Fórum Social Mundial

25 a 30 de janeiro de 2001

O Sonho Acabou ?

Liliane Seide Fröemming

O Fórum Social Mundial aconteceu em Porto Alegre de 25 a 30 de janeiro de 2001. Quatro mil e quinhentos delegados, dezesseis mil participantes inscritos em oficinas, mil e setecentos jornalistas, pes-soas vindas de 122 países. Sensação de que o século estava começando com este marco e de que éramos personagens de um momento histórico.

Impossível apreender o que se passou. Havia conferências pela manhã e oficinas à tarde. Ocorriam paralelamente quatro conferências relativas a quatros eixos temáticos:

I. A produção da riqueza e a reprodução social
Como construir um sistema de bens e serviços para todos?
Que comércio internacional queremos?
Que sistema financeiro é necessário para assegurar a igualdade e o desenvolvimento?
Como garantir as múltiplas funções da terra?.

II. O acesso às riquezas e a sustentabilidade
Como traduzir o desenvolvimento científico em desenvolvimento humano?
Como garantir o caráter público dos bens comuns à humanidade, sua desmercantilização, assim como o controle social sobre o meio ambiente?.

III. A afirmação da sociedade civil e dos espaços públicos
Como fortalecer a capacidade de ação das sociedades civis e a construção do espaço público?
Como assegurar o direito à informação e a democratização dos meios de comunicação?
Quais os limites e possibilidades da cidadania planetária?
Como garantir as identidades culturais e proteger a criação artística da mercantilização?.

IV. Poder político e ética na nova sociedade
Quais são os fundamentos da democracia e de um novo poder?
Como democratizar o poder mundial?
Qual o futuro dos Estados-Nações?
Como mediar os conflitos e construir a paz?

Quatro conferencistas enunciavam questões e buscavam tecer considerações sobre os temas em cada uma das quatro salas. Mais do que afirmações, a enunciação dos eixos temáticos tinha a forma interrogativa. Penso que, apesar das consignas entoadas nas plenárias de abertura e de encerramento do Fórum conterem uma pontuação exclamativa, muitas perguntas novas e mesmo novas formulações para perguntas antigas surgiram.

As oficinas realizadas à tarde abrangiam uma pluralidade de temas e representaram um desafio organizativo. Eram propostas pelas entidades e movimentos sociais que aderiram ao Fórum. Estivemos presentes neste espaço levando para o debate algumas das questões que pautaram o Congresso da APPOA nomeado "O Valor Simbólico do Trabalho e o Sujeito Contemporâneo". Foi necessário encontrar uma sala maior do que a que nos fora inicialmente destinada, dado o afluxo de público. Também comvivemos com psicanalistas de outras latitudes na oficina "O Mal-estar na Globalização". Foi a experiência da conquista de um espaço diferente, compartilhado com instituições, movimentos que têm uma preocupação com a dimensão do social.

A ânsia por um mundo melhor não envelhece, ainda que não tenhamos reformulado muito a forma de exprimir tal anseio nos últimos 30 anos. Talvez sim, se pensarmos no refrão do Maio de 68, que não foi só francês. "Sejamos realistas, peçamos o impossível" é diferente de "Um outro mundo é possível". Até teria sido interessante fazer um levantamento entre os participantes presentes ao fórum que passaram da faixa dos 40 anos e verificar quantos tiveram uma participação ativa nos movimentos de 68. Algo se movimentou neste tempo. Certamente o movimento musical, nosso gosto não é mais o mesmo. Strawberry fields forever, os Beatles permanecem como uma unanimidade ultrapassando gerações.

Se um outro mundo é possível, devemos imaginá-lo, sonhá-lo. Outra consigna de 68 era "Da imaginação ao poder". Até que ponto a designação de uma filiação implica nostalgia da qual devamos nos envergonhar? Na década de 60 e 70 ideais que representavam perigo, que causava medo abraçar, em nome dos quais muitos foram presos, torturados, banidos ou desapareceram, hoje são nomeados como arcaicos, jurássicos, ridículos, antigos, nostálgicos. Há um deslocamento da tônica, do medo para a vergonha. Estas também são formas de operação do recalque. Se a obediência não se efetiva pelo medo, a força da coação pela vergonha tende a ser mais eficaz. A conhecida expressão "é feio..." tem sua função educativa.

Imaginar que jeito teria um outro mundo é um exercício interessante. A própria organização e funcionamento do Fórum fornece alguns elementos para inspirar esta reflexão. A queixa pelas falhas da organização parecia reclamar uma centralização, mas, pouco a pouco, as soluções eram encontradas. Troca de salas, de horários, discussões prosaicas sobre o ar condicionado ou janela aberta eram negociadas, discutidas e encaminhadas. Um novo mundo talvez tenha muitos elementos de auto-gestão, de improviso, de convívio de línguas diferentes. Talvez tenha algo do clima propiciado pelo convívio nestes cinco dias, entre pessoas de todas as latitudes deste planeta.

Eduardo Galeano e Luis Fernando Veríssimo foram os autores dos textos lidos na abertura e no encerramento do Fórum, dois dos momentos de caráter mais "assembleísticos", além da caminhada pelas ruas da cidade no primeiro dia.

Galeano faz justamente um exercício de imaginação, num texto de 1998, dizendo: "Já está nascendo o novo milênio. Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976 as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível: as pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor, os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas, na Argentina, as locas da Praça de Maio serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória, a comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação serão direitos humanos, seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo."(trechos escolhidos).

Cada um assistiu o evento desde um lugar determinado, seja na PUC ou outros locais, seja no palco ou na platéia, ou mesmo em telões colocados em diversos pontos da cidade, pela TV, pela imprensa. Cada qual tinha a seu lado diferentes personagens desta babel de pessoas e línguas. Provavelmente ninguém estará autorizado a proferir uma avaliação "globalizante" sobre o fórum. O lugar de enunciação traz a marca tanto de quem supomos ter ao nosso lado, o outro que nos dá a garantia de nossa palavra, quanto do lugar desde o qual nos situamos para falar. O comentário é derivado da leitura de algumas "pérolas" produzidas por alguns autorizados comentaristas do Fórum.

Porto Alegre não dorme, mas sonha. E a realidade do sonho de que um outro mundo é possível embalou e embalará os participantes deste evento sem precedentes.