De mães e de filhos *

Regina Orth de Aragão

Resumo
Texto que discute, a partir de elementos da clínica psicanalítica com crianças, e da análise de pacientes grávidas, alguns aspectos da função materna, no que se refere a seus efeitos sobre a constituição do psiquismo do bebê.
Palavras-Chave : função materna, constituição do psiquismo, psicanálise infantil, bebê.

Resumen
Texto que discute, a partir de elementos de la clínica psicoanalítica infantil y del análisis de pacientes embarazadas, algunos aspectos de la función materna, en lo que se refiere a sus efectos sobre la constitución del psiquismo del bebé.

Palavras Clave
función materna, constitución del psiquismo, psicoanálisis de niños, bebé.

Resumé
Le texte discute, à partir des données de la clinique psychanalytique avec des enfants, d'un côté, et de l'analyse de femmes enceintes, de l'autre, certains des aspects de la fonction maternelle, en ce qui concerne ses effets sur la constitution du psychisme du bebé.
Mots-Clefs
fonction maternelle, constitution du psychisme, psychanalyse d'enfants, bebé.

"O fato é que, depois que virei mãe, luto infernalmente para não ceder às tentações de tornar-me uma chantagista. É que de mãe para chantagista é um passo de bebê. Aliás, a maternidade aflora diversos aspectos perigosos no caráter feminino, do horror aos ventos à paixão por doces. ...O domínio só não está nas mãos da gente porque somos uma loucas. Uma loucas com poder - olha que susto! Eu tenho a força! Perigo, perigo! ....O mundo poderia até se tornar melhor caso essa tendência meio mesquinha meio psicótica das mães fosse controlada. Mas sabe, Jacques, é difícil. Ter filho dá um treco na cabeça das mulheres, que elas ficam doidonas de vez. Um tipo de barato permanente, em ressaca permanente, que é um coquetel de sensação heróica, estado de graça, culpa, raiva e um amor desembestado."
Fernanda Young, in "Caro Jacques, "
Jornal do Brasil, 31/julho/2001


*Esse texto faz parte de um projeto de pesquisa sendo desenvolvido no Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-S.P., a respeito da função materna e de seus efeitos sobre a constituição do psiquismo do bebê.

A partir de uma interrogação primeira ligada ao início de minha prática clínica- que se deu com crianças pequenas e com mães e bebês - a respeito da constituição do psiquismo, minhas questões se desdobraram em torno da infinita e intrigante variedade desses modos de constituição, produto dessa alquimia misteriosa e fascinante que se dá entre pais e bebês.(Cramer, 1989). Para aproximar esse tema tão vasto da constituição do psiquismo, busquei uma forma de circunscreve-lo, orientando-me por dois eixos, de um lado o bebê, de outro a mãe, contrariando de certo modo o pensamento de Winnicott, para quem não existe um bebê por si só. Do lado do bebê, parece sempre intrigante constatar que crianças em situações de vida aparentemente muito semelhantes, reajam e se constituam de modo tão diverso. O que faz, por exemplo, com que alguns bebês sejam mais vulneráveis às experiências de separação do que outros?

A clínica com a criança, se não nos traz respostas, nos ajuda a melhor formular as questões, e será então seguindo essa trilha que procurarei clarear os pontos que me inquietam. O que vai levar rapidamente de volta ao estudo do "entorno" da criança (Figueiredo, 2000), e às interrogações sobre a função materna. Desse ponto de vista, a escuta de mulheres às voltas com a maternidade, seja ela efetiva, seja ela um desejo, produz vários focos de interrogação. Só para destacar aqui um primeiro, penso na angústia de algumas mulheres diante da perspectiva de se tornarem mães: é como se se sentissem diante de um abismo, como se o excesso de responsabilidade produzisse efeitos de pânico. Ou então seria o excesso de poder sobre o outro, do qual elas se percebem dotadas, que produziria esse efeito de vertigem? Por vezes, essa atribuição de poder é projetada sobre a criança, fantasiada como exigente, possessiva, dominadora. A frase "nunca mais poderei estar só", dita por uma paciente no início de sua gravidez, parece expressar esse temor de uma intrusão definitiva e permanente desse outro, o bebê, no campo subjetivo da mãe.

No que diz respeito ao trabalho analítico com a criança, vou me servir aqui de breves referências clínicas, que se encontram mais detalhadas em outro contexto. Para os psicanalistas trabalhando com crianças, é relativamente freqüente a demanda de tratamento formulada por pais, diante de dificuldades escolares de seus filhos. Quando então, escutando os pais, tentamos retraçar a história inicial da criança, somos em geral confrontados com acontecimentos e aspectos muito marcantes dessa história dos primeiros anos. No caso a que me refiro, trata-se de um menino de 10 anos de idade, alfabetizado só muito recentemente, mas que, na avaliação conduzida por uma psicopedagoga, saiu-se surpreendentemente bem nos testes e tarefas propostas, sendo assim considerado por ela "muito inteligente, mas incapacitado para se servir de seu potencial". Daí o encaminhamento para a análise, com a observação particular de que ele não consegue contar histórias, não consegue inventar nem criar fantasias. De sua história inicial, é notável o fato de sua gestação ter passado desapercebida pela mãe até o quarto mês, num período em que o investimento prioritário dela era seu trabalho intelectual. Além disso, a gravidez foi marcada por vários fatores considerados de risco, e no pós-parto uma perda familiar mergulhou a mãe num estado depressivo prolongado. Como outro fator marcante desse período inicial de sua vida, Carlos esteve separado de sua mãe durante vários meses, durante seu primeiro ano de vida.

É assim que Carlos chega em suas primeiras sessões, simpático, afável, mas com um ar "pedinte", como mendigando algo, esperando algo de mim, com um olhar que se prega ao meu, esperando... o quê? Conseguiu, recentemente, alfabetizar-se, mas não pode contar histórias. Por vezes, em sua fala, parece desorientado no tempo, perdido em suas referências de lugar, de cidade, de país. Em suas primeiras sessões, aplica-se a construir e reconstruir um veículo, oscilando entre cria-lo ao modo dele, ou copiar de um modelo já pronto. Depois, ele desenha - com lentidão, cuidado e inúmeras correções - a figura de um menino, numa composição detalhada, caprichada, a calça que veste termina com um corte bem feito da barra, mas abaixo dela... faltam os pés! A falta dos pés no desenho faz logo pensar numa representação evocando a castração, mas parece-me que aqui é preciso pensar além, ou aquém disso. Olhando a figura, é como se houvesse um grande esforço para se construir, para se constituir, que, no entanto esbarra numa falta fundamental, na falta de uma parte de si que lhe permita "andar por suas próprias pernas", que o impede de mover-se pelo espaço do mundo, que o impede de criar, inventar suas histórias. Como ressalta a pedagoga, ele não consegue se servir de sua inteligência para pensar por si. Mas lembro-me que, laboriosamente, e com minha ajuda próxima, construiu seu veículo, que tinha sua marca pessoal, mesmo que depois tenha se tornado de novo somente uma cópia. Como continuaremos, na análise, nessa hesitação entre correr o risco de criar, e refugiar-se de volta na cópia reasseguradora?

De que ordem é esse poder materno imenso? Carlos, tinha o pai, os irmãos, a babá, a casa. Mas não tinha a mãe. Aliás, ela mesma não o teve, no inicio de sua vida fetal, pois nem sequer o suspeitava dentro dela. É como se não houvesse espaço psíquico na mãe para se perceber grávida. Podemos pensar então numa gravidez propriamente acidental, mesmo levando em conta que do ponto de vista do desejo inconsciente nenhuma gravidez possa ser pensada como acidental. Nesse caso, ela aconteceu à revelia da mãe. E depois da gravidez sabida, essa mulher foi tomada por situações que parecem ter impedido o investimento desse bebê: riscos de má-formação do feto, angústia em relação à sua produção intelectual, morte de familiar próximo , compondo um conjunto de fatores que vêm marcar sua posição materna.

Coloca-se aqui a necessidade imperiosa, vivida a cada vez na clínica, de pensar sobre o caso, de articular o que vivemos na sessão com o que pensamos, com o que sabemos para além daqueles momentos. Começo então a conhecer Carlos, e as impressões que ele me causou, seu falar desabitado de si, seu olhar pedinte e interrogativo, como se procurasse no outro a significação dele mesmo, me impulsionam a buscar os caminhos teóricos que me ajudem a pensar sobre ele. Preciso desses aportes porque me servem para situar-me na transferência, no campo próprio do trabalho analítico. A interrogação que move a clínica parece-me ser a de perguntar-se em que lugar podemos nos colocar para possibilitar ao outro descentrar-se da posição de sofrimento na qual está situado, para desfazer e refazer algo de seu funcionamento psíquico. Por onde eu mesma preciso andar para servir a Carlos como suporte que possibilite a ele operar uma mudança, pequena que seja , em sua posição subjetiva?

E para além desse caso clínico, penso que podemos encontrar aqui algumas das interrogações fundamentais em relação aos determinantes da constituição do psiquismo. Como se processou , de que modo a "constituição edípica de partida" (Bleichmar, 1983), dos pais, foi decisiva para a "constituição edípica de chegada", para a maneira particular com a qual Carlos se organizou, para a "escolha" de suas falhas, de seu sintoma. Por quais vias isso se dá? Em que memórias precoces se inscrevem as primeiras experiências? Por que, nele, a falha apresenta-se no criar, no inventar, no fantasiar? Por que Carlos não pode "servir-se" de sua inteligência, que no entanto manifesta-se quando responde às questões dos testes e das avaliações com a psicopedagoga? O que houve que o impede de tomar posse de sua própria história, de suas fantasias, para poder contar suas próprias estórias?

Podemos tomar diferentes pontos de partida para pensar sobre seu sintoma . Podemos considerar, de um certo ângulo, o impacto da separação precoce mãe-bebê, que se deu em momento extremamente sensível em relação à constituição do psiquismo. De outro ponto de vista, podemos considerar as complicações do desejo materno, evidente pela ignorância da gravidez, e em seguida pela dificuldade de investimento libidinal nessa criança. Podemos também lembrar dos efeitos da depressão materna. . Cada um desses pontos de partida, e haveria outros ainda, nos conduziria a uma corrente teórica no campo da psicanálise, em função da forma como se compreende a constituição do psiquismo, em função da matriz clínica (Mezan,1988) que tomamos como ponto de partida . Para evocar algumas dessas construções teóricas sobre a relação inicial mãe-bebê, e seu impacto sobre a constituição do aparelho psíquico, lembramo-nos em primeiro lugar de Winnicott, cujo tema principal de interesse foi justamente esse, e que afirma sempre de modo categórico o papel fundamental do "ambiente materno" para a determinação do psiquismo que se constitui, ou em suas palavras, para os processos de integração necessários para que se dê o desenvolvimento emocional. Lacan, por seu lado, aponta para o papel da mãe, como encarnação do Outro, como aquela que veicula num primeiro tempo, junto ao bebê, a lei simbólica da cultura, e que lhe fornece o primeiro espelho, através do qual ele ao mesmo tempo se aliena e se constitui. Laplanche enfatiza o papel iniciático da mãe, responsável pela "sedução generalizada" necessária, desenvolvimento do pensamento freudiano, explicitado nos "Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade", onde Freud afirma que é função da mãe "despertar o instinto sexual da criança e ensina-la a amar". A mãe, então é aquela que introduz o bebê no campo pulsional, instilando Eros em sua constituição. Essa idéia parece pressupor um bebê passivo do ponto de vista da formação do aparelho psíquico,que vai se constituir como que inoculado pelo outro.Seria o aparelho psíquico uma organização que vai se constituir como instância defensiva diante do ataque pulsional ? (Ribeiro, 2000) . Dolto, por sua vez, refere-se ao papel fundamental da mãe como responsável por fazer operar as "castrações simbolígenas", que vão, passo a passo, estabelecendo os marcos e fazendo surgir novas estruturações no psiquismo infantil. (Dolto, 1984) Melanie Klein, de outro modo, referiu-se à mãe como sendo ela o objeto pulsional do bebê; o enfoque aqui é distinto, já que é a mãe quem ocupa a posição de alvo das projeções infantis, de amor ou de ódio, e não é ela mesma caracterizada como tendo um papel determinante no que diz respeito à constituição do aparelho psíquico da criança, pressuposto como estabelecido à priori.

