Psicotrópicos, Masoquismo e Tranferência:
Duas observações

Felipe Lessa

Resumo

O presente ensaio apresenta duas observações sobre o papel dos psicotrópicos no tratamento psicanalítico. A primeira aponta para o efeito, a médio ou longo prazo, das medicações sobre o masoquismo moral dos sujeitos, levando a uma redução da tolerância à dor e à angústia. A segunda indica a importância de uma orientação comum entre psiquiatra e psicanalista, no sentido de implicar o sujeito a seus desejos inconscientes em relação à medicação.

Felipe Lessa
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Psicotrópicos, Masoquismo e Tranferência:
Duas observações

    "Como não invocar o
    vício da poesia:o
    corpo que entorpece
    ao ar de versos?

    (Ao ar de águas
    mortas, injetando
    na carne do dia a infecção da noite.)"
No grupo de reflexão sobre Psicanálise e Psicofármacos levantamos vários problemas ligados à medicação e à psiquiatria, sendo que, particularmente duas questões clínicas levaram-me a escrever esse texto. Ainda que, visto a complexidade do tema, não tenha sido possível uma análise mais completa dos dois pontos vou que expor, gostaria de apresentá-los para o debate.

A psicanálise convive com a psiquiatria nos hospitais e nos consultórios. Quando necessário, o psicanalista serve-se da psiquiatria, e esta, em muitos casos, orienta-se pelo pensamento de Freud, ou pelo que chama, de um modo geral, de perspectiva "dinâmica". Embora a psicanálise não seja hegemônica no campo da saúde mental, é cada vez mais comum encontrarmos pacientes que buscam um tratamento psicanalítico quando já estão medicados. O trabalho do psicanalista, nesta situação, acontece junto ao psiquiatra e encerra os dois problemas que pretendo discutir.

O primeiro diz respeito as relações transferências que tem lugar na triangulação entre o paciente, o psicanalista e o psiquiatra. A pesar de haver psicanalistas cuja formação médica permite medicar seus próprios pacientes, no Brasil, a maioria dos psicanalistas, ou não são médicos, ou preferem que outros colegas façam o acompanhamento psiquiátrico do caso. Este primeiro problema parece simplificar-se quando o psicanalista atua também como médico, podendo cuidar da tranferência que o sujeito estabelece com o remédio, e com quem o receita, reconhecendo-a facilmente no interior da situação clínica.

O outro problema que gostaria de comentar diz respeito a um possível efeito das medicações sobre a disposição masoquista dos sujeitos. É interessante notar que a maneira como alguns pacientes parecem estar prontos, ou não, a suportar seu sofrimento vária conforme a relação transferencial que ele mantem com o psicotrópico, com a autoridade médica e com o psicanalista. Os dois problemas encontram-se.

Os psicotrópicos tendem a diminuir ou amortizar o sofrimento psíquico do sujeito, que vive sua dura realidade sempre com muita angústia. São mais que o ópio do povo. De fato, a medicalização da cultura tem um espectro bastante amplo, deixando marcas claras na clínica individual. O uso cotidiano de aspirinas, antidepressivos e calmantes, até os mais poderosos, aponta para uma cultura que tende a não tolerar nenhuma dor. Analgésicos, estimulantes, relaxantes musculares, etc. Não há necessidade de resistir ao sofrimento, ele tende a ser banido do horizonte da boa saúde. A responsabilidade pelo estado de espírito do sujeito parece ser dividida com o remédio que pode modificar a intensidade de suas sensações, a velocidade de seus pensamentos, e conter a potência e a destrutividade dos sintomas e da angústia. A medicação interfere na intensidade pulsional do sujeito podendo criar condições de elaboração dos conflitos, porém, quando super-utilizadas, a longo e médio prazo, as drogas restringem e perturbam a sensibilidade dos pacientes.

