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Sobre Derrida e a Crueldade: apontamentos
chaim samuel katz
Esta pequena apresentação gira em torno da obra de Derrida, mas é destinada aos que desejam conhecer seu escrito sobre a crueldade, apresentado nos Estados Gerais, em julho deste ano, em Paris. Logo, seu alcance é reduzido, não desenvolvo a questão da soberania e apenas indico alguma direção acerca da resistência. Contudo, talvez interesse a alguns.
Seu texto é muito denso, mas a dificuldade dele é que não se faz para ler no modo retilíneo, linear, ao qual nos habituamos. Pelo próprio modo de pensar, o escrito e a fala de Derrida não se estabelecem desde o que se presentifica ou se apresenta. Ao mesmo tempo, sua teorização não recusa o que está aí, não se recusa ao Dasein, mas insiste em que o que importa é pensar porque e como o que se apresenta e presentifica é, qual o seu estatuto e o que permite o Dasein, o estar-aí.
Se este é o modo de estabelecer do texto, do texto se expressar como objeto para sua adequação ao pensamento, implica também em que, para avaliá-lo, é necessário que se tenha uma compreensão mínima do que ele afirma. Não se trata de procurar o que é ausente no texto e o moveria como pensamento. Pois sua escrita, seu modo de escrita determinado desde o que Derrida chamou de escritura, recusa uma causalidade a-estruturante, uma Falta que estivesse no texto mesmo quando não se presentificasse. E com isto Derrida postula um pensamento que não tem sua Lei, sua forma organizatória fora do escrito, do tracejamento em que ele se expõe, no mesmo movimento em que afirma os negativos possíveis (desenvolvo isto adiante). Se existe algo que se poderia denominar de Lei do escrito, ele se dá e se organiza desde o próprio movimento do texto, a textualização é também e simultaneamente sua Lei.
É um texto escrito de modo a quebrar com o que a Semiologia chama de "leitura", porque na leitura se observaria alguma coisa, um "algo" que movimenta o texto, que se coloca como sua possibilidade de escrita. Ou seja, o papel da observação semiológica seria captar aquilo que é fundamental no escrito, dado desde o que estaria ausente do texto. Nas semiologias existe uma referência permanente a um centro, uma determinação única e unitária dada a partir da pressuposição de uma organização prévia e cuja Lei (de organizar) se trataria de evidenciar. Enquanto na obra de Derrida, trata-se de uma desconstrução, um movimento que se articula através de certos temas, de certos conceitos que vão se fazendo uns por relação aos outros, que se colocam uns diante dos outros como insistências diferenciais mas que só existem neste afirmação múltipla e simultânea.
É surpreendente ver no texto como a questão da crueldade passa pelo chamado dos Estados Gerais, na busca de estabelecer o que atravessa permanentemente a Psicanálise desde as postulações freudianas, o que se coloca como disposto através de nomes distintos, de significantes múltiplos, de posições diferenciadas -pulsão de apoderamento, pulsões de morte e de agressividade, pulsão de destruição, agressividade, necessidade de poder (Machtbedürfnis), mal estar, desamparo, a capacidade permanente e incisiva de disjunção pulsional, a impossibilidade do psiquismo recusar a crueldade da vida, a disrupção permanente nos indivíduos, a dissensão das instituições psicanalíticas, a expansão psíquica insistente e incessante- na medida em que toda a questão da crueldade se coloca como suposição necessária para a afirmação do inconsciente e da existência plena da Psicanálise.
Na verdade psicanalítica não haveria um ser subjacente, uma substância a ordenar o desdobramento de conceitos e categorias, mas a afirmação permanente de um dilaceramento. O estabelecimento de uma verdade que se estabelece no campo psicanalítico nas suas várias modalidades -desde o sofrimento enunciado pelos que procuram análise, a afirmação das dores semelhantes por parte dos psicanalistas que escutam tais demandas, às violências estabelecidas teoricamente, aos mal chamados nas interpretações clínicas variadas, a existência do sofrer e fazer o outro sofrer pelo sofrimento sem finalidade- a verdade se impõe psicanaliticamente, não como essência ou substância a se descobrir ou revelar, mas como um jogo que vai se fazendo, de onde o que se denomina Crueldade se mostra uma afirmação permanente.
Sem poder insistir mais, a Crueldade não se manifesta como signo, produto do encontro entre significante e significado, não se apresenta enquanto substância a ser conhecida ou re-conhecida, mas emerge enquanto jogo da vontade de poder, desde os traços diferenciais (conforme se verá adiante, de acordo com a teoria de Freud). Jogo não é um modo do ser, seu revelar-se e esconder-se. Mas, diferentemente, quando se joga, aí aparece o ser. Fazer tal jogo com a Crueldade, eis do que se trata, para fazê-la emergir no modo mais radical.
Crueldade que nem sempre se escreve com sangue, pois a Psicanálise se fez mais especialmente escutando e postulando as mais terríveis crueldades, crueldades morais e psíquicas, da destruição pela destruição, pelo ódio exacerbado, onde quase nunca se sangra.
E deve se indagar o que faz a Crueldade enquanto constitutiva do nosso campo. Derrida diz que, por relação à crueldade, só a Psicanálise pode abordá-la tal como se manifesta. Mas que tal postura supõe a Psicanálise sem álibi, para abordar a radicalidade do mal.
Assim, o signo que Derrida postula não é homogêneo, pois não tem origem única, desde a articulação entre significante e significado (daí o método de desconstrução). Nos traços diferenciais está o sentido e só no seu jogo é que se estabelece a verdade. Como aponto adiante, não se trata de um jogo qualquer, pois elabora concomitantemente as ordens da sensibilidade e inteligência. Por isto é que não é gratuito o título de seu texto, "Estados de alma da Psicanálise". Freud usava o significante "alma" (die Seele) para dizer (d)aquilo que se faz com os traços diferenciais das pulsões. Não se trata, ou ao menos não se trata sempre, da construção de um aparelho psíquico que desse conta das pulsões e de seu ordenamento possível, da articulação de seu processo (enquanto fonte, pressão, princípio de constância e finalidade), de sua organização enquanto conjunto de instâncias normativas (isto, eu, supereu), mas de uma virtualidade que emerge de modos diferenciados mas insistindo permanentemente nos humanos. Inexiste corpo sem alma, eis uma afirmação permanente da obra freudiana; trata-se de elaborar seus estados possíveis, . Em francês, o título da conferência de Derrida é: Etats d'âme de la psychanalyse". Zustand, em alemão, diz estado, condição, realização. Trago apenas uma pequena citação de Freud, onde aparecem os dois significantes principais que Derrida elabora, "alma" e "estado", para nos dizerem de seu modo de pensar.
"Damos agora por resolvida a relação da consciência com o psíquico: a consciência é apenas uma -além do mais inconstante- qualidade (propriedade) do psíquico. Ainda temos que lidar com uma objeção, que nos diz não é necessário abandonar a identidade da consciência com o psíquico. [Mas] os assim chamados processos inconscientes são justamente os processos orgânicos estatuídos paralelamente pelo anímico (zugestandenen organischen Parallelvorgänge des Seelischen)1". Isto é, o inconsciente enquanto um estado de alma, sem o que "não há uma teoria abrangente e articulatória da vida anímica" ("eine umfassende und zusammenhängliche Theorie des Seelischen Lebens"). Vida anímica que vai para além do psíquico, ainda que sendo psíquica; pois é sempre e também vida. Assim é que se conduz a escritura de Derrida, acompanhando o pensamento fundador de Freud.
Por respeito à Crueldade, há que se dirigir ao texto. Faço unicamente um comentário a esse respeito: não tem leitura de Derrida. Não é um texto para ser lido num sistema de leitura. O que primeiro chama a atenção é que ele marca de imediato "alguma coisa" que se poderia pensar ou entender no regime psicológico: "Sim eu sofro cruelmente, ou então, se faz com que você sofra, ou se deixa você sofrer cruelmente; ou ainda, você a fez ou o fez sofrer cruelmente; eu me faço, eu me quero sofrer cruelmente". Afirma que essa variação passa por todos os sujeitos: eu, tu, ele, nós, vós, eles; também passa pelo "faz-se", esse indeterminante que em francês tem importância, que é mais importante nessas línguas européias do que na nossa. E o sofrimento é também importante, talvez especialmente, nessa "interpretação" egóica que nós conhecemos tanto, que o analista ligado à consciência sugere ao seu analisando: "Você se faz sofrer tanto!". Grande coisa. Todo mundo vai a análise, geralmente, porque se faz sofrer tanto, o resto é bobagem.
Mas Derrida pergunta: por que? Por que isso, a crueldade, aparece em todas as manifestações anímicas? Especialmente naquilo que Freud chamou de masoquismo primário. O ponto de partida será, portanto, bastante distinto de uma posição idealista ou, para ficarmos num pensamento mais próximo do nosso, iluminista. Poderíamos pensar que ele vai se decidir por uma linha de crítica ao Iluminismo: a crueldade, o mal impede as possibilidades da Razão. A Razão, pelo modo de se construir, ela se quer duas coisas sempre: necessária e universal. Qualquer filosofo que construa ou que experimente construir articulações de razão, tem que saber que, necessariamente, universalmente, os princípios da razão devem ser válidos para todos os casos.
Kant, por exemplo, que foi o fundador de tal modo de estabelecer essas questões, tomando a física de Newton para pensar alguma coisa que estaria na origem de qualquer caso possível de acontecimento, enunciou a existência de princípios a priori na base de qualquer possibilidade de razão: tempo e espaço. Ora, imaginemos um tempo perverso, cruel, enganoso, disruptor, desviante. Pois bem, como encarar o mal e a crueldade? Se existe mal não haveria mais universalidade. Por exemplo, eu enuncio um princípio e esse princípio é quebrado pela própria postulação do mal. Se o mal é "um positivo", como assegurar a universalidade? Estaríamos impedidos de fundamentar princípios universais, na medida em que eles contivessem seus próprios processo de desagregação. Tentarei indicar como isto aparece no Idealismo, com um exemplo de Platão, e na Crítica, com duas observações de Kant.
E Derrida? No início de seu escrito ele mostra como Nietzsche vai reconhecer na crueldade uma dificuldade para determiná-la ou delimitá-la. A crueldade seria sem termo, e sem termo que se opusesse a ela. Nada se opõe à crueldade, é um termo sem começo e sem fim, e sem contrário: uma astúcia da vida.Também para Freud, a crueldade seria talvez sem termo, ou seja, um estado onde pudesse se conter. Mas, sendo pensável e organizável sob forma de pulsões e seus opostos (conjunção-disjunção) ou processos (masoquismo-sadismo), sua própria conceitualidade e a posta em ação clínica implicariam, desde logo, num modo de cerni-la, limitá-la. Quer dizer, a crueldade seria sem fim, mas não sem contrário. Contudo, no fim do texto, citando a carta de Freud a Einstein, Derrida dirá que Freud recusa um termo que pusesse fim à crueldade, colocando-o, ao nosso Mestre, na senda nietzscheana.
Vamos ver como Derrida constrói seu saber, sempre por referência especial ao que nos interessa como psicanalistas. Com sua teoria da desconstrução e da arqui-escritura, o que ele pretende é elaborar um saber da letra, distinto dos campos de significação habituais. Qual o estatuto da letra, como ela se conduz e se condiz, seu regime imanente, sua especificidade, como tomar a letra no seu modo de ser e não arregimentada por algum regime prévio de significação, como separar a letra da imagem e da atração que a imagem exerce para constituir a letra, o que é a especificidade da letra, ou seja, considerada em sua referência própria e não constituindo um par de oposições na relação entre significante e significado: esta é a questão que percorrerá seu projeto de pensamento e toda sua obra.
Isto o leva a recusar a linha semiológica contemporânea, onde se examinam as expressões desde um regime de signo e de escrita calcado na fala, na sua fonologia e, buscando o estatuto específico da letra, procurará construir uma Gramatologia. A Gramatologia visa os traços anteriores à escrita calcada na fala, recusa a Semiologia vinda de Saussure, onde a significação é produzida pela articulação de Significante ou som com o Significado, valor e imagem. Para a Semiologia, a escrita seria, portanto, uma fixação, cultural e relativizada, feita no interior de grupos e alianças, dos sentidos dados na vida social e sua circulação e comunicação. Como se a escrita fosse apenas uma transcrição natural dos regimes de significação, re-produção da presença, do ser-aí da experiência existencial. Ou, melhor das hipóteses, a Semiologia faria abstração da relatividade sígnica e procuraria abstrair deles certos princípios "imutáveis", Significante e Significado como constituintes de qualquer subjetividade.
Para os psicanalistas, acompanhar tal formulação, significa se indagar a respeito do estatuto do inconsciente, do que é a especificidade dos processos primários. Sabemos que Freud postulou que o inconsciente funcionava através de ocupações (Besetzungen) livres e que "nele" (se é que se deve falar assim do Inconsciente, como uma ousia, uma substância) inexistiam "qualidades" que se determinariam apenas desde os processos secundários, como a negação, o grau e a variação das certezas, sua atenção e retenção, a localização e seleção, a primazia, a dúvida, a delimitação e o conseqüente juízo. Mas que pensou, por vezes, numa passagem possível entre os dois sistemas, como o mostra a concepção de dupla inscrição.
Por isto é importante argüir sobre como funciona, como se deve pensar o regime da produção inconsciente. Algumas concepções psicanalíticas chegaram até a elaborar o inconsciente como um topos onde já estariam inscritas significações prévias, que só precisariam ser deslocadas para o regime secundário, trazidas ao seu "verdadeiro lugar", lugar "sem problemas" desde que simétrico à unidade dos processos primários. Observo que, nisto que mostrei, resta à escrita uma adequação de continuidade, na medida em que a ela só serviria (de acordo com o mais antigo modelo semiológico elaborado no Ocidente, desde o pensamento de Platão ) para a determinação da existência da significação. Ou seja, a significação sendo prévia e anterior às experiências psíquicas, dada imediatamente e previamente como elemento primordial a se considerar, seria este o objeto único e unitário do pensador e também do psicanalista para construir um saber sobre a significação. A escrita partiria da presença e do presente.
Por exemplo, encontramo-lo por vezes também em certos momentos da própria psicanálise freudiana, onde um sonho já encontra uma tabela inscritiva, um modo prévio e regulado de explicitar seus "conteúdos", um modelo prévio que diria exatamente a que o sonho se refere, seus conteúdos, o que o sonho significa. Uma linha de pensar onde os sentidos inconscientes organizam-se em complexos universais e universalizantes, vias únicas para a elaboração do inconsciente. Aqui, a letra está presa, determinada, preestabelecida, marcada e organizada por um conjunto significativo prévio, o complexo, onde só lha caberia se localizar (complexus, abraçar, abarcar; complexio, união, conjunto). "Diga o que disseres já sei o que estás dizendo", "sua letra já a conheço, pois tenho o instrumento da (sua) significação", uma escrita que a antecede.
Muito bem, mas tal concepção do funcionamento do inconsciente não escuta nem considera os vazios e ausências, transgressões e rupturas, a destruição e a violência, a crueldade, disrupções e transgressões verdadeiras, as pulsões de apoderamento (Bemächtigungstrieben) e as pulsões de morte. Introduzo a idéia de que só é verdadeiro o que insiste e subsiste, no sentido de tomar os traços diferenciais inconscientes como positividades, independentemente de seu valor.
Ensina Derrida, com o que devemos todos estar de acordo, que o significante não pode se colocar como anterior ao significado, pois ele deixaria de significar. O signo é pelo diferimento, ele se estabelece pela presença mas não é seu representante ou significante-signiticado. Nas semiologias, de acordo com sua proposição teórica, o significante só pode vir depois do significado. Para usar um pensamentar psicanalítico, se se toma a díade Significante-Significado o regime primário dependeria do secundário para poder se colocar, se estabelecer, se por para seus desdobramentos. Ou ainda, o latente dependeria do manifesto para estabelecer seu regime específico. O que o leva a concluir que nas semiologias se afirma um primado do centro no saber psicanalítico, um fonocentrismo, um teoriocentrismo que estabelece o primário desde o secundário, as diferenças após sua valoração.
De outro modo, acompanhemos. Como se situou a investigação das palavras, desde o estabelecimento da Filosofia? Platão, ao longo de seus diálogos, opõe, questiona, contradiz, estatui diante de, palavras já constituídas valorativamente para situar sua articulação dialética. Através de palavras já dadas, estabelecidas e com valor de significação, palavras com valor de presença, ele procura relacioná-las desde um Valor mais elevado, Valor elaborado numa escala construída. E é desde esta escala, que está simultaneamente num regime de construção e de substância efetiva, que ao mesmo tempo é ser e saber, idéia e realidade, que Platão acredita dizer a Realidade Unitária do Ser. Também Platão imitando as Idéias, tendo o mundo das Idéias como O valor único a se atingir, depõe as falas verdadeiras como mímesis de um Ser enquanto alvo absoluto.
Todas as palavras seriam vazias, inócuas e inefetivas, doenças a se curarem. Mas palavras há que estão à disposição, ao alcance, como numa Farmácia, prestes a curarem quaisquer doenças dos humanos, desde que estes se exercitassem a dizer a Verdade que emana do Ser enquanto reino das Idéias. Mas, ensina Derrida, seu remédio é também um veneno, um traço não diferencial, supostamente posto em ação para paralisar o traço de seu oponente2. Na medida em que não se põe enquanto instrumento que se pensa a si próprio pensando a alteridade, ou seja, não se colocando também no reino do Ser onde deveria incluir a si próprio, onde só considera a alteridade enquanto exterioridade, as manifestações dos outros ou do Outro como um efeito que não deve atingir seu regime de enunciador, Platão anuncia a questão aristotélica do terceiro homem, juízo que deve julgar o diferimento dos fatos e suas relações com as Idéias mas também a avaliação da teoria consigo mesma3.
Na medida do possível (ou no possível da medida), eis o que ensino, como psicanalista preocupado não apenas com a transferência mas com a contra-transferência, não é possível pensar o inconsciente enquanto exterioridade, no modo de uma emergência que só contenha os casos que não incluam o enunciador do caso. Sei, o que aprendi com o conhecido teorema de Gödel, isto é, que nos saberes acerca do humano e do social não há formalização capaz de articular consistência e completude simultaneamente, da dificuldade de tal afirmação4. Mas é exatamente na teorização de Derrida que podemos, senão romper, experimentar contornar este limite lógico.
Nos Diálogos de Platão, os que se expressam, bem como suas expressões, são postos em posição de contra-ditores e de contra-dicção, sua dis-cursividade posta em dúvida. Em suma, paralisam-se outrem e outros em nome de um tal Valor mais alto e Único. É função da phoné traduzir os valores dos ditos e falares dos equivocados, geralmente os sofistas e empíricos, e situá-los em torno ou em função dos valores emanados desde um Mundo Supremo. A phoné, a escrita se traduz em conceitos e é prévia ao exame de sua articulação: ela está sempre aí, mas só é validada quando se referir ao Valor que o theorein lhe encarrega. A letra da phoné só se concretiza desde O lugar estabelecido por relação ao mundo das Idéias. E tal acesso só seria possível através de um único método, de uma dialética ascendente que se dirige ao mundo imutável das Idéias.
Se isto se põe como questão para Derrida, também interessa profundamente os psicanalistas, diz respeito a certos regimes de interpretação e os modos e materiais "interpretantes". Como interpretar sem ferir a letra e suas facilitações específicas, quais os modos de escutar o regime primário nos ditos dos que nos procuram, sua organização discursiva numa experiência que constituiu uma vida, um feixe de trilhamentos e experiências, até mesmo o que se denomina hoje de uma subjetividade, como respeitar a dor, as dificuldades, os sofrimentos, as reticências e contradições discursivas dos que nos procuram? Há que acolher o discurso do analisando desde a experiência do seu Dasein, mas devem-se considerar a presença e o presente como possibilidades de um feixe de trilhamentos e resistências e não unicamente enquanto seus constituintes únicos e absolutos, esta a lição de Freud.
Derrida diz que um texto se esconde ao primeiro olhar, à primeira aproximação: "a lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente não se livram jamais ao presente, a nada que se possa denominar rigorosamente como percepção" (ED, p.71). Se um texto não recebe sua determinação desde sua presença ou seu presente, se ele não se filia desde um Valor imposto como ÚNICO, muda a perspectiva de sua verificação. Mas como se estabelecem os discursos e os textos, quais seus modos de articulação? Importa como um texto se estabeleceu, como se produziram nele suas facilitações ou trilhamentos, como e porque ele resiste à elaboração de novos trilhamentos. Já explicito isto, mas o que significa o analisando que nos procura resistir à sua própria verdade, ao que poderia curá-lo, se isto que chamo de o que fosse ÚNICO?
