|
Fórum Social Mundial
25 a 30 de janeiro de 2001
"Psicanálise e Mal-estar na globalização"
O papel da escrita na elaboração da experiência
Do corpo ao texto
Beatriz Mecozzi
O tema desta oficina, surgiu de um projeto tripartite, apoiado no papel da escrita para a organização da experiência. Um de seus itens é uma oficina de escrita para adolescentes mulheres em situação de risco social- Do corpo ao Texto, a qual consiste num projeto de escrita com o intuito de promover mudanças subjetivas, capazes de reposicioná-las diante de sua realidade.
Outra interface do mesmo projeto é uma outra oficina de escrita: para psicanalistas interessados em discutir o ato de escrever sua escuta, assim como a importância dessa ação na sua formação permanente em psicanálise e na cura psicanalítica.
O terceiro passo do projeto é uma tese de doutoramento em psicanálise, no Núcleo de Psicanálise do Programa Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A tese postula a escrita enquanto ação indispensável da experiência analítica; ou seja, calcada na experiência adquirida a partir das duas oficinas acima propostas, pretendo inserir a escrita da escuta no campo analítico, de maneira que o famoso tripé sobre o qual se apoia a formação de um analista - análise pessoal, estudos teóricos e supervisão clínica, transforme-se num confortável "tamborete".
No entanto, o recorte escolhido para apresentação neste Fórum foi trazer, apenas, os primeiros passos de uma parte do projeto como um todo, ou seja a experiência da interlocução com Esmeralda Ortiz.
Do corpo ao texto uma oficina para adolescentes mulheres, como já foi dito acima, apoia um de seus eixos principais na teoria e na prática psicanalíticas.
Nesse sentido, a proposta busca abordar a escrita enquanto organizador fundamental daquilo que em psicanálise denominamos "mundo pulsional", ou seja a experiência sensível e inominável. Porque acreditamos no papel que as palavras desempenham na reconstrução do mundo sensível, tornando-o inteligível e, por essa razão, menos hostil, reconhecemos que a escrita está no coração da aventura psicanalítica, enquanto oportunidade para teorizar, tentar recolocar nossa fantasia de maneira a desenclausurá-la da relação, necessariamente, ilusória, mantida por nossas questões mais profundas, nossos ideais, enfim, pelos conteúdos advindos de uma das regras fundamentais do fazer psicanalítico - a associação livre- ou seja, "falar de qualquer coisa" para alguém dentro de um campo transferencial.
Por tudo isso, a participação de Esmeralda Ortiz, é muito importante para o projeto como um todo, uma vez que ela é mulher adolescente e autora de um livro que fala, de maneira muito peculiar, sobre o papel da escrita na sua vida.
Ao iniciar seu livro "Por que não dancei?" com a descrição de um banho de chuveiro, Esmeralda transporta o leitor para sua lembrança do banho de chafariz na praça. Essa escritora, desde a paixão pela primeira cartilha, é capaz de construir frases tais como: "eu gostava de ficar no meio do lixo dos outros", "eu bebia daquela água com cheiro de terra molhada...esperava secar....ficava um monte de terra e eu comia gostoso", "na minha cabeça, eu estava mascando normal", "eu era presa dentro de mim".
Assim, através da expressividade abrupta própria da adolescência, Esmeralda Ortiz demonstra não só que a escrita assumiu valor de saída para os aprisionamentos de sua existência, assim como comprova a tese de que a escrita - "a coisa gráfica" - utilizada enquanto ferramenta para o registro do percebido, é capaz de fixar pontos de referência na realidade exterior. Tal como no parto, através de sua escrita, Esmeralda deu vida a um corpo externo, de duração, supostamente, mais duradoura do que o corpo gerador. Através de seu texto, Esmeralda permite uma aproximação do mistério do sujeito que procura lograr um pouco mais de sobrevida, mediante a percepção objetiva, através do pensamento que a escrita lhe restitue para avançar na construção de um sentido novo, o qual a libertou do aprisionamento de suas repetições.
Tudo se passa como se a escrita de Esmeralda obedecesse à exigência de figurabilidade, condição da representabilidade, ou seja a urgência em dar forma ao percebido. Através de seu texto Esmeralda ensina que a escrita sempre foi sua ferramenta de "desabafo" capaz de marcar sua experiência. Ela é clara no texto citado, uma vez que nele busca liquidar alguns restos de sua vida para mudar de rumo, através de um projeto de escrita-guia em seus deslocamentos pela paisagem urbana caótica de São Paulo, na qual estavam todas as iscas imaginárias do seu tempo, a aventura, a música, o grupo, as brincadeiras, o amor, a violência, o sexo, as drogas. A escrita, porém, sobrepõe-se a tudo e ensina-lhe a existir num mundo que tranforma em realmente seu através de seu livro.
Sartre, por exemplo, conta que aos sete anos, quando aprendeu a ler, logo depois, percebeu que, no mundo das palavras e das coisas, nada o perturbava mais do que ver seus "garranchos trocando pouco a pouco seu brilho de fogos-fátuos pela pálida consistência da matéria: era a realização do imaginário. Collhidos na armadilha da nominação, um leão, um capitão do Segundo Império, um beduíno introduziram-se na sala de jantar; restavam aí cativos, para sempre incorporados pelos signos; acreditei ter ancorado meus sonhos no mundo, pelas arranhaduras de uma ponta de aço".
Se o menino que ancorava sonhos na ponta da caneta, se intrigou com a potência significadora das suas garatujas, eu, psicanalista, procuro o trilho para retomar os traços marcados em algum lugar psíquico? Mas, como recuperar os caracteres inscritos no pensamento-sonho, para convertê-los em ressignificações vigorosas, sem grafá-los numa escritura plena de desejo? Ou seja, como retomar o escutado e reestruturá-lo sem esse ato? Diante de uma resistência muito tenaz, por exemplo, que levou à ruptura da análise, acompanhada da impossibilidade de qualquer escuta do analista, o que fazer? Como entender o fracasso sem o grifo das minhas garatujas? Como designá-lo, a fim de que não se transforme num fantasma intransponível? Seria mais, ou menos arriscado atravessá-lo, amparada na escrita? E se assim fosse, seria possível evitar a sedução da narrativa, em luta numa encruzilhada entre o imaginário e o real, para sobrepor o impasse de uma fala em análise, que se interrompe de maneira brusca? E haverá, no meio dessa dissonância, outra âncora, além da ação escrita? Além de qual território, alternativo ao texto pulsionado, assentar minhas anotações? Como encarar o resultado de uma escuta atenta aos buracos da fala, a fim de que o não-dito possa ser falado?
São muitas as razões para que, analista, eu não escreva. Se tenho a escuta, para que a escrita? Não me bastaria a solidão de uma escuta silenciosa? Por que preciso contar aos outros o que faço com aquilo que escuto da poltrona e que vem da fala produzida no divã? Se não basta transcrever o discurso que escuto, se preciso trabalhá-lo mesmo sabendo que a palavra nunca dá conta da representação-coisa sempre irredutível, por que escrevo? Por que necessito desse tempo de escrita em que amarro presente, passado e futuro, e, sobretudo, busco costurar "a sintaxe apreendida e utilizada pela criança" na fala de meu analisando? Qual a função da escrita advinda desse discurso que se desenrola na sessão, dessa "tessitura de significância própria da palavra analítica....modelo forte do humano de acordo com o qual a linguagem não está cortada do corpo, e o Verbo pode, ao contrário, tocar a cada instante a carne - para o bem e para o mal?" Quem sabe? Talvez, somente através dessa escritura particular, pessoal e única eu consiga elaborar a pressão exercida pela dúvida, diante do estranho familiar surgido dos "umbigos" do meu percurso.
Diante deles só resta escrever? E, se assim for, que o texto ofereça janelas para cenas, entradas de imagens. E, então, que seja de leve, arranjando as palavras na página sem muita clareza, nem cálculo de valor, para que o sentido seja dado a posteriori. Mas, escrever para quem? Para mim, apenas? Não. Para mim e para os outros que buscam construir uma escrita a partir da escuta, e processam a angústia diante da palavra perdida, num projeto de texto. Para aqueles cuja a experiência com a palavra escrita é, também, "sacudir o sentido do mundo", como lembra Roland Barthes em Sur Racine, Paris, 1963, Editions du Seuil.
|
|