O interesse de algumas pessoas pelos medicamentos refletem um certo estilo de vida, ou como diz Foucault, uma "estética da existência". Os diferentes "cuidado de si" denotam normas e morais às quais o sujeito está submetido, revelando a estética própria ao costume que o sujeito vive em determinada época. Joel Birman fala da psicanálise como uma "estilística da existência". A experiência psicanalítica voltada, não para o ideal de cura, mas para "constituição de um estilo para o sujeito", regula-se "nos registros ético e estético", trabalha sobre os cuidados que o sujeito dispensa à si, sobre suas maneiras de padecer e lidar com o sofrimento.

Comentando o impacto na nova psicofarmacologia na psicanálise, Birman nos chama a atenção para importância de levarmos em conta a dimensão corporea do sujeito. O estilo de vida adotado pelos sujeitos que preferem cuidar si por meio das terapias corporais e das medicações - como o caso dos hábitos americanos, ou o caso de muitos pacientes que, confiantes na "verdade" da ciências médicas, físicas ou químicas, não abrem mão dos psicotrópicos - representam formas de elaboração em que o drama do paciente só pode ser vivido sob o ideal da cura e do alívio. É sobre a pulsão e o corpo que, na busca do afastamento de toda e qualquer dor psíquica, o sujeitos contemporâneos demandam cuidados.

Rubens Coura, em seu trabalho sobre a Psicanálise no Hospital Geral, nos mostra como a cultura médica, e com ela a maioria das condutas psiquiátricas, buscam a todo custo eliminar a morte de seus campos de trabalho. A "fantasia onipotente de curar da morte" denota a "grande resistência contra a pulsão de morte", contra a idéia de "que ela se situe dentro do sujeito". Ou seja, exigência de supressão de qualquer perspectiva de sofrimento ou dor dirige a ética médica contemporânea. Como diz Coura, não há lugar para o homem trágico, como os gregos o concebiam. Para onipotência tecnológica da medicina, onde podemos incluir todo o afã dos novos psicotrópicos, a morte e a angústia devem ser curadas ou afastadas. Assim, o meio mais eficaz para esta alienação, para essa fuga da angústia e do sofrimento são as drogas; é a psicofarmacologia. Para que sofrer se podemos tomar um remédio e nos sentir-mos bem ?

Entretanto, se numa mão, os efeitos de uma super medicação podem ser nefastos, noutra, nos casos graves os remédios são da maior importância. Mesmo que não se explique a velha questão do paralelismo psicofísico, indubitavelmente o efeito da psicofarmacologia hoje é muito mais sofisticado do que o das melissas, arsênicos e valerianas do início do século, e isso o psicanalista não pode desconsiderar.

A diminuição da tolerância masoquista

Parece razoável supor que existam relações entre aquilo que ingerimos e nosso estado de ânimo. Os sujeitos alteram-se com o uso de muitas drogas diferentes. A ilícitas ou censuradas como a cocaína, a maconha, o álcool, o cigarro, etc, ao promover diferentes graus de dependência, escravizam os sujeitos. Também o uso de medicações combinadas com álcool, e mais, a inalação de colas, solventes e desodorantes levam os pacientes ao perigo de vida. Ou simplesmente, o café, o guaraná, a coca-cola, a camomila, o maracujá, todos de algum modo alteram a condição psíquica do sujeito, ainda que alguns não lhe ofereçam maiores riscos. A normatização das drogas na cultura possibilita ao sujeito fazer vários usos da química no corpo e no psiquismo, usos mais ou menos saudáveis, podendo inclusive confinar-se na medicação de um tratamento, tornando-o um processo muitas vezes cronificante.

Seja como for, os psicofármacos, melhor do que qualquer outra química, podem tornar melhor a vida de alguns pacientes. O uso que se faz das medicações tem um vetor muito claro na busca do alívio ou da atenuação do sofrimento, e, por esse motivo, resulta na diminuição da tolerância do sujeito à dor, de sua capacidade de elaboração masoquista. Édouard Zarifian, pergunta-se em que medida deveríamos aguentar nossas tensões e temores de fracasso, o "luto ou a dor de um amor", as tristezas e as fadigas mais cotidianas. A psiquiatria biológica não pode responder experimental e objetivamente esta questão, pois está diante de um problema ético, cultural e subjetivo, e Zarifian, ponderadamente, reconhece essa limitação. Já a psicanálise, ao problematizar o masoquismo, nos oferece uma via interessante de reflexão. O povo, que no Brasil conta com a pinga, diz: "Beber para esquecer"; ele reconhece o masoquismo no seu otimismo: "Tem que rir para não chorar", "aprende-se sofrendo", entre muitas expressões do gênero. Não se trata de defender a capacidade do sujeito elaborar suas dores, apenas porque é bom ser forte e resistente ao sofrimento, mas de constatar que a relação compulsiva, comum no uso de drogas e psicotrópicos, coloca dificuldades para o tratamento.

A idéia de que a tolerância à dor seja importante dá ao masoquismo, e ao masoquismo moral, um papel relevante na estrutura ética e subjetiva dos sujeitos. Quando debilitado, o sujeito padece de algo como uma insuficiência imunológica psíquica, para usar a expressão de Manuel Berlinck, causada pelo excesso de defesas externas ao sistema; os psicotrópicos substituem o compromisso do sujeito de enfrentar a realidade. O mal estar na cultura, e em particular na cultura norte americana, tem um grande curativo que anestesia os sujeitos, gerando um relativo conforto e/ou segurança em um bom número de casos - mas que, por outro lado, pode facilitar a adesão compulsiva ao remédio. A popularização do uso de psicotrópicos faz chegar ao consultório pacientes gravemente dependentes de alguma droga ou, simplesmente, gente que gostaria de saber se não seria melhor parar de tomar um antidepressivo, receitado por um neurologista, ou mesmo um dermatologista de confiança da família.

A medicação psicotrópica vai além da psiquiatria. Na ginecologia e na cardiologia não é raro que os médicos incluam prescrições psiquiátricas em suas clínicas, normalmente não em pacientes psicóticos. A intolerância à dor psíquica passa a ser manejada por muitos profissionais. No entanto, quando o trabalho envolve o psicanalista, a medicação tem outro eixo de admistração, o qual deve implicar o sujeito no que ele faz, deseja, diz ou imagina, para que ele elabore e domine suas angústias. Neste sentido, é conveniente dizer que a intervenção dos psicofármacos deva ser a menor possível, possibilitando o comprometimento do sujeito com suas idéias e sentimentos, de modo à criar condições do paciente fazer um uso cuidadoso das medicações, para progressivamente largá-las.

A elaboração do masoquismo moral, dos sentimentos inconscientes de culpa e vergonha, isto é, a disposição inconsciente dos sujeitos a condenar-se a alguma dor ou castigo, evita a violência desenfreada e, ajudando-nos a viver com os outros em cultura, torna-se necessária. Pela moral social introjetada o sujeito respeita e teme às exigências éticas e estéticas, das normas, leis e castigos da cultura. Essa estranha disposição, difícil de admitir e inconsciente na maior parte das vezes, é igualmente atingida pelas medicações. Embora a psicofarmacologia clínica pareça mexer na base das disposições gerais do masoquismo nos sujeitos, o masoquismo erórgeno, primário, também tocado pela química, parece mais especialmente ligado ao caso de drogas que possam ter efeitos afrodisíacos. Os pacientes perversos, tão arredios à situação psicanalítica, trazem outras dificuldades para o tratamento psiquiátrico; o uso indevido dos remédios torna-se motivo de gozo e diversão, o que impede a continuidade do trabalho. Os neuróticos, por sua vez, aderem-se à medicação por força da suposição do poder de cura e alívio dos psicofármacos.

Entretanto, a psicofarmacologia atinge o biológico produzindo efeitos que incidem, como diz Mário Pereira, "sobretudo nos processos psíquicos gerais e não sobre operações mais delimitadas". Penso que, por esse motivo, muitas vezes a mera alteração quantitativa, interferindo grosso modo na exitabilidade e na sensibilidade do sujeito, não basta para livrá-lo de sua angústia; dando a impressão de que a medicação não atingiu o sujeito. O efeito da medicação não tem o poder de alterar qualitativamente os sentimentos e as representações presentes nos conflitos dos pacientes. Não há remédio para ciúmes, para inveja, para ambição, cobiça, fúria, raiva, e assim por diante. Neste ponto, a psicanálise tem muito a oferecer. O que permite a continuidade de um tratamento é a análise dos conteúdos psíquicos e do discurso do paciente, pois é aí que os conflitos podem ganhar elaboração. Os psicofármacos de um modo geral não promovem, por si sós, formas para o trabalho de resignificação e transformação dos motivos subjetivos da angústia. A psiquiatria biológica reconhece o fato de que os remédios não curam, apenas suprimem os sintomas em quase 70% dos casos.

A alteração das intensidades pulsionais e do campo de percepção do paciente, causada pelo uso combinado de psicofármacos, em vários casos favorece a situação analítica. Quando a prescrição dos remédios é feita na mesma perspectiva do psicanalista que busca fortalecer psiquicamente o sujeito em seu consultório, implicando seus desejos no que diz e faz de sua vida, o problema torna-se menor. O alívio da dor, que o contato com a realidade causa no sujeito, possibilita o diálogo e propicia calma ou ânimo suficientes para que uma análise possa prosseguir.

Contudo, é principalmente a relação da medicação com o masoquismo moral que vale a pena sublinhar. Aí o seu impacto é maior. A maneira como o sujeito faz-se, ou não, capaz de lidar com suas angústias, seus sentimentos de culpa, suas vaidades e vergonhas, guarda relação com o desejo de ser medicado. Desejando livrar-se do sofrimento, o sujeito transforma suas dores em grandes problemas que pedem alívio imediato, permitindo ao paciente esquivar-se do confronto com seus próprios ideais e valores. O efeito dos psicotrópicos no masoquismo moral reverberam nas transferências em jogo no tratamento. Conforme a interpretação que se faça da dor que o paciente sente, e do quanto ele é capaz suportá-la ou tolerá-la, modifica-se a medicação, ou não.

As fantasias e expectativas sobre o remédio e sobre a medicação recaem sobre a figura do médico, no qual os pacientes reconhecem quase sempre uma autoridade no assunto. Muito das propagandas e dos discursos sobre o remédio acompanha o intervalos entre as consultas psiquiátricas, alimentando a esperança do sujeito de ver-se livre do trabalho de análise. É do médico que o paciente espera obter um alívio mais rápido do sofrimento, mais ou menos momentâneo, mais ou menos intenso, e apenas com pílulas. A promessa de bem-estar trazida pelos psicotrópicos, reativa desejos infantis ligados às diferentes interdições impostas pelos pais. O que a criança não pode obter com um, ela tenta conseguir com o outro. Neste sentido, não é incomum que o paciente trame entre o psiquiatra e o psicanalista de tal modo que, a demanda pela medicação tenda a crescer e a capacidade de suportar angústias tenda a diminuir. Um trabalho bem articulado entre o psicanalista e o psiquiatra pode inverter esse processo.

Zarifian fala da importância de uma "boa tolerância" ao psicotrópicos. Para ele, aparentemente, a aceitação adequada dos "medicamentos psicotrópicos pode conduzir o paciente da procura de um tratamento a procura de um bem-estar existencial".

