O psicanalista René Major, que fará palestra no Rio no dia 30, defende uma maior participação da psicanálise nas questões contemporâneas

O inconsciente sociopolítico

Leneide Duarte-Plon
Free-lance para a Folha , de Paris

O psicanalista francês René Major não evita o debate político. Ao contrário, tomou posição contra a guerra no Iraque ao organizar, em fevereiro, em Paris, o debate "Por que a Guerra?", com Jean Baudrillard, Jacques Derrida e Alain Gresh, do "Le Monde Diplomatique". Major defende uma participação dos psicanalistas no mundo contemporâneo, a exemplo de Freud, que, segundo ele, "soube articular o inconsciente como uma produção do social e do político".

Presidente da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise, René Major foi o idealizador dos Estados Gerais da Psicanálise, que se reuniram pela primeira vez em Paris, em julho de 2000.

O segundo encontro desse fórum de psicanalistas do mundo inteiro será no Rio de Janeiro, de 30 de outubro a 3 de novembro, e Major estará presente na abertura (informações pelo site http://www.estadosgerais.org/). Na entrevista da qual se publicam trechos a seguir, ele fala sobre o evento.

Por que o senhor criou os Estados Gerais da Psicanálise?
O principal motivo veio do esquecimento, do recalcamento e mesmo da ignorância intrínseca da política no movimento psicanalítico. A história da psicanálise no Brasil teve um papel desencadeador dessa tomada de consciência. Na realidade, foi no lançamento do livro de Helena Besserman Vianna, "Não Conte a Ninguém" (ed. Imago), em 1997, em Paris, e do qual fiz o prefácio. No lançamento, foi decidida a convocação dos Estados Gerais. Tivemos que tomar conhecimento dos sintomas que podem produzir na realidade a implicação desconhecida da dimensão política na transmissão da experiência analítica e nas instituições psicanalíticas. Os sintomas que se manifestaram no Rio não eram apenas locais ou regionais, mas internacionais, pois diziam respeito a todo o movimento desde a Segunda Guerra. Essas graves vicissitudes da história são muito mais alarmantes quando se leva em conta que Freud não se contentou em descobrir as leis do funcionamento psíquico inconsciente. Ele soube articular o inconsciente como uma produção do social e do político. Existe uma resistência enorme em reconhecer que ele é um grande pensador da política, como testemunham vários de seus trabalhos, desde a "Psicologia de Massa" até "Moisés e o Monoteísmo".

Qual o papel da psicanálise e do psicanalista no mundo contemporâneo?
O psicanalista deve estar presente na reflexão mais aguda dos problemas da sociedade contemporânea -quando se trata do direito à vida, à liberdade de expressão ou à dignidade do indivíduo. Ele se preocupa com isso na prática cotidiana. Deve, pois, interessar-se pelas transformações necessárias do direito, nacional e internacional, pelas questões do poder, de soberania e de crueldade que os conflitos envolvem, pelas guerras, pelas destruições, participar de tudo o que atua em favor da democracia digna desse nome. Estar vigilante para o que pode manchar a democracia, feito em seu nome para esconder motivos pouco nobres. Acabamos de ver isso nas mentiras da coalizão que interveio no Iraque, em relação às ameaças iminentes que este país representaria para o povo americano e das armas de destruição em massa que ele possuiria. Essas "mentiras" falam de uma outra verdade.

