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Psicanalistas, um esforço a mais
Conferência do filósofo Jacques Derrida na abertura dos Estados Gerais da Psicanálise é lançada em livro na França
ÉTATS D'ÂME DE LA PSYCHANALYSE: L'IMPOSSIBLE AU-DELÀ D'UNE SOUVERAINE CRUAUTÉ
Jacques Derrida
Galilée, 96 páginas
125 francos
MICHEL PLON
Tradução de Leneide Duarte
Na trama complexa da obra de Jacques Derrida, se há um fio que nunca se rompeu - apesar da tensão a que o filósofo submeteu-a nos últimos 30 anos - foi aquele que a liga ao pensamento psicanalítico, fonte da fecundidade e da exigência sempre mantida de uma reflexão em alerta permanente cujo termo desconstrução, tendo-se transformado em palavra-símbolo, por força de repetição, esgota-se em restituir a essência.
Jacques Derrida veio, mais uma vez, interpelar mais que questionar a psicanálise, dirigindo-se no mês de julho deste ano a psicanalistas reunidos dos quatro cantos do mundo para responder à convocação de René Major, para os Estados Gerais, no impressionante cenário do grande anfiteatro da Sorbonne. O filósofo ressaltou o ineditismo do encontro, de uma originalidade vertiginosa, levando a refletir tanto sua origem quanto sua destinação, uma espécie de loucura que, por si só, inspirava um misto de respeito e intransigência. O filósofo acreditava, e não fazia mistério, que o evento estava condenado - seja pelo apelo ao significante seja pelo apelo à história - a inscrever-se entre um antes, uma crise e as doléances que se seguem, e um depois, a revolução e seus sobressaltos do terror, isto é, neste implacável registro da política que não deixa de ultrapassar o curso dos princípios, tanto o da realidade quanto o do prazer para atingir depois os terrenos movediços e glaciais da pulsão de morte.
Respeitoso em sua intransigência mas também intransigente no respeito que demonstrou em seu discurso, Jacques Derrida lançou uma advertência: sem alibi. Em outras palavras e entre outras coisas, é à psicanálise e unicamente a ela que ele falará, pois ela é suscetível de ouvir a advertência da qual ele se faz intérprete. A expressão sem alibi participa, em seus movimentos lancinantes, do perfil mahleriano dessa conferência: o exame da crise, de suas projeções apenas esboçadas, deve-se efetuar na recusa de toda forma de fuga ou de disfarce, sem alibi, condição draconiana cuja menção por si só leva à idéia de crime e a esta temática da crueldade humana, crueldade sangrenta e psíquica, da qual somente a psicanálise poderia, deve, sem alibi, pensar a impossível superação.
Em crise consigo mesma, crise interna, a psicanálise também está em crise com este exterior, a sociedade, que ela contribui, ao mesmo tempo, a lançar na crise: o homo psychanalyticus incomoda e a mundialização sob todas as suas formas, econômica, jurídica, científica, tecnológica e até mesmo ética não cessa de desdobrar novos ardis para erradicá-lo. Sem querer tomar conhecimento, ou quase, dessa ofensiva que não recua diante de nenhum meio, diante de nenhum meio de crueldade e de sujeição para assegurar seu poder, e Jacques Derrida se emociona continuamente e sem alibi, a psicanálise está em vias de esquecer que somente ela é susceptível de explorar os fundamentos desta violência sem limites à qual as formas modernas de soberania conferem uma legitimidade sempre nascente. Crueldade, soberania, direito de dispor do corpo do indivíduo supostamente cidadão, direito de utilizar seu sofrimento para fundar uma ordem cada vez mais arbitrária, crueldade sangrenta, massacres, despedaçamento das carnes, crueldade limpa, morte química, médica, aquela que, sob uma pseudo-ética, recolocou seu fundamento jurídico na pena de morte nos Estados Unidos - Jacques Derrida insiste nisso, reencontrando o fio da distância freudiana em relação à América e aos americanos - essas são as asperezas, as falhas das quais a psicanálise pode, deve, deveria poder, sem alibi, assenhorear-se, para enfrentar a abrupta vertente da política contemporânea.
Aos psicanalistas que poderiam ser tentados a dizer que, enquanto analistas, não têm nada a fazer quanto ao crescimento do desastre, Jacques Derrida propõe um retorno a uma releitura das audaciosas intervenções freudianas fora de sua área, principalmente no que diz respeito a sua correspondência com Albert Einstein, publicada em 1933, sob o título Por que a guerra? Nesse texto, como em outros que o precederam, a começar por Além do princípio do prazer, Freud explora as profundezas do que ele chama a alma humana para distinguir nela os vestígios dessa pulsão de morte, dessa tendência ao retorno à origem, dessa imperiosa necessidade de que nada mude. Para marcar sem desvio as potencialidades humanas nessa matéria, Freud recorre mais de uma vez ao termo crueldade, desenhando até os contornos dessa forma bem particular de lust, de prazer que Lacan chamará de jouissance; crueldade que os Estados de direito esforçam-se por canalizar em tempo de paz mas à qual essas mesmas instâncias não hesitam em dar livre curso em tempos de guerra.
Freud - e este não é o menor de seus méritos - nunca pensou em abolir este viés pulsional que lhe parece complementar de Eros, as pulsões de vida, e, por isso, intrínseco à existência humana e à dita civilização. Freud não teve como objetivo legislar sobre as coisas humanas através da psicanálise; ao menos, e Jacques Derrida enfatiza, ele pensou que, ao contrário, a manutenção da diferença, da heterogeneidade entre razão psicanalítica e razão política podia constituir um recurso na louvável perspectiva de canalizar a efervescência do pulsional. Setenta anos mais tarde, Jacques Derrida, diante da extensão mundial da fúria, conclama os psicanalistas a existirem como tais, a permanecerem como essa instância de recurso para que, a partir do direito, da ética e da política, possa ser levado em conta, sem alibi, o saber psicanalítico. Elevando a voz no final, o filósofo contesta um último alibi: a tarefa é imensa, lembra ele, e consiste - para os psicanalistas na especificidade de sua prática e de seu saber, assim como para todos os cidadãos - em "organizar essa ordenação da razão psicanalítica sