|
Falecimento de Jacques Derrida
Sérgio Telles
Como já é de conhecimento de todos, Jacques Derrida faleceu em Paris, no dia 09 de outubro de 2004, vitimado por um câncer de pâncreas. É uma grande perda para todos nós que estamos ligados aos Estados Gerais da Psicanálise, movimento que ele ajudou a implantar, juntamente com René Major e Elizabeth Roudinesco.
Jacques Derrida, um dos mais importantes filósofos de nossos tempos, tinha a psicanálise como um dos articuladores centrais em sua obra. Afirmava que a descoberta freudiana do inconsciente revolucionara de tal forma os temas filosóficos tradicionais a ponto de colocá-los em questão e lamentava o que via como uma "restauração" do pensamento filosófico que recalca as inquietantes questionamentos impostos pela psicanálise.
Como um exemplo disso, citava o conceito freudiano de "posterioridade" (Nachträglichkeit ou aprés-coup). Entendia que ele propunha um problema filosófico de magnitude nunca dantes vista, ao negar qualquer idéia metafísica de presença e tempo.
Derrida reconhecia a extraordinária importância de Lacan. Esse reconhecimento, entretanto, não o impediu de discordar de importantes pontos de sua teoria.
A crítica de Derrida foi crucial, pois, com precisão, apontou dificuldades na lógica interna do pensamento lacaniano.
A primeira delas, de 1965, apareceu em Sobre a Gramatologia, quando insistiu na importância da dimensão escrita da linguagem, denunciando o que chama 'rebaixamento da escrita' presente em todo o pensamento filosófico, que exalta desmesuradamente a dimensão falada da linguagem, a palavra "plena" ou a escrita fonética. Essa critica atingiu diretamente a forma como o estruturalismo lidava com a lingüística, contestação que incluía Lacan, na medida em que este centrava sua contribuição à psicanálise numa leitura "estrutural" de Saussure, que também privilegiava a linguagem falada, o "fonocentrismo". Como se não bastasse, Derrida criticou o primado do significante, dizendo "seria uma posição insustentável e absurda, a se formular ilogicamente na própria lógica que ela pretende destruir, sem dúvida legitimamente. O significante jamais precederá de direito o significado, sem o qual já não seria significante, e o 'significante' significante não mais teria nenhum significado possível. O pensamento que se anuncia nessa fórmula impossível, sem lograr instalar-se nela, deve, portanto, ser enunciado de outra maneira: sem dúvida só poderá fazê-lo suspeitando da própria idéia de signo, de 'signo de', que permanecerá sempre ligada justamente àquilo que se acha em questão".
Abandonando o referencial do significante para a compreensão do inconsciente, Derrida retomou a noção freudiana de "facilitação" (Bahnung), que deu origem a seu conceito de "diferança" (différance). Apoiando-se nos escritos freudianos do Projeto e em O Bloco Mágico, propôs um aparelho psíquico estruturado como uma máquina de escritura, produzindo sem parar uma escrita hieroglífica não verbal e não lingüística, como o pictograma e o rébus, como se vê na escrita pictórica do sonho.
Se a crítica anterior não era dirigida diretamente a Lacan, em 1971 Derrida mudou de tática. Numa conferência feita nos EUA (publicada em 1975 na França, com o título "Le facteur de la verité"), explicitamente se opôs ao "Seminário da Carta Roubada", importante texto de Lacan, que ali usou um conto de Poe (A Carta Roubada) para expor conceitos centrais de sua teoria, como a primazia do significante, a importância do falo e do traço unário.
Derrida meticulosamente desconstruiu o texto lacaniano, mostrando inicialmente que Lacan serviu-se da literatura para expor sua teoria, ou seja, impôs um elemento exterior ao texto literário. Com isso, praticou a famigerada "análise aplicada", ao mesmo tempo que a criticava. Mostrou ainda como o texto era um veículo de Lacan em sua luta política contra Marie Bonaparte, que ocupava importante lugar na instituição francesa e também autora de um texto sobre Poe. Afirmou que Lacan tentou desacreditá-la e desmoralizá-la, mas, na verdade, lera o trabalho dela e ali recolhera a idéia da carta como símbolo do falo materno. Disse que Lacan se colocava no papel de Dupin, o arguto detetive que desvenda o mistério, e colocava Marie Bonaparte como o comissário, aquele que se apossa indevidamente da carta real, sendo esta o representante do legado freudiano na França, o poder nas instituições psicanalíticas. Mais ainda, Derrida mostrou como Lacan fez um lapso ao citar errado a frase "um destino/desígnio tão funesto, se não é digno de Atreu, e digno de Tiestes".
René Major em seu livro Lacan com Derrida (Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002) - onde recolhi muitas das informações aqui contidas - procura salientar a mútua influência que existiu entre esses dois pensadores, pois as reflexões psicanalíticas de Derrida se apóiam decididamente no aporte lacaniano e Lacan incorporou em sua teoria as críticas de Derrida, que o fizeram mudar silenciosamente de rota. Apesar disso, cada um mantém suas especificidades, o que permite Major falar numa análise "desistencial", "derridiana".
No que diz respeito ao conhecido procedimento da "desconstrução" criado por Derrida, diz René Major que, longe de recalcar a herança freudiana, "a prolonga em uma necessidade hiper-analítica, colocando em jogo o desejo ou a fantasia de reunir-se ao originário, ao irredutível, ao indivisível".
Contando com o apoio de Elizabeth Roudinesco e de Jacques Derrida, René Major convocou, sob o nome "Estados Gerais da Psicanálise", uma grande assembléia em Paris, 2000, com o intuito de fazer uma avaliação do momento psicanalítico, das questões teórico-clínicas e instituicionais, além de uma reflexão sobre o papel da psicanálise na sociedade.
Naquela ocasião, Jacques Derrida fez importante pronunciamento político (Estados d'Alma da Psicanálise, Escuta, 2001) no qual convocava a psicanálise a retomar a tradição freudiana do interesse pela cultura e a participar das grandes questões que afligem o nosso tempo. Centrando sua argumentação no incontornável da pulsão de morte e seus avatares individuais e sociais, entre eles a soberania dos estados, Derrida afirma que, esgotado o discurso religioso, apenas a psicanálise pode oferecer caminhos para a abordagem da questão do mal entre os homens, sendo ela indispensável para avanços no campo da ética, da política, e do jurídico.
Todos nós, que amamos a psicanálise, a cultura e lutamos por um mundo menos dissociado, lamentamos a grande luz que se apaga com a morte de Jacques Derrida.
|
|