Vamos nos servir aqui de Winnicott, quando descreve o que está em jogo no desenvolvimento emocional primitivo. Para ele, esse desenvolvimento abrange três tarefas principais: "a integração do eu, a psique que habita o corpo e a relação objetal. Numa correspondência aproximada a estes três itens, temos as três funções da mãe: segurar (holding), manipular (handling) e apresentar o objeto."(Winnicott, 1999). O próprio termo "holding", em inglês, como também em português, tem um significado abrangente, incluindo a idéia de tornar seguro, de firmar, de amparar, de impedir que caia, de garantir, de apoiar. Assim, à medida que o bebê cresce, o significado primeiro do segurar fisicamente o corpo do bebê, amplia-se cada vez mais, até englobar a função de todo o grupo familiar, em sua designação de entorno da criança. "Segurar e manipular bem uma criança facilita os processos de maturação, e segurá-la mal significa uma incessante interrupção desses processos, devido às reações do bebê às quebras de adaptação" (idem). Winnicott afirma que as bases da relação objetal instauram-se na primeira infância, e dependem da maneira como a mãe apresenta ao bebê o seio, a mamadeira, ou qualquer outro objeto. Nessa apresentação do objeto, ela o faz de tal modo que permite ao bebê criar o que já se encontrava ali, e na verdade, o que o bebê cria é parte da mãe que foi encontrada. Trata-se de um dos paradoxos fundamentais da concepção winnicottiana de inscrição do bebê no mundo, que só é possível porque a mãe encontra-se naquele estado especial que lhe dá a condição de estar presente mais ou menos no momento e no lugar certos. "Isso se chama adaptação às necessidades, que permite ao bebê descobrir o mundo de forma criativa". (ibidem). Se são essas as condições que permitem à criança situar-se no mundo de forma criativa, podemos pensar que certamente para Carlos essas condições foram falhas, especialmente no que diz respeito à apresentação do objeto, que permite à criança fazer uso de sua criatividade, a partir da ilusão renovada de ter sido o inventor do objeto que encontra. E Carlos não parece ter podido se apossar de seus objetos com a ilusão de tê-los inventado, de modo que hoje não se apossa de suas próprias histórias.

Mas para que essas condições se dêem, Winnicott pressupõe que a mãe se encontre num estado especial, nomeado por ele de "preocupação materna primária". Para alcançar tal estado, a mãe, ao longo da gravidez, prepara-se para a chegada do bebê, através de um processo de "adoecimento progressivo", que paradoxalmente só pode ocorrer se a mãe for saudável. A palavra "doença" é utilizada por Winnicott porque julga que "é necessário que a mulher seja saudável tanto para desenvolver este estado quanto para se recuperar dele quando o bebê a libera". Esse estado se desenvolve à medida que aumenta sua capacidade crescente, ao longo dos nove meses de gravidez, de identificar-se com seu bebê, provavelmente a partir das inscrições primeiras de sua própria experiência infantil, com sua mãe. Winnicott considera que existem mulheres que são "capazes de manter uma vida rica e proveitosa, mas que não conseguem atingir esta "doença normal" que as capacitaria a se adaptar delicada e sensivelmente às necessidades iniciais do bebê. Estas mulheres não são capazes de se preocupar com seu próprio bebê, a ponto de excluir outros interesses, da maneira que é normal e temporária. Pode-se supor a existência de uma "fuga para a sanidade" em algumas dessas pessoas. Quando uma mulher tem uma forte identificação masculina, é-lhe extremamente difícil atingir esta parte de sua função materna e uma inveja do pênis reprimida deixa pouco espaço para a preocupação materna primária". (Winnicott, 1969).

Vamos então de volta às nossas interrogações sobre Carlos , agora olhando para o que se passou do ângulo da função materna, vista aqui sob o ponto de vista do desenvolvimento da preocupação materna primária. Em primeiro lugar, Winnicott afirma a necessidade do tempo da gravidez para que a mãe desenvolva progressivamente sua capacidade de identificação ao seu bebê. No caso da gravidez de Carlos , ela já começa amputada de uma parte, pois seus primeiros meses foram perdidos pelo desconhecimento materno. O tempo da gestação é um tempo de elaboração necessário para a construção do bebê no imaginário da mãe. O bebê apresenta-se para a mãe como um estrangeiro, constituindo um enigma que ela não conhece, sujeito às múltiplas projeções derivadas de suas próprias experiências infantis, com seus próprios pais. Cramer ( 1999) avança a hipótese de que as mudanças durante a gestação possam corresponder à experiência, pela mãe de se perceber "habitada" por um de seus pais, ou por um aspecto deles. Tal experiência pode ser bem-vinda, ou assustadora. De certo modo, tornar-se mãe é reencontrar sua própria mãe. E ainda, para os pais, a gestação é um tempo necessário para aceitar essa nova situação que envolve ligar-se, para o resto da vida, com um desconhecido, fonte de angústia, como o vazio. Trata-se então de realizar o trabalho de transformar o estrangeiro em familiar, atribuindo-lhe características, por meio dos efeitos de projeção e de idealização, que estarão ancoradas na própria história edípica dos pais.

Vou propor aqui que tomemos um desvio para olhar para essas questões do ponto de vista da mãe.

Através dos sonhos de pacientes grávidas, e de suas associações durante o processo analítico, é possível acompanhar esse delicado e imprevisível trabalho imaginário que se dá durante os meses da gestação. Se no começo, por exemplo, a experiência de uma mulher pode ser a de se perceber ao serviço desse ser estrangeiro, ainda que desejado, que se encontra como um invasor no interior de seu corpo, no final da gestação, através de sutis remanejamentos, pode aparecer a possibilidade de organizar para ele um espaço dentro de si, e em sua vida. Mas para isso, um longo percurso, marcado pela ambivalência, deve muitas vezes ser trilhado durante esses meses, percurso imaginário tendo como eixo a história edípica da gestante, retomada, quando em análise, em sua relação transferencial. A produção associativa pode assim revelar o radical remanejamento psíquico que se dá na mulher durante o tempo de espera do filho.

Há dois momentos marcantes durante a gravidez , que muitas vezes situam-se como pontos de inflexão na subjetividade materna em relação ao bebê esperado. Um deles é o que se desencadeia a partir da percepção pela mãe dos movimentos do bebê , em relação à fantasia do estrangeiro, do desconhecido dentro de si. Os movimentos do bebê permitem-lhe criar significações sobre ele, ela passa a interpretar seus movimentos, estabelece-se assim um modo de comunicação entre os dois. Outro ponto de inflexão se marca em torno da informação sobre o sexo do bebê, a partir dos exames ecográficos. Carregar um bebê já sexuado ao mesmo tempo em que fecha as possibilidades do jogo imaginário em torno do sexo, orienta mais nitidamente as fantasias maternas em torno do filho ou da filha.

Gostaria também de ressaltar novamente a importância do tempo, da previsão da duração da gravidez, internalizada pela mãe, e que vai marcando para ela o processo de crescimento do bebê dentro de si. É como se esse tempo durante o qual o desenvolvimento do feto se dá, favorecesse, concomitantemente, a criação do bebê imaginário no psiquismo materno . Catherine Mathelin considera " esse tempo de elaboração indispensável, pois, permite à criança 'tomar corpo' não só no ventre da mãe, mas também em seu fantasma". Os últimos meses da gravidez, especialmente, são momentos importantes não só "para a construção da criança, mas também para a construção da mãe" (Mathelin, 1999).

O acompanhamento de mulheres grávidas em análise leva a supor que o processo vivido pela mãe produz remanejamentos de tal ordem que chegam a caracterizar uma "revolução" psíquica. Nesse sentido, é como se o estado gestacional favorecesse uma maior permeabilidade intra-psíquica, com a emergência de conteúdos até então eficientemente recalcados, mesmo nas mulheres que já estavam em processo de análise antes de engravidarem. Isso nos remete à proposição de Freud sobre a sexualidade feminina, em que ele supõe que o Édipo da menina só encontrará, na melhor das hipóteses, uma resolução quando da maternidade, de preferência de um filho homem, pois somente assim a mulher se consolaria de seu estado de castração. Em sua conferência na Sociedade Psicanalítica de Viena, em 1911, "Sobre as bases do amor materno", Margarete Hilferding avança uma idéia desde então esquecida nos estudos psicanalíticos sobre a maternidade, qual seja a de considerar o feto como um objeto sexual da mãe. Em seu comentário, Teresa Pinheiro enfatiza a novidade que isso produz, levando em conta que nos acostumamos a pensar a experiência da gravidez do ângulo do narcisismo materno, e que é desse ponto de vista que se costuma compreender a experiência de plenitude da mãe. Pensar o amor materno via sexualidade da grávida na sua relação corporal com o feto é algo muito diferente. No entanto, o que vemos por vezes , talvez pelo viés da relação com esse outro em seu próprio corpo, é a relação da mãe com sua própria sexualidade, com sua própria identidade sexuada. A gravidez parece definir um período extremamente fértil (com perdão da analogia) para a produção imaginária, permitindo a retomada de posições infantis, edípicas, em relação às imagos parentais, com ênfase particular nas questões da sexuação. Carregar um filho em si, tê-lo feito, parece vir confirmar por um instante o fantasma de ter em si os dois sexos, mais além do que resolver a castração pensada em termos de inveja do pênis. Tornar-se fálica - provavelmente como a própria mãe foi suposta - significa poder ser ao mesmo tempo masculino e feminino. .

Mas será que as questões da gravidez e da maternidade esgotam-se na temática da sexualidade? Freud, comentando a conferência de Margarete Hilferding, afirma:"pode-se dizer de saída que toda tentativa de analisar o fenômeno sob um único aspecto está fadada ao fracasso; a sobredeterminação é especialmente evidente neste caso."(Hilferding, Pinheiro, Besserman Vianna, 1991). Assim, haveria pelo menos mais dois outros aspectos a considerar. O primeiro diz respeito à ambivalência fundamental no laço mãe-filho, que podemos compreender hoje pelo viés da expressão da pulsão de morte, presente em cada relação, mas que Freud, na época, atribuiu às moções hostis inerentes aos laços de amor, correspondendo ao sentimento " agora sou seu escravo". Só anos depois Freud virá a desenvolver em sua obra a idéia da destrutividade em si, culminando no texto "Mal-estar na civilização". Outro viés já mais trilhado para pensar a maternidade passa pelo estudo do narcisismo, ao qual se chega pela própria questão da castração. Talvez possamos pensar sobre uma modificação que se processa na mulher, levando em conta que seu próprio ser passa a englobar um outro. Diria que na dinâmica ambivalente que se processa entre mãe e bebê, parece haver uma oscilação entre um "narcisismo englobante", correspondente à experiência de plenitude - em que a mulher se vive completa com seu bebê no ventre - de modo que o bebê está incluído em seu próprio narcisismo. E em contraponto, pensaria num "narcisismo excludente", quando ela se percebe invadida por um outro, estrangeiro dentro de si, de quem ela irá se livrar, no parto.O jogo entre a inclusão e a exclusão do filho, no espaço psíquico da mãe, poderá ser um dos eixos de determinação do investimento dessa criança, e do modo como se processarão as passagens dos conteúdos maternos para o psiquismo incipiente do bebê.

Voltamos assim à nossa primeira interrogação, de como se dá a inscrição do materno no "infans", como se introduz o "afeto" no psiquismo infantil, como se transforma o nada em pulsão. Bollas considera que a experiência inicial que o bebê tem de sua mãe não é uma relação objetal, mas se passa como a experiência de um processo. " ...no início da vida, ela é experimentada menos como um objeto do que como um processo que transforma positiva ou negativamente a vida física, emocional e intelectual do bebê....Além disso, o efeito informativo do inconsciente materno sobre a vida psíquica do bebê é profundo". (Bollas, 2000). Apoiando-se nas concepções de Lichtenstein, que argumentou que a mãe "imprime" um "tema de identidade" no bebê, e de Laplanche, quando referiu-se ao "significante enigmático" que ela representa para o bebê, presentificado na estrutura inconsciente dele, até pelo fato da assimetria fundamental entre o psiquismo materno e o psiquismo infantil, Bollas propõe que esse processo de transmissão mãe-bebê opera-se principalmente por meio da identificação projetiva. Ele pensa que é possível "relacionar a teoria kleiniana de identificação projetiva com a teoria freudiana de representação de coisa, já que o que Freud entende por isto resulta, em parte, da identificação projetiva materna. Como tal, o inconsciente infantil é povoado pelo inconsciente materno por meio de constantes atos de identificação projetiva, o que não é apenas normal, mas essencial com relação ao trabalho de insuflar vida no bebê. Podemos assumir que, se as projeções da mãe despertam desenvolvimentos nascentes do idioma do bebê, então, o inconsciente dela elabora criativamente o self de seu filho". (idem)

Assim, Bollas toma o conceito de "representação de coisa", para fazer o vínculo com o inconsciente materno. Essa primeira organização do inconsciente seria resultante de uma série de impressões, como imagens visuais, cinestésicas ou sonoras, antes da utilização da linguagem. Podemos pensar nos traços mnêmicos, "representados pela rede de facilitações, ou seja , por uma topografia que começa a ser desenhada a partir das primeiras experiências com a pessoa que cuida da criança" (Rudge, Pulsional, nº126). Nesse artigo, intitulado o "Infantil na Metapsicologia", Ana Maria Rudge retraça desde o Projeto para uma Psicologia Científica, passando pela Carta 52 a Fliess, os passos de Freud na conceitualização da memória, e dos registros das primeiras experiências como estruturantes do psiquismo. Ela propõe, a partir de sua leitura do texto freudiano, que o "papel dos traços mnêmicos das primeiras experiências, que se furtam à possibilidade de rememoração, é o de condição estruturante do desejo". Eles inscrevem-se no psiquismo como marcas, modeladas pela repetição e pela magnitude das experiências primeiras, e que irão doravante determinar caminhos preferenciais abertos no psiquismo. No entanto, por resultarem de impressões que se deram quando o psiquismo ainda não estava estruturado, e provavelmente também porque sucumbiram à amnésia infantil, os traços mnêmicos não são passíveis de rememoração. Temos assim uma condição paradoxal, pois são justamente essas impressões às quais não podemos ter acesso que têm um caráter compulsório. Freud dirá que "nos primeiros três ou quatro anos de vida algumas impressões são fixadas, e modos de reagir ao mundo externo são estabelecidos, que nunca poderão ser privados de sua importância por experiências posteriores". (Freud, 1939). Podemos lembrar aqui de um caso clássico da psiquiatria infantil, em que foi possível acompanhar por 30 anos a evolução de uma criança nascida com uma atresia do esôfago, anomalia que impedia a passagem do alimento da boca para o estômago, e que obrigou o bebê a ser alimentado por sonda, em posição deitada e sem contato corporal com a mãe ou com quem cuidava dela, durante os primeiros meses. Filmada mais tarde, aos 4 anos de idade, vê-se essa menina brincando com sua boneca, que ela alimenta da mesma forma como foi alimentada quando bebê. Mais espantoso ainda, é assim que ela alimentará seus três filhos, dando-lhes a mamadeira deitados diante dela, sem contato corporal com ela. E por fim, sua filha brinca com sua boneca da mesma forma. Temos aqui um testemunho inegável dessa inscrição precoce e indelével das primeiras experiências infantis, para aquém de qualquer simbolização no plano da linguagem. (Cramer, 1999).

Podemos esperar que as construções vividas na relação transferencial possam produzir algum efeito a posteriori sobre essas inscrições primeiras, que em sua essência mesma são estruturantes e têm uma função constitutiva do aparelho psíquico?

Retomo aqui a questão colocada quando me referia ao caso clínico, a saber em que lugar, e por quais caminhos deve o analista andar para favorecer, minimamente que seja, um deslocamento do outro, em relação a seu próprio sintoma. E mais ainda, podemos esperar que a experiência transferencial seja de tal alcance a ponto de permitir um remanejamento desses circuitos iniciais, inalcançáveis pela lembrança?
Referencias de Leitura
Bleichmar, S. - Nas Origens do Sujeito Psíquico. Porto Alegre; Artes Médicas, 1983.
Bollas, C. - Hysteria. São Paulo; Escuta, 2000.
Cramer, B. - Profession Bébé. Paris; Calmann-Lévy, 1989
________ - Que deviendront nos bébés?. Paris; Ed. Odile Jacob, 1999
Dolto, F. - L'Image Inconsciente du Corps. Paris; Seuil, 1984
Figueiredo, L.C. - O caso-limite e as sabotagens do prazer, In. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, vol. III, nº 2, págs. 61 a 87, junho de 2000, São Paulo.
Freud, S. - (1905) Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In Ed. Standard Brasileira, Rio de Janeiro; Imago, 1976
Freud, S. (1939) Moisés e o Monoteísmo. In. ESB, Loc.cit. vol. XXIII
Hilferding, M., Pinheiro, T. e Besserman Vianna, H. - As Bases do Amor Materno. São Paulo; Escuta, 1991.
Mathelin, C. - O Sorriso da Gioconda - Rio de Janeiro; Companhia de Freud, 1999.
Mezan R. - Klein, Lacan: para além dos monólogos cruzados, In A Vingança da Esfinge; São Paulo, Ed. Brasiliense, 1988.
Ribeiro, P.C. - O Problema da Identificação em Freud. Recalcamento da Identificação Feminina Primária. São Paulo; Escuta, 2000.
Rudge, A.M. - O Infantil na Metapsicologia , In. Revista Pulsional, Ano XII, Nº126, Outubro 1999, São Paulo.
Winnicott, D.W. - De la Pédiatrie à la Psychanalyse. Paris; Payot, 1969.
_____________ - Os Bebês e suas Mães. São Paulo; Martins Fontes, 1999.