O senhor organizou o debate "Por Que a Guerra?", com Jacques Derrida, Jean Baudrillard e Alain Gresh, em Paris, um pouco antes da guerra no Iraque. Esse foi o título dado por Freud à sua correspondência com Einstein, publicada em 1933. Por que os homens fazem a guerra?
Esse debate inaugurou o Instituto de Estudos Avançados de Psicanálise, para atualizar o pensamento de Freud e confrontá-lo com pensadores de nosso tempo. Não posso aqui resumir a forma, a complexidade e a profundidade desse debate, do qual haverá a transcrição no site. Mas eu diria, num prolongamento da resposta de Freud a Einstein, que os motivos geralmente levantados para a guerra, que frequentemente exaltam o pior nacionalismo até o sacrifício de si mesmo, são apenas álibis para esconder a sede de poder, os interesses econômicos e o gozo que a agressão e a destruição proporcionam. Os fatos não cessam de confirmar isso. Além dos milhares de mortos civis nos bombardeios intensivos e inúteis no Iraque, e os que continuam a fazer todo dia as bombas de fragmentação deixadas no país, a superpotência, que se pretende civilizadora, não teve nenhum cuidado de impedir a pilhagem dos tesouros da Biblioteca de Bagdá e do museu arqueológico, quando seria suficiente um tanque e alguns soldados para impedi-lo. Muito mais fácil pareceu-lhe preservar os complexos petrolíferos. Isso demonstra o desprezo dos invasores pela única proteção contra a barbárie, que é a cultura.

O senhor escreveu o livro "Da Eleição - Freud diante das Ideologias Americana, Alemã e Soviética" (ed. Aubier). Como Freud veria o mundo atual?
Freud o antecipou. Em "O Futuro de uma Ilusão" ele afirma que cada povo volta aos "primórdios históricos da idéia de Deus" quando pretende representar a justiça ideal, a que recompensa o bem e castiga o mal. E ele compara o povo americano ao povo eleito, àquele que se acredita escolhido por Deus: "Bem mais tarde a piedosa América devia demonstrar a pretensão de ser "God's own country'". Em sua cruzada contra os infiéis designados como o "eixo do mal" [Irã,Iraque e Coréia do Norte], George W. Bush se alia à tradição e à retórica que atravessa toda a história americana, mas sobretudo à herança daquele que quis ser o pai da Sociedade das Nações, Woodrow Wilson. Em 1917, Wilson já havia iniciado a globalização da economia liberal fazendo os EUA entrarem na guerra e pretendendo que se cumprisse seu desejo de que, "pela Providência de Deus, uma luz nova se levante na América e projete seus raios da liberdade e da justiça bem longe, sobre todos os mares e mesmo sobre as terras que estão em trevas e se recusam a vê-lo". Ele terminava seu último discurso exaltando a cruzada: "Nossos homens foram cruzados e o mundo inteiro os considerou assim e a vitória deles levou o universo a acreditar nos EUA como não acredita em nenhuma outra nação do mundo civilizado". Freud consagrou ao presidente Wilson um importante estudo que tem até hoje impressionante atualidade.

O que um fórum como os Estados Gerais pode trazer para a psicanálise?
Os Estados Gerais de julho de 2000 pretendiam fazer uma reflexão coletiva sobre o estado geral da psicanálise, tanto na prática quanto em suas relações com a filosofia, o direito, o social e o político. A convocação aos psicanalistas de todas as orientações teóricas não pretende reagrupá-los numa única instituição, mas pôr à prova da discussão e da explicação rigorosa os diferentes códigos de linguagem que se desenvolvem, no seio de cada instituição, sobre questões fundamentais. A hospitalidade, tanto para com o que é familiar quanto para o que é estranho, é a razão de ser da psicanálise. Mas a "transversalidade" diz respeito também ao que outros modos de pensamento, como a filosofia ou o direito, pedem como explicação à psicanálise, a seus conceitos, a suas instituições para realizarem com ela as transformações futuras da ética, do direito e da política. Foi por isso que convidamos para os Estados Gerais em 2000 um jurista internacional, Armando Uribe, do Chile, que, logo depois de 1973, demonstrou o papel do governo americano no golpe de Estado militar e a função do fantasma Pinochet na alma chilena. Por sua vez, Derrida frisou que a psicanálise é o nome do que, sem álibi teológico ou outro qualquer, se voltaria para o que a crueldade psíquica tem de mais característico. Ele mostrou o que muitos psicanalistas esquecem: quando Freud falava do que não funciona na globalização já em curso no seu tempo, é em torno da palavra "crueldade" e do sentido da crueldade que sua argumentação se faz política e, na sua lógica, o mais rigorosamente psicanalítica.

Publicado no Jornal A Folha de São Paulo, Caderno Mais, domingo, 12 de outubro de 2003