Se interpreto corretamente; o uso tolerante do remédio, em não sei qual boa medida, deve levar o sujeito a abandonar o tratamento medicamentoso, e buscando seu próprio bem-estar, encontrar recursos para suportar as pequenas angústias de viver, o mal-estar que se vive na cultura. No entanto, o significado de "a boa tolerância" pode variar muito para cada um. Seja como for, a tolerância que faz problema aqui é, antes de tudo, a tolerância à dor, e depois à medicação. É a intolerância à dor que fragiliza os pacientes, e o tratamento não deve contribuir para isso. Que o sujeito necessite cada vez mais de remédios, ou apenas uma dose por dia toda sua vida, enfim, que sua tolerância ao efeito da medicação seja tal ou tal, é uma questão diferente da de saber o quanto determinado sujeito tolera sofrer. O aumento da tolerância à medicação parece corresponder a diminuição da tolerância a dor, e isso pode gerar uma progressiva insuficiência dos recursos psíquicos do sujeito para lidar com a angústia e o sofrimento. É importante que o psiquiatra conheça e cuide dessa questão junto com o psicanalista.

Se de um lado, a análise resguarda a intimidade e a complexidade da vida do paciente, trabalhando na contramão da comodidade e do prazer muitas vezes paliativo dos psicotrópicos, de outro, a medicação pode figurar como uma bóia salva vidas para quem precisa aprender a nadar. É uma tênue linha pela qual correm e deslizam as queixas do paciente, de um ao outro profissional, perguntando-se pela saída de suas angústias, pelos rumos de sua vida, procurando estar melhor.

O desejo e a medicação na transferência

É quase desnecessário falar da importância de um bom entendimento entre psicanalistas e psiquiatras. Entretanto, sendo que a maioria dos psiquiatras pratica diferentes tipos de psicologias (sobretudo, fenomenológicas e comportamentais) vale a pena sublinhar uma questão sobre o trabalho psicanalítico junto à psiquiatria e a psicofarmacologia. Talvez a compreensão da necessidade dos sujeitos suportarem determinados limiares de angústia e sofrimento seja uma referência interessante para o psicanalista e o psiquiatra. Entre os dois é sempre melhor que haja acordo quanto a condução do tratamento, mas também é favorável ao trabalho analítico quando ambos representam ideais minimamente próximos, quando ambos apresentam estilos de algum modo compatíveis.

Na clínica, podemos facilmente ver os pacientes apresentando suas demandas de modo ligeira ou completamente diferentes ao colega que os medica, e vice-verça. Ainda que entre o psiquiatra e o psicanalista deva ser mantido um certo sigilo, é verdade que sempre podemos saber um pouco mais sobre como nosso colega pensa. No entanto, entre ambos, nem sempre é igual a percepção do quanto o paciente pode ainda aguentar sem determinada medicação. As prescrições podem diferir. Em geral isso acontece, pois, na tranferência estabelecida com o médico, o paciente tende a convencer o psiquiatra de que sofre mais do que antes, ou corre algum perigo que não estava por vir. Felizmente, muitos médicos compreendem a dor que o paciente sente e o medicam adequadamente. Persuadidos de que a angústia do paciente piora, os psiquiatras alteram a medicação, porém, isso nem sempre coincide com a visão do psicanalista, para quem, por exemplo, o paciente pode estar dissimulando algum problema de sua vida ao buscar mais remédios.

Nestas situações triangulares multiplicam-se as representações em jogo na tranferência. O paciente vai ao consultório dos dois, conhece o médico da dupla ou da equipe, e transita dentro dos limites de sua vida social e psíquica depositando expectativas importantes nestes profissionais. O sentido do tratamento produz-se em uma malha imaginária pela qual o paciente, esperamos, possa envolver-se com os acontecimentos e dados de sua vida, conduzindo seu próprio bem-estar. Porém, ele pode confundir-se na ambivalência entre os ideais colocados pelos dois profissionais, e acabar por não reconhecer quem ele supõe, de fato, saber a verdade sobre seu caso. É neste sentido que o médico-psicanalista vê-se em ótima posição para lidar com a transferência; a malha imaginária é menor e pode ser mais fácil trabalhá-la na tranferência, pois não há de fato uma triangulação.