Ou seja, além do que chamamos de presença, aquilo que se dispõe enquanto fator conjuntivo, devem-se examinar as condições de negatividade do que se coloca diante-de como experiência para a existência. Tal negatividade não é do tipo que Hegel nos ensinou e sim próxima ao pensamento de Nietzsche. Negatividade não deve se considerar como o que é oposto ou contraditório ao positivo e que deve ser inserido antiteticamente ou superado num movimento sintético, de recuperação dialética.
O negativo é também e sempre constituinte da efetividade (Wirklichkeit, dizia Freud). O negativo constitui indissociavelmente a possibilidade do ser-aí, que se coloca e se manifesta, que é da ordem de um aparecimento e não de uma aparência (como diria Kant), um phainómenon mesmo sem presença e presente. Como é isto?
No campo tradicional da Filosofia, sabemos desde Kant, mesmo quando ele não tivesse explorado a fundo mais uma de suas infinitas criações, a importância das grandezas negativas, sua assertividade para a constituição de uma resultante dita positiva. Aprendemos com o mestre de Königsberg o exemplo do navio que sai do Porto e leva 15 dias para chegar até o Rio de Janeiro. Que uma tal viagem só se faz com ventos e marolas que "impedem" a navegação do navio, pois ventos e marolas seriam dificuldades constitutivas, que se colocam como negativos da viagem, seus impedimentos, atravancamentos.
Mas tal trajeto, no modo de qualquer outro trajeto, se faz fora de uma regularidade em linha reta, pois deve se considerar e ser através das resistências que se opõem a ele. No evento "viagem de navio", marolas não são negativos a serem sintetizados pela substância "viagem de navio". Inexiste "viagem de navio" sem marolas, a marola é positivo ou positiva. Inexiste uma substância ou idéia "viagem de navio" que se fizesse de modo direto, em oposição real (e nem lógica, digo eu, depois de aprender Kant) à possibilidade da viagem de navio.
Também na sua Antropologia, Kant fala de três categorias de loucuras, determinadas pela exacerbação das três faculdades do espírito (percepção, imaginação, juízo). Mas pensa também uma outra forma sistemática de loucura, a "vesânia" (Aberwitz), onde o doente faz uso de princípios que estão para além da experiência. Denomina-a de desrazão positiva, um positivo da constituição do psiquismo e não um simples desvio das regras do uso da razão5 . Este tipo de louco se separa do sensorio communi exigido para a sobrevivência, e vive alheio às regras da razão.
Ou seja, é uma categoria absoluta, que independe das faculdades da Razão, faculdades estas (intuição, conceito, idéia) estabelecidas no modo universal pelo próprio Kant. Sendo pensada enquanto positividade, tal positive Unvernunft não pode ser aproximada do diagnóstico absoluto dominante na Psiquiatria até hoje (que se constrói distinguindo entre normal e anormal) ou na Psicanálise estrutural contemporânea, onde se postula que o louco forcluiria o nome-do-Pai. Para nós outros, esta desrazão positiva (que, aliás, não é exclusiva dos chamados loucos) se constitui de traços diferenciais que não se ligam ao campo específico da significação, mas faz sentido, que é preciso determinar na rede e nos fluxos, apreender suas diferenças e perguntar pelo seu modo de agenciar (Deleuze). Ou seja, apresento-vos o Kant trágico, distinto do Kant crítico a que nos habituamos. Sem querer desenvolver aqui, recordo que Foucault traduziu este livro para o francês e que ele lhe serviu de enorme inspiração para postular a positividade da loucura.
Como cita Derrida: "O louco é a vítima da rebelião das falas". Sem a ausência e os fluxos, vazios e escanções, nada de Ser, ensina Derrida, em outro regime de construção/desconstrução: "A ausência é a permissão dada às letras para se soletrarem e significarem, mas é também, na torção sobre si da linguagem, o que dizem as letras: dizem a liberdade e a vacância concedida, o que elas 'formam' ao fechá-la na sua rede"6.
Vejamos o interesse para os psicanalistas: Cito-me, sem me localizar. "Jung só leva em conta as ligações entre as representações, as Bindungen, conjunções. Se os sonhos fazem parte de um ideocomplexo, se o complexo se constitui de representações, só há representações sob forma de complexo. Não haveria representação fora de complexo, eis a petição de princípio de Jung". O mesmo acontece com o Outro, "tesouro dos significantes" que não suporta letras que lhe sejam estranhas, autônomas, pois o Desejo só se faria na sua "dimensão simbólica margeada pela dimensão do imaginário", mirando na direção de A Falta, traço único e absoluto7.
Derrida ensina, de outro modo: não há um traço único, inexiste um traço unário, as diferença e os trilhamentos estão multiplamente. Se assim o entendemos, que não há um discurso prévio normativo para informar as dificuldades, um complexo teleológico ou direcional que agencie todos os possíveis de uma subjetividade, se acaso e necessidade se inseparam, é preciso perguntar como e o que sustenta um sujeito. E quais são os elementos de tal sustentação. Antes de seguir e apenas de modo indicativo mas importante, adianto que em Derrida vocês não encontrarão uma teoria acerca da subjetividade, a noção de um sujeito constituído, mas exatamente os traços constitutivos que levam à sua desconstrução. É com este elemento, o traço diferencial, melhor dizendo, os traços diferenciais, que teremos que nos haver.
Por relação ao Platonismo, mesmo que posto esquematicamente neste momento de meu conferenciar, consideramos que a obra de Platão e o vasto saber posterior estatuído por referência a ele se movem na passagem de uma significação à outra, no convencimento dialético através da contradição. Sabe-se com Platão que a palavra, a phoné, tem uma substância e presença próprias, dadas desde um alvo fixo (telos) a alcançar, a tarefa de traduzir ou e para-alcançar um Invisível que está presente sem estar na presença mas que é O alvo-Verdade, um Mundo Invisível em Outro lugar, as Idéias, um Ziel objetivado e objetivável. As experiências de percepção e de pensamento seriam cópias ou simulacros e as Idéias enquanto destinação são a única emergência possível do Ser; mas acessível unicamente a um tipo de pensamento que se reclama desde um máximo Valor ou à alma liberta de sua tumba. Tal construtivismo da Razão deve ignorar a degradação, quedas e carências, cortes abruptos e ausências, imediações e misérias psíquicas, dificuldades, rupturas, equivocidades, dificuldades, a compulsão incessante à repetição e seu eterno retorno, os regimes de realidades singulares e individuais desvios e desvãos de tudo o que impeça a palavra ordenadora do Pai, do Bem, do Sol.
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O próprio Platão também esteve atento a tais questões, a respeito das Idéias da positividade da degradação e da dissemelhança. E o fez no melhor estilo, peculiar ao grande criador que foi, experimentando seu próprio remédio-veneno. Platão situa Sócrates, seu próprio mestre, como tendo que responder às objeções afirmativas de sua teoria diante do pensador que, por sua vez, foi o mestre de Sócrates, Parmênides de Eléia. Em tal posição de dialogando, que é onde o próprio Platão sempre colocava os sofistas nos seus Diálogos, qualquer um perde e se perde diante da inquisição do outro aterrorizador, o dialogador que exige respostas absolutas e inalcançáveis. Aprende-se neste Diálogo um registro de poder que se faz concomitantemente com as questões do saber: sabe e esmaga quem tem o direito à questão. Colocar questões com obrigação de respostas únicas é esmagar o adversário e não considerar seu saber: eis a função poderosa do lugar do Um.
Depois de discutir a idéia de dissemelhança universal e mostrar a dificuldade de recusar a multiplicidade das Idéias, trava-se o seguinte diálogo, que podemos acompanhar:
"- E também, continua Parmênides, [haveria Idéias] para outras coisas? Por exemplo, acreditas que há também, alguma forma em si do justo , do belo e do bom e de todas as coisas desta espécie?
-Sim, disse Sócrates. E também uma forma de homem distinto de nós e de todos os homens como nós, uma forma em si do homem, uma forma do fogo e da água? Sempre fiquei perplexo a respeito destas coisas, não sabendo se deveria julgá-las como as precedentes ou de outro modo.
-Estás perplexo também, Sócrates, a respeito das coisas que poderiam parecer ridículas, como o pelo, a lama, a sujeira ou qualquer outra coisa insignificante e sem valor? Indagas se é preciso admitir que há também para cada uma [destas coisas] uma forma à parte, forma que também seja distinta das coisas que tocamos com nossas mãos8?"
Claro que isto nem sempre se colocou como questão para o platonismo posterior e nem, para nós, como parte das suas indicações. E por isto sigo criticando Platão, como se jamais tivesse escrito seu diálogo Parmênides.
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Ora, considerando a criação de um Mundo-Verdade prévio aos traços de sua constituição e às possibilidades abertas de seu fazer múltiplo, o modo teatral dos diálogos platônicos, a importância da encenação no fazer-se (da) Verdade, seu convencimento sofístico (peithó) pela referência à idealização, o envenenamento através da dúvida, lembro-lhes que é exatamente neste contexto que Nietzsche pensará a positividade do dionisíaco, da transgressão e da festa, do acaso e dos ruídos, da inclusão da ruptura e transgressão, das instalações violentas dos relacionamentos ditos "naturais". É preciso afirmar a potência dos poderes e interesses, marcas inelutáveis dos humanos, ensinou Nietzsche; o que colocou e continua colocando em questão os lugares e a própria existência de Deus.
Quando os traços se dão, eis aí que surgem o Pai e o Sol, o Belo, diz Derrida. O filho deve matar o Pai, que cuida do Filho para que ele conduza os valores do Pai: "Deus está em revolta permanente contra Deus", "Deus é uma interrogação de Deus", dizia Schelling, citado por Derrida (ED, 58). Ou ainda Mestre Eckhart: "Deus torna-se Deus quando as criaturas dizem Deus" (ídem, p. 62). Esta figura mais plena do Um precisa dos espaçamentos, dos vazios e andamentos, do ausente e do vazio, dos clamores de suas (ditas) "criaturas" para ser. Afirma Derrida que quando um homem poetiza ele se torna o pai de seu próprio poema. Como diz Edmond Jabés, poeta egípcio-judeu que ele estuda: "A pouco e pouco o livro terminar-me-á". Pai é criação do filho, necessitado de paternidade e carente de soberania. E por isto sua destruição só se faz com dificuldades e dores.
Para nós psicanalistas, mais importante ainda é saber que já existe um pensamento Freudiano sobre o assunto, enquanto teoria das pulsões, onde nosso Grunder pergunta acerca das relações entre caos e cosmos no seu regime psíquico. Que é o que a obra de Derrida examina.
Para compreender como ele constrói sua Filosofia ou sua concepção de Filosofia, pois só através dela que poderemos situar a questão da crueldade como ele a postula, farei uso mais direto de apenas dois de seus inúmeros textos.9 Contudo, indicarei seu pensamento por relação à Psicanálise e não apenas seu pensamentar em sua produtividade genérica, em seus traços diferencias e sua máquina de escritura ampla.
No primeiro texto, cria um neologismo que já indica questões que só se colocam na escritura: a Différance, Diferenssa, gloso eu. Pois, em francês (e nem em português, desde minha própria transcriação, de acordo com o que ensina Haroldo de Campos) se lê ou se escreve, mas não se entende/escuta (entendre) a Différance. Nem em português, doravante, se entende ou escuta a Diferenssa. Trata-se de um feixe que marca "a reunião proposta à estrutura de uma intricação, de uma tecedura, de um cruzamento que deixará repartir os diferentes fios e as diferentes linhas de sentido -ou de força- do mesmo modo que poderá enlaçar outras". Tal afirmação se liga à determinação de que, rigorosamente, "não há escritura fonética".
Por que? Pois esta não pode admitir signos não-fonéticos -espaçamentos, pontuações, vazios, ritmos, andamentos, desligamentos escanções, timbres, distonias e desarmonias, melodias e ruídos, ausências, rupturas, informes, reticências: MORTE- que não cabem na própria definição de signo. Postular a Diferenssa, portanto, é recusar de saída a oposição entre sensível e inteligível. Ponto de emergência de algo que está sendo criado no mesmo regime em que este mesmo algo enuncia. Como para marcar o retorno de si em torno de si mesmo, aporia designada por Nietzsche (Para além do bem e do mal), ao mostrar como a língua performa, cria seus próprios significados desde o direito senhorial de afirmação, enuncia positivamente, ao mesmo tempo em que nos eludiu a questão de porque ele, o próprio Nietzsche, enuncia. Ora, é exatamente isto que se apresenta no rascunho de Freud a Fliess, no chamado Projeto.
Lembro que, para Freud no Projeto10, a passagem da energia, da energia libidinal constituinte do psiquismo, se faz através dos neurônios, pelo mecanismo do que ele chama de "facilitações", Bahnungen. Quando a energia tende a seguir uma via e não outra, ou seja, fazer uma passagem de um neurônio a outro, ou por um neurônio ou grupo de neurônios e não outro, é a isto que Freud denomina de Bahnung. Tais passagens da excitação devem vencer uma certa resistência (conceito essencial para se acompanhar o texto sobre a Crueldade). Ou seja, onde houver uma resistência menor ou melhor, caminho mais fácil para a energia enquanto traço diferencial, mais favorável à excitação, uma passagem mais fácil, uma via onde se possa melhor per-correr a ligação de um neurônio a outro, aí se dá a facilitação ou o trilhamento. Ou seja, neste momento Freud não constrói um sistema psíquico postulado à moda de instâncias, mas um aparelho que destina a excitação pulsional através de uma escolha mínima, "uma topologia de traços sem escritura" (ED, 327). Para Derrida, tal funcionamento é a marca emergencial para pensar o inconsciente fora do modelo ótico (como Freud o faz na Traumdeutung), como máquina de escritura onde o processo primário se manifesta obedecendo apenas ao seu Drang, às resistências e facilitações. Ou seja, temos o regime primário de percorrimento dos traços diferenciais, considerado autonomamente, distante dos valores e de suas conotações simbólicas ou de suas oposições ao regime secundário. Primado da letra.
