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Fórum Social Mundial1
Robson de Freitas Pereira
CENA 1
Pai passeando com os filhos pelo Parque da Harmonia na véspera da abertura do Fórum Social Mundial. Barracas sendo montadas, movimentação de jovens, índios e até os sem-teto moradores habituais do parque. "Pai, vamos acampar também? A gente traz um lanchinho, travesseiro e faz um acampamento". A frase da menina de três anos, junto com a visão de uma família com bebê de colo, arrumando sua barraca, trouxe à memória as primeiras cenas do filme Woodstock, com fundo musical de Crosby, Stills, Nash e Young (o mesmo Neil Young do Rock in Rio III) cantando "Long time gone".
CENA 2
Ainda na véspera da abertura do Fórum. Homem de meia idade comenta com seu "personal trainer": "Agora mesmo é que a nossa cidade está perdida. Isto aqui vai encher daqueles baderneiros".
Quem teve oportunidade de participar do acontecimento centralizado na PUC, mas com oficinas e manifestações por vários lugares da cidade, pôde presenciar um acontecimento inédito. As idéias, a juventude, a emoção no ar, materializaram uma força de reação contra o fantasma do discurso único, da pasteurização da vida cotidiana e da transformação do sujeito em consumidor passivo frente a uma tela. Como se a base subjetiva de nossa cultura, o individualismo, pudesse ser reduzida ao b\inômio a cada homem seu computador, a cada sujeito seu objeto de consumo preferido e teríamos a felicidade.
A polifonia de discursos, cores e propostas reagiu contra esta promessa de felicidade advinda do consumo controlado e da uniformização. A convocação internacional e a presença de diversas ONGs e entidades de diferentes origens e propósitos colocaram Porto Alegre no cenário internacional de uma forma inédita. Rompendo com as duas formas caricatas de apresentação do Brasil: ou o lugar do exotismo (futebol, mulata e carnaval) ou o país do assassinato das florestas e das crianças. A capital gaúcha e o Brasil, por extensão, podiam abrigar, sediar um encontro cujas proporções surpreenderam até mesmo seus organizadores. As pessoas e grupos preocupados em trabalhar contra os efeitos perversos do capitalismo, e sua forma mais atual conhecida como neo-liberalismo, tiveram enfim, um foro onde a tônica deveria ser a discussão e apresentação de propostas, e não somente os atos de protesto. A tentativa era avançar a partir das manifestações de Seatle, Davos ou Praga.
O leque de convocação era tão amplo que até os psicanalistas se fizeram presentes. Ainda há quem se surpreenda com o fato da psicanálise estar vivamente interessada em contribuir para uma análise do sintoma social e, simultaneamente, dialogar com outras áreas do conhecimento a respeito de suas concepções e práticas. A inscrição de duas oficinas talvez tenha servido para ajudar neste trabalho de articular dois termos diferentes, porém indissociáveis: o individual e o coletivo, o social e o subjetivo. Pode-se afirmar que o interesse não é novo. Desde a década de 20, do século passado, Freud já escrevia sobre suas preocupações com a "Psicologia das massas", "O futuro de uma ilusão", ou mesmo "O mal-estar na cultura".
Assim, um atelier sobre "O valor simbólico do trabalho e o sujeito contemporâneo" e outro sobre "Mal-estar e globalização" abriram espaço para que psicanalistas gaúchos, de várias cidades do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Salvador, entre outras) e mesmo de países como Argentina e Espanha pudessem falar e escutar sobre seu trabalho específico e suas interrogações sobre os efeitos do mal-estar em nossa vida cotidiana e, conseqüentemente em nossa subjetividade.
Aqui, poderíamos retornar às duas cenas relatadas inicialmente. Frente a uma situação nova, o sujeito contemporâneo (este que nasceu e vive sob a égide do neoliberalismo) apresenta suas armas, suas referências, aquelas que podem servir de respostas - pelo menos provisórias - para enfrentar a angústia do novo. Um novo que, justamente pelo seu caráter de ineditismo, precisa ser antecipado, sonhado. Para o melhor e para o pior. Nossos ideais abarcam tanto nossas mais caras utopias - a atualização de um mundo mais solidário e pacífico - como os mais terríveis pesadelos - o retorno dos mortos-vivos e do fantasma da baderna e dos "comedores de criancinhas" mostrando os dentes.
Um compositor popular já cantou que "é mais fácil mimeografar o passado que imprimir o futuro" (Zeca Baleiro). O trecho da canção "Minha Casa" consegue sintetizar poeticamente a complexidade do que tentávamos ilustrar. Os pais de hoje vão ter que ensinar seus filhos a acampar, fazendo o luto da década de 60. Assim como os cidadãos que querem segurança e tranqüilidade para trabalhar (quem não quer?) vão ter que se enfrentar com sua própria responsabilidade e fragilidade. A dualidade entre o bem e o mal pode nos apaziguar momentaneamente, mas não serve para sustentar um projeto a longo prazo.
O fato dos psicanalistas terem conseguido participar foi um sucesso, mesmo com a improvisação e o pouco tempo para organizar suas intervenções. Sua proposta de dialogar faz parte do reconhecimento de que hoje é impossível qualquer forma de conhecimento ser detentora da verdade. Seja a respeito do sofrimento mais íntimo, seja a respeito da iniqüidade social. Isto coloca um problema, dentro os tantos de nossa atualidade: como reconhecer que um movimento novo coloca dimensões e questões cujas conseqüências não podem ser avaliadas antecipadamente. Ao contrário, exige suportar e trabalhar este tempo de compreender que vai além do instante do evento. Um dos problemas é que vivemos um momento de exigência de respostas velozes, quase instantâneas.
Outro ponto é que se descolar das imagens de certos ideais pretéritos implica um duplo movimento: reconhecer que nossos referenciais do passado estão presentes e que é inevitável passar por eles. Mas atravessar requer um esforço para não ser saudosista e, simultaneamente, não ficar preso na exigência de fazer algo completamente original, tão original que dispensaria qualquer genealogia. As ficções científicas do computador que se rebela contra o homem (vide HAL-9000, de 2001 Uma odisséia no espaço) ou do clone que se reproduz vão nesta direção.
Em suma, para analisar um sintoma é preciso reconhecer o quanto fazemos parte, o quanto somos efeito de suas formações. Freud precisou identificar-se com as histéricas para poder lhes dar voz e inventar a psicanálise. Lacan, assumindo a filiação freudiana, redescobriu a importância dos discursos na estruturação da subjetividade moderna. Os atos de palavra também têm efeitos sobre o corpo. A ação concreta é indissociável de um discurso que a sustente. Vamos precisar trabalhar bastante para que o próximo Fórum, em Porto Alegre, seja uma repetição com diferença. Neste sentido de que o desejo se sustenta com relação a uma falta e não da exclusão e da completude.
1 Texto originalmente publicado no Jornal Zero Hora, Caderno de Cultura, 03/02/2001.
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