Tocamos um terceiro problema, um problema ético. Até que ponto o analista deve esperar que os sujeitos sejam capazes de suportar a dor? Qual o sentido da expressão da angústia e da relação do paciente com a dor? Como deveríamos compreender o sofrimento do sujeito? Seria possível uma visão mais uniforme entre os profissionais envolvidos no caso? E, até que ponto isso seria desejável? Na tranferência, o paciente vê no médico diversos ideais, e o mesmo acontece com o psicanalista. Talvez pudéssemos dizer que, em geral, o médico é alvo de um ideal de cura ou alívio necessários, ao passo que, o psicanalista é alvo de um ideal de controle ou de processo complementar. A menos que o sujeito esteja muito desligado da realidade que compartilhamos, também o modo como as angústias de castração e as censuras são pressentidas nas duas relações nunca é exatamente o mesmo. Normalmente o paciente expressa sua dor conforme percebe seu interlocutor e isso orienta o emprego das medicações. Mas, qual deveria ser essa orientação? Aqui, o masoquismo moral na tranferência pode ser eticamente discutido em face dos psicotrópicos.

Quando o psiquiatra e o psicanalista têm tolerâncias semelhantes em relação a dor que assistem no paciente, então, o paciente ver-se-á diante de castrações e limites próximos e compreensíveis. Isto contribui para que ele possa elaborar suas dores e seus traumas, implicando-se em suas fantasias e conhecendo suas disposições masoquistas, de modo a fazê-las subexitir apenas no que for necessário. A sintonia dos profissionais facilita a percepção, no tratamento, do modo como as culpas, vergonhas, lamentos e temores produzem efeitos análogos na tranferência junto aos dois. Assim, por menos que os profissionais troquem informações sobre a vida dos pacientes, o tratamento poderá caminhar no sentido de uma maior implicação do sujeito com sua própria vida mental, com a produção de suas angústias e suas dificuldades. O conhecimento dos desejos inconscientes ligados aos castigos e exigências de sofrimento que o sujeito se impõe, quando não é "obturado" pelo remédio, pode favorecer o controle da angústia, sugerindo uma orientação para o tratamento conjunto.

Como já indiquei na primeira parte desse ensaio, penso que o problema não é o de saber qual a tolerância ao remédio, mas sim, qual é a tolerância do sujeito à dor. Esta é a questão que convém os profissionais colocarem: quanto o sujeito pode suportar-se? Assim, a orientação comum que vale a pena dar ao tratamento aponta para a responsabilidade do sujeito junto a sua vida psíquica. Perguntando-nos, no sentido lacaniano do problema, se o paciente age conforme o desejo, podemos trabalhar para comprometer o sujeito com a verdade de seus desejos inconscientes, por mais estranhos que eles pareçam. É à dimensão trágica da vida pulsional que o paciente não pode furtar-se, e neste particular, é de grande valor a consonância ética, e de certo modo estética, entre o psiquiatra e o analista. Neste ponto, as divergências dos profissionais retardam o tratamento, podendo mesmo complicá-lo. Porém, isso não significa que seja impossível darmos andamento a um análise se o psiquiatra pensa diferente; o processo apenas fica dificultado. Nestas situações, como em todas, o médico e o remédio são considerados como mais um elemento da vida do sujeito. A consulta psiquiátrica, o uso do psicotrópico e a diferentes opiniões do médico são inseridas na trama dos pensamentos e sentimentos que fazem parte do conflito do paciente.

Acredito que quando não é mais possível incluir o psiquiatra e o remédio no conjunto das representações analisadas no tratamento, então, tamanha é a resistência do paciente que, absolutamente, ele não está em análise. Pelo contrário, ele deve estar prestes a abandonar o tratamento e, talvez, seguir apenas com os psicotrópicos psiquiátricos. Ou ainda pode acontecer do nível dos medicamentos receitados ser muito diferente daquele que o psicanalista recomendaria, chegando mesmo a inviabilizar a análise, por exemplo, pelo excesso de tranqüilizantes e a lentificação geral do sujeito, o que pode aproximar-se de uma impregnação. Nestas condições, se não existe maior comunicação entre os profissionais, o psicanalista está na posição de quem atende, quase pode-se dizer, a um drogadito, dependente dos psicotrópicos e dos psiquiatras.

Sobre a toxicomania Decio Gurfinkel diz: "o objeto-droga torna-se uma necessidade, e não mais um objeto de desejo como é o caso de um uso não adtivo"; o uso da droga passa a ser da ordem de uma exigência necessária, como se não houvesse aí alguma escolha do sujeito. Mas não será este o caso de muitos pacientes medicados? Até que ponto a necessidade de psicotrópicos nos tratamentos implicaria um uso adtivo do objeto-droga? É difícil responder a essas perguntas. Talvez as respostas possíveis sejam contingenciais, dependendo do tipo de droga, da cultura e do sujeito. Dizer se o uso de determinado psicotrópico é uma virtude ou um vício é algo que só faz sentido quando falamos de algum caso particular. Porém, é provável que, como sugere Gurfinkel, colocando a medicação no lugar de objeto de desejo, isto é, minimizando sua necessidade e pondo em relevo sua condição de objeto eleito pelo sujeito, estejamos nos afastando de um uso adtivo e cronificante dos remédios.

Porém, se podemos falar de drogadição aqui, ela é lícita e seus riscos estão relativamente controlados. De um ponto de vista psicanalítico, estas drogas, enquanto objetos do desejo do paciente, não levanta maiores objeções, inclusive por que apresenta-se como algo mais ou menos ideal e aceito pela cultura. O discurso psiquiátrico procura livrar-se de seus estigmas, dos preconceitos ligados a idéia de loucura psiquiátrica, e representa o objeto-remédio como algo trivial e legal, defendendo o estatuto desejável das drogas médicas. É isso que captura a população norte americana e os muitos sujeitos no mundo que preferem ser atendidos psiquiatricamente. Contudo, seja no caso da drogadição ilícita ou da psiquiátrica, a relação do sujeito com a droga torna-se uma relação de dependência, tendendo à compulsividade e à cronificação. Seria interessante imaginar o que aconteceria no caso de um colapso da indústria farmacêutica nos EUA. Possivelmente um impacto psíquico muito maior do que o viveram os alemães do leste com a queda do muro de Berlim.

Mesmo se a cultura e o meio psiquiátrico hegemônico defendam uma "boa tolerância" às medicações, o psicanalista está em condições de lidar com esse fenômeno desde um ponto de vista subjetivo. Enquanto o aumento da tolerância à determinado psicotrópico caminha para a dependência e a cronificação, o analista pode trabalhar na tranferência junto com o psiquiatra, mas sobretudo, deve analisar as convicções do paciente em relação à necessidade, muitas vezes imperativa, dos medicamentos - o que pode ou não acontecer em sintonia com o psiquiatra. A droga não deveria ser necessária, mas complementar ao tratamento.

No que diz respeito ao uso de psicofármacos, é a implicação do sujeito em seus desejos de alívio e prazer ligados ao objeto-droga, e ao poder médico, que o psicanalista busca durante o tratamento. Quando o paciente não consegue suportar as angústias de viver, ele deseja uma receita que o desobrigue do enfrentamento e da dificuldade dessa conquista, como se sua condição não guardasse qualquer relação com seus desejos. É neste sentido que, ao procuráramos romper a necessidade, até biológica, do sujeito pela droga, devemos trabalhar para diminuir a tolerância ao psicotrópico e aumentar a tolerância à dor psíquica. Quando já sabemos nadar não precisamos mais de bóias, e podemos cair na água sem que o medo, a angústia ou o desespero nos leve a morrer afogados.

S.P. Novembro. 1999 - Felipe Lessa da Fonseca