancólico - inclusive pela ação dos medicamentos antidepressivos - deve possibilitar uma mais sensível autopercepção de alguns desses mecanismos psíquicos inconscientes.
Em outras palavras, quando na ausência de um estreitíssimo controle médico e na de um acompanhamento psicoterápico ou psicanalítico, a aceitação sem quaisquer reservas do uso terapêutico de um medicamento antidepressivo deve passar pelas vias inconscientes da própria autodestrutividade do sujeito em Melancolia (ou do paciente em Depressão).
Emil Kraepelin, muito antes das mudanças patoplásticas acarretadas nos pacientes pelos tratamentos antidepressivos (inclusive pelo emprego dos psicofármacos antidepressivos), nos dá um testemunho das enormes variações - digamos naturais - dos períodos maníaco ou depressivo da Psicose Maníaco-Depressiva (numa edição sem data mas com prefácio de 1907):
A duração do acesso simples é muito variável. Alguns duram somente 8-14 dias; pode-se por vezes observar que nestes doentes o humor triste ou a excitação... podem durar somente um ou dois dias. Geralmente um ataque simples costuma durar 6-8 meses. Por outro lado, não são raros os casos em que o acesso simples dure 2, 3 ou 4 anos e em que um acesso duplo persista por um tempo duplo; vi uma mania que se curou depois de 7 anos e uma outra depois de mais de 10. (...)12
Que pressões pulsionais desmesuradas serão mobilizadas pelo sujeito, a partir das modificações introduzidas em seu corpo pelos antidepressivos, para que esses períodos (os "acessos" de Kraepelin) sejam hoje, com freqüência, abreviados para menos de dois meses?
É possível que as tantas dúvidas e desconfianças que ora escutamos com referência explícita ao Prozac encerrem, mais verdadeiramente, as suspeitas íntimas das pessoas em geral de que algo do psiquismo deve ser levado de roldão - quando da melhora clínica obtida unicamente às custas de qualquer medicamento Antidepressivo; em especial, como na grande maioria das vezes, com um acompanhamento psiquiátrico restrito a preocupação com suicídio, avaliação geral do desempenho profissional e indagações rápidas sobre o estado de humor. Estas, incluindo perguntas geralmente quantitativas sobre o apetite, o sono e o desempenho profissional - muitas vezes não havendo motivação nem tempo hábil de consulta para mais que isso.
As populações devem estar começando a suspeitar (talvez eu devesse dizer intuir), intimamente, dos mesmos fatores que venho pesquisando com relação a essa classe de psicofármacos: que os antidepressivos talvez não "extirpem" a Melancolia ou a Depressão, já que elas não são como tumores ou cistos; mas as pessoas não poderão imaginar que o sujeito passe a dispor de novas pressões libidinais, de alguma forma colocadas (ou recolocadas) a seu acesso, através da enorme mobilização orgânica posta em marcha pela droga. (Um meu estudo mais aprofundado, com um Caso Clínico com o uso de Imipramina, deverá ser publicado brevemente na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo).
Mesmo exposto dessa forma assim superficial, esse pensamento pode nos conduzir a que devam passar a existir (a partir desses efeitos ligados à ação do Antidepressivo) algumas mudanças na intensidade das forças relativas ao objeto odiado e introjetado no Ego, uma vez assim alterada a economia libidinal - como reação psíquica que reflita as múltiplas e poderosas reações somáticas causadas pela droga. Uma dessas mudanças pode ser a de uma espécie de adiamento do triunfo maníaco (exteriormente mais lento e menos perceptível) do Ego sobre o objeto destroçado pela fúria sádica do sujeito. Em muitos pacientes que obtêm remissão completa do quadro depressivo ou melancólico através do tratamento com antidepressivos, não percebemos traços maníacos; muitas vezes, apenas curtos períodos hipomaníacos sem expressão clínica psiquiátrica.
Se isso realmente ocorre, é importante que retornemos à questão de alguns psicoterapeutas de pessoas aidéticas e àqueles tisiologistas, de que falei no início deste artigo: será então imperioso que aprendamos com alguns desses psicoterapeutas, precisamente aqueles que não vincularam seu atendimento à cura definitiva da AIDS pelos malabarismos científicos - mas que se mantiveram ao lado de seus pacientes, sabedores de que mesmo para fazer uso de um suposto medicamento salvador é preciso contar com alguém que acompanhe o doente na jornada de seu sofrimento. E com alguns outros tisiologistas da década de 50 que, imperceptivelmente, foram se transformando em clínicos gerais e que como tais continuaram atendendo seus pacientes tuberculosos - mesmo antes da Tuberculose Multi-resistente de nossos dias, antes das incompreensíveis reações negativas ao esquema tríplice e ao abandono do tratamento, eles já suspeitavam que seus doentes não poderiam sarar de todo um Calvário de repercussões da moléstia apenas pela ingestão de comprimidos. Mesmo de comprimidos que podem destruir o bacilo da tuberculose e que até, sem que se o supusesse, podiam também tornar estranhamente alegres alguns de seus mais graves pacientes...
Notas
1. Prozac Horror Stories - site http://www.defend-net.com/fearless_food/A Stories. html, Web Crawler.
2. Panacea or Pandora? site http://www.geocities.com//HotSprings/Spa/4199. Web Crawler.
3. The dark side of Prozac - site http://www. Defend-net.com/fearless_ food/Dark Side. html. Web Crawler.
4. Susan Sontag. Illness as Metaphor. New York, Vintage Books, 1979, p. 34.
* Professor titular de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e chefe da Coordenação Nacional de Pneumologia Sanitária do Ministério da Saúde.
5. Antônio Ruffino Netto. Entrevista, Jornal do Cremesp (Órgão Oficial do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), ano XVIII, no 137, janeiro/1999, p. 4.
6. Franz G. Alexander & Sheldon T. Selesnick. História da psiquiatria: uma avaliação do pensamento e da prática psiquiátrica desde os tempos primitivos até o presente, tradução de Aydano Arruda. São Paulo, IBRASA, 1968, p. 375.
7. Alan F. Schatzberg & Jonathan O. Cole. Manual de psicofarmacologia clínica, tradução de Rose Eliane Starosta. Porto Alegre, Artes Médicas, 1993, pp. 57-58.
8. Jair Salim. Noções de psicofarmacoterapia na prática. São Paulo, EPU/EDUC, 1987, p. 80.
9. Bula do medicamento TOFRANIL (Cloridrato de Imipramina), laboratório CIBA-GEIGY S. A., 1996, p. 1.
10. Idem, p. 7.
11. Bula do medicamento TOFRANIL (Cloridrato de Imipramina), laboratório CIBA-GEIGY S. A., 1987, p. 5.
12. Emil Kraepelin. Trattato di Psichiatria, V. II, tradução de Guido Guidi, Milão, Dottor Francesco Vallardi, sem data, p. 461. (Grifos meus)
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