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Bem, se assim é, a crueldade não pode ser evitada mas pode ser contornada. Existem umas tantas questões, que deixo como caminho a percorrermos todos, os psicanalistas mais bem humorados.
1º- Em certos regimes de crueldade -já aprendemos que a crueldade não é essência ou substância e sim diferença de traços, logo ela não é um constituinte transcendente- distinguimos a crueldade que deixa o psiquismo restritivo de outra que o deixam expansivo. Não se trata então do mesmo processo de crueldade, substância igual a si mesma, reprodução de suas qualidades. Assim, numa crítica à ideologia comunista, após ter dito que é uma ilusão esperar que os humanos deixariam de ser cruéis ou agressivos se pudessem satisfazer suas necessidades materiais, Freud afirma que: "desde a nossa mitológica doutrina pulsional, encontramos facilmente uma fórmula para as vias indiretas no combate à guerra11".
A crueldade não sendo uma substância ou um constitutivo ôntico de um Ser, mas uma vontade de potência (como dizem Nietzsche e Derrida), pode-se abordá-la através de modos indiretos. No mesmo regime de pensar que considera o estatuto não-identitário do outro. Com feito, se a alteridade não se reduz ao mesmo, "a vinda incondicional do outro, seu acontecimento inantecipável e sem horizonte, sua morte ou a própria morte, eis aí irrupções que podem e devem suplantar as duas ordens do constatativo e do performativo, do saber e do simbólico. Quem sabe, para além da crueldade".
Assim, depois de falar de dois movimentos para pensar a crueldade - um constata a crueldade e a coloca dentro do circuito do pensamento, da teoria, e o outro é o performativo: faça isso ou faça aquilo, ligado ao simbólico - Derrida fala de um terceiro movimento, que se produz desde a consideração da alteridade.
Este terceiro movimento - o para além, o mais difícil, o próprio impossível - é mesmo aí onde se registram todos os acontecimentos. No constatativo e no performativo permanecem as ordens do poder e do possível; pertencem, portanto, à economia daquilo que é reapropriável e reapropriado. Mas um acontecimento, a vida de um acontecimento digno desse nome, é sua alteridade imprevisível (o fato é previsível, o acontecimento imprevisível). A chegada do chegante, eis o que excede qualquer poder, qualquer performativo, qualquer eu posso e mesmo qualquer eu devo; qualquer dever e qualquer dívida num contexto determinado. Em toda parte onde houver lei e performativo, sendo eles heteronômicos, pode certamente haver aí acontecimento e o outro, mas eles são sempre neutralizáveis pelo essencial e são reapropriados pela força performativa, pela ordem simbólica. Nós sabemos disso. Contudo, aí é que entra a novidade e que está ligada a obra do Levinas: a vida e a vinda incondicional do outro, seu acontecimento inantecipável e sem horizonte, a morte ou a própria morte, estão aí irrupções que podem e devem colocar em deroute - em francês significa fora de rota - as duas ordens do constatativo e do performativo; do saber e do simbólico, talvez para além de qualquer crueldade.
Ou seja, na obra do Derrida, há uma aposta no retorno do acaso para o reino da necessidade. Devemos considerar tal proposição distintamente das que se fazem num campo onde se faz uma essência qualquer, que constitui uma substância. Aqui se introduzem o acaso legítimo, o imprevisto, imprevisível, o inesperado, enquanto ordens de acontecimento.
2º- Freqüentemente vemos alguns psicanalistas bastantes desesperados, ao constatar um certo mal-estar universal como essência: aquilo que marcaria a subjetividade desde sempre e que, como tal, não poderia ser ultrapassado. Aqui no Rio de Janeiro é uma palavra muito forte e que marcaria os limites e possibilidades, condições do funcionamento do psiquismo, à moda de um transcendentalismo kantiano, quando se diz que o homem é destinado ao mal-estar, que o sujeito, desde que se constitui, é destinado a estar mal. De acordo com o que só indiquei para vocês, isso aqui é posto em questão na obra de Derrida, na minha opinião o maior atrativo: a luta permanente contra o substancialismo e o essencialismo. É a isto que vem o texto de Nietzsche, que coloquei na nota 3 (acerca da "A emergência do conhecimento"): uma pergunta acerca de se aquele que enuncia a verdade pode se excluir de suas proposições. Se podemos diferenciar sujeito do enunciado de sujeito da enunciação sem constituir substância e falarmos em seu nome e verdade únicos.
3º e último intervalo -Importante pensar que neste modo de escritura, coloca-se a pergunta de como é possível a crueldade através de um discurso que também é cruel. Eu queria que vocês entendessem a diferença, quando se coloca aquele que enuncia como parte constitutiva do processo primário da enunciação. Acho que é um limite para o discurso que afirma a neutralidade do psicanalista, que não se interessa pelo poder da Psicanálise, pelo valor da clínica da Psicanálise, pela possibilidade de juntar pessoas em torno da Psicanálise, e que só fica numa teoria que giraria apenas em torno de conceitos. Essa é a novidade e, se quisermos ser radicais junto com Derrida, é isso que vamos ter, mas que torna mais grave, e o nosso lugar muito mais comprometido. Eu não sei bem o que é esse "comprometido", mas não tem outra palavra. Quem afirma o Dasein, deve-se colocar constitutivamente no modo de colocação. Cada alteridade apela para novas facilitações e resistências.
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Peço-lhes que desculpem a secura incisiva do que estou apresentando, mas assim se poderá contatar com o regime primário nesta ordem conferenciada do discurso. Acompanhemos que o processo primário se obriga enquanto positividade, afirmação permanente e insistente, repetição diferencial desde o início, ou seja, a partir de sua própria emergência, desde seu modo de se colocar como ser e questão e impor simultaneamente suas próprias resistências. Não sei se teremos condições de fazê-lo juntos neste momento, mas pensar assim o inconsciente e sua emergência modifica inteiramente a escuta clínica. Não se tem mais um complexo prévio onde representações inadequadas e afetos insuportáveis derivariam do desvio de um inconsciente originário e deveriam aí se fixar novamente, num modo não-neurótico (a ser reduzido ou corrigido para UM modelo originário adequado e suportável12). Ou seja, não é por aí que passa o que Freud chamou de perlaboração inconsciente. Desde logo, pois esta máquina de escritura insepara representações e afetos, que só vão se organizar enquanto sistemas com destinos distintos, só terão existência em dois registros diferentes, no modo dos processos secundários, através de uma intelecção historicamente conjuntiva acerca da organização inconsciente.
De modo equivocado, ensinou o próprio vienense. Freud escreveu a Fliess: "Estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico é proveniente de uma sobreposição de camadas [Aufeinanderschichtung, estratificação], enquanto o material, presente (Vorhandene) dos traços mnemônicos fica sujeito de tempos em tempos a um rearranjo (Umordnung) de acordo com novas relações (Beziehungen), experimenta uma transcrição (Umschrift)13".
Esta separação entre representação e afeto, recusada, por exemplo, até mesmo numa teoria semiótica como a de Pierce e de outros semioticistas interessados na organização sígnica e não do Simbólico enquanto sistema, é também indicada por Freud. Ele o sabia, tendo-nos deixado o encargo de desenvolver e desdobrar o ser inseparável entre afetos e representações. Postulou a existência de um "tipo específico de representação", que se estabelece na encruzilhada, na emergência dos afetos e do sistema de representações: "O recalque não acontece pela construção de uma contra?representação fortalecida, mas pela intensificação de uma representação?limite, a qual, daí em diante, representa a lembrança recalcada no decurso do pensamento. Deve?se chamá?la representação?limite (Grenzvorstellung), pois, por um lado, pertence ao eu consciente, por outro se constitui numa parte não distorcida da lembrança traumática14".
Bem, o outro momento em que Derrida acompanha Freud se refere a um texto menos conhecido de nosso Fundador, acerca da lousa mágica ou do quadro mágico15. Trata-se de um brinquedo de crianças,16 um objeu, como diria Lacan, que tem na sua superfície uma camada de cera, coberta por um celofane, uma folha de papel celofane. Neste objeu se escreve alguma coisa. E depois, levantando a camada de celofane, tal coisa deixa de existir. Mas, outra qualquer coisa pode ali se escrever, e o que foi escrito e inscrito - o que Freud chama de traço, Zug- pode se substituir. O aparelho que acolhe a escrita é uma máquina de escritura, diz Derrida. É assim a organização do aparelho psíquico, afirmou Freud. Os traços diferencias são acolhidos sem se gravarem no aparelho de escritura e o aparelho contém quaisquer traços, indiferentemente, sem considerá-los hierarquicamente. Os traços ganham aí valor positivo, o que quer que intencionem significar. Ou seja, diante das questões postas no modo das Semiologias, postula-se na obra Freudiana a multiplicidade possível de traços e inscrições, desde sua facilitação e resistências. Relembro que, neste mesmo escrito, Freud faz menção ao sistema psíquico como Wunderblock, postulando que a camada de cera é a consciência e a folha de celofane o pré-consciente.
Se assim é, o que estamos sabendo é que a diferença gráfica não se apresenta no presente, pois, enquanto feixe, é entre. Não tem, portanto, uma substância primeira, arkhé ou ousia, essência ou substância. Constitui-se de traços diferenciais, que encontram sua via através das Bahnungen, facilitações ou trilhamentos (de acordo com Freud, na Entwurf). Que, enquanto presença, os trilhamentos anunciam e contêm sua morte e servem para seu próprio desaparecimento.
As Bahnungen obedecem à organização de um diferimento, que organiza concomitantemente suas modalidades temporais e espaciais. Para Derrida, segundo seus dois sentidos latinos, mais ricos e extensos do que o sentido grego que só diz respeito a um, que respeita apenas a diferença entre duas situações ou dois termos, mas ignora o diferimento temporal.
1º- a temporização, leva em conta a ação de protelar, "o tempo e as forças numa operação que implica um cálculo econômico, um desvio, uma demora, um atraso, uma reserva, uma representação. Temporização é, assim, devir-tempo do espaço e devir-espaço do tempo".
Tomemos o exemplo de Moisés. Segundo Freud, Moisés emergiu da condensação de duas figuras: um egípcio nobre, e seguidor do deus único Áton; e um líder judeu, que nasceu posteriormente, e que adota a religião do deus Yawhe. Este último, o líder judeu, seria Moisés, genro do sacerdote Jetro. E é esta figura, assim constituída, espaçada por um intervalo de dois séculos, que está na fundação do Judaísmo. O processo de emergência de um Moisés só é possível graças ao "atrasamento". Então, não é o inconsciente que é originário, mas o atrasamento (Verspätung), que se faz como traço diferencial e trilhamento, penetrando através das facilitações. O originário se faz, é um ato psíquico inconsciente, ele é emergente, encontro de traços diferenciais e não origem. O Um nasce da multiplicidade dos traços diferenciais e seus trilhamentos.
2º - espaçamento, a característica dos traços é não serem idênticos a si8 mesmos, a não terem característica identitária: "entre os elementos se produz, ativamente, dinamicamente e com uma certa perseverança na repetição, intervalo, distância". Logo, o querer-dizer se sobrepõe ao estar-aí (Dasein). O espaçamento também significa e rompe com a afirmação do si-mesmo. O espaçamento está sempre diferido de si próprio mas, simultaneamente, remetido para a alteridade, onde se diferencia. Tomemos o exemplo do que se passa entre o signo e a escritura. Considera-se o signo como presença diferida, algo que está no lugar do que se coloca na presença e "pede" nomeação ou localização. O signo sé seria pensável "a partir da presença que ele difere e em vista da presença diferida que se visa reapropriar". Na Diferenssa, o sentido se dá quando um traço se relaciona com algo que não seja ele mesmo. Não há presença de si no modo afirmativo, dadas as regras do espaçamento.
Para Derrida, a vida se protege pelo traço, pela Diferenssa. "Mais ainda: a diferenssa não sendo uma essência, nada sendo, ela não é a vida se o ser for determinado como ousia, presença, essência/existência, substância ou sujeito. É preciso pensar a vida como traço, antes de determinar o ser como presença"17. Assim pensaremos a categoria de emergência, ao invés de origem, como mostrei no exemplo da emergência de Um Moisés, condensação dada em tempos cronológicos distintos, mas de temporização inconsciente no seu modo de emergir.
Para a elaboração psicanalítica a respeito da sexualidade, deve-se considerar, numa linha bem distinta daquela proposta, por exemplo, por Laplanche, que quando "algo" pré?sexual se faz sexual, quando as duas correntes se encontram e produzem significação psíquica, é o processo de encontro que é originário e não algum ser ou estrutura dados previamente, tal como um sistema simbólico primordial, que só estaria à espera do pré?sexual para se constituir. Também o atrasamento se constitui enquanto processo secundário, mas não é uma resultante, ele é originário, pois não há nenhum ser que seja seu próprio processo de finalização. Ou seja, encontram?se aí uma noção e um funcionamento específico do tempo, na medida em que os processos temporais são fundadores do inconsciente.
Assim Derrida critica a leitura significante que se faz de Freud, onde as Bahnungen se colocam como diferença por referência obrigatória, por relação, por determinação e conseqüência de um sistema simbólico que supostamente as determinaria, preexistindo a elas. Isto é, os acontecimentos psíquicos se determinariam por relação a um tempo único, que só faria reproduzir o sistema simbólico de quem ele derivaria. Esta noção de tempo, tempo a posteriori, é entendido como diferença de dois espaços, e sua única função é repercorrê?los, reproduzindo representacionalmente UM Simbólico que o antecederia (e que caberia ao modelo do tempo da Nachträglichkeit confirmar).
Para ele, "a vida psíquica não é nem a transparência do sentido nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças"18. A memória não é a Reprodução permanente de uma Matriz ou Patriz pré-dadas. Se inexiste Um originário, a memória (as memórias) é diferença afirmativa, assim como o é o processo de atrasamento. O que funda a memória é a repetição, e não a re?produção de um Simbólico prévio e originário.
"A repetição não acrescenta nenhuma quantidade de força presente, nenhuma intensidade, ela reedita a mesma impressão: tem, contudo, poder de trilhagem. 'A memória, isto é a força (Macht), sempre em elaboração, de uma experiência, depende de um fator que se denomina a quantidade da impressão, e da freqüência de repetição da mesma repetição' [ Freud ]. O número de repetições se acrescenta portanto à quantidade (Qn) de excitação, e estas duas quantidades são de ordens absolutamente heterogêneas19".
Com isto, eu quis indicar a importância da noção de resistência estabelecida por Freud e um seu outro estatuto, desde a máquina primária da escritura.
Por último, devo dizer que Derrida nos abre uma possibilidade não apenas para pensar as questões teóricas a respeito do que é o processo primário, mas nos remete diretamente a algumas questões da clínica psicanalítica, no modo de interpretar, naquilo que é muito novo, que é muito vibrante: do papel positivo da negatividade, a questão dos espaçamentos, dos silêncios. Onde o psicanalista escuta os espaços e sua negatividade constitutiva por relação aos significados. Em que o silêncio do psicanalista não é mais o mesmo, mas necessita de atividade, não reproduz um calar a boca, mas procura algo do que é não estar ausente e que não tem nada a ver com a presença - é um outro tipo de categoria (conforme apontei acerca do espaçamento). Como exemplo indicativo, se tomamos o regime do infantil, articulado como regime primário de escritura, acercamo-nos da melhor elaboração freudiana, onde se mostra que o infantil não se remete a uma idade cronológica, nem é uma referência a uma instância. O infantil se inscreve permanentemente, como constituinte primário de uma máquina que mescla, insepara e não mais distingue as necessidades constituídas da comunicação com os espaçamentos que não se dizem comunicativamente, que só experimentam informar por vias indiretas e que são exatamente o infantil, o que insiste sem poder se dizer. Pretendo desenvolver este tema, em outra ocasião.
Esse é o exemplo forte que o Derrida traz e eu só fiz essa interferência forte também - assim espero - para que se saiba que não estamos aqui como diletantes homenageando uma conferência parisiense.
Bem, o resto é maior e muito mais trabalhoso do que apontei. Cruelmente, deixo-o e sou por ele deixado para outro momento alegre, que encampe a vida tal como ela se manifesta, feliz ou infeliz.
1 - Freud (1940b[1938]) Some elementary Lessons in Psycho-Analysis. GW, XVII, p. 146. ESB, XXIII, p. 320. A tradução brasileira diz "mentais" para Seelischen.
2 - "La pharmacie de Platon" In La Dissémination. Seuil. Paris, 1972.
3 - (referindo-se aos pensamentos circulares e redondos): "Onde a vida e o conhecimento parecem em contradição, jamais se travou uma luta séria: a negação e a dúvida passam então por loucura. Os pensador excepcionais que foram os Eleatas, que, apesar de tudo, estabeleceram e mantiveram as antinomias dos erros naturais, acreditavam que também seria possível viver tais antinomias; inventaram o sábio enquanto homem da imutabilidade, da impessoalidade, da universalidade da intuição, como sendo uma e outra coisa simultaneamente, dotado de uma faculdade particular para este conhecimento invertido: acreditavam que seu conhecimento fosse ao mesmo tempo o princípio da vida". Nietzsche, A Gaya Scienza, terceiro livro, 110, meu grifo.
4 - Ernst Nagel e John R. Newman, "Gödel's Proof". Scientific American. Nº 6. 1956.
5 - Kant, [1798] Anthropologie in pragmatischer Hinsicht In edição de Wilhelm Weischedel. Wissenschaftliche Buchgesellschaft Darmstadt. 1966. volume VI, p. 528ss.. Kant, [1798] Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris. Librairie Philosophique J. Vrin, 1964, p. 81 ss. Tradução de Michel Foucault.
6 - Derrida, "Edmond Jabés e a questão do,livro". In A Escritura e a Diferença. Trad. Perspectiva. São Paulo, 1971, pp. 63/4.
7 - Pierre Kaufmann, Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. O legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro. Trad. Jorge Zahar, 1996, p. 385.
8 - Platão, Parmênides, 130-131.
9 - "La Différance" In Théorie d'ensemble. Seuil. Paris, 1968. E "Freud et la Scéne de L'écriture" In Jacques Derrida, L'écriture et la différence. Paris. Seuil, 1967.
10 - Freud, 1950c[1895] Entwurf einer Psychologie. Projeto de uma psicologia. Nachtragsband; ESB, I.
11 - Freud (09/32- 1933) "Warum Krieg? " Carta a Albert Einstein. GW, XVI, p. 23, meu grifo.
12 - Lembro que, especialmente desde 1930, Freud pensará que o destino das pulsões será a insuportabilidade, o que ele denominou de o dys-confortável. Unbehaglichkeit, diz da cultura que é carente de prazer, comodidade, satisfação, aconchego, confortável, à vontade (Behaglichkeit)1930a[1929] Das Unbehagen in der Kultur. O Mal?estar na Cultura. GW, XIV.
13 - Sigmund Freud. Briefe an Wilhelm Fliess 1887?1904. Ungekürzte Ausgabe. Frankfurt?am?Main. S. Fischer, 1986. Editada por Jeffrey Moussaief Masson, reelaborada por Michael Schröter e transcrita por Gerhard Fichtner. Carta 112 (6/12/96), p. 217.
14 - Briefe, Manuscrito K, p. 177/8, o primeiro grifo é meu. Na edição Imago, a ESB, Grenzvorstellung se traduz como "idéia limítrofe" (p. 170), o que descaracteriza completamente o pensamento de Freud deste momento, mesmo quando ele não tenha desenvolvido o conceito posteriormente.Na edição resumida, Ernst Kris diz: "Freud não assumiu o conceito de Grenzvorstellung nos seus escritos". cf. este comentário em Sigmund Freud. 1950a [1887?1902], Aus den Anfaengen der Psychoanalyse. Briefe an Wilhelm Fliess. Abhandlungen und Notizien aus den Jahren 1887?1902. Frankfurt am Main. S. Fischer, 1962. Editada e selecionada por Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris. p. 413. A mesma nota está transcrita em Briefe, p. 177, nota 12; mas inexiste na edição brasileira.
15 - Freud (1925a[1924] "Notícia sobre o 'Wunderblock'". GW, XIV.
16 - "O tempo é uma criança, jogando o jogo deopedras; vigência da criança". Heráclito, fragmento 52. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão.
17 - "Freud et la Scéne de L'écriture", p. 302, meu grifo.
18 - Derrida, 1971, p. 185, meu grifo.
19 - Derrida, 1967, p. 299/300, meu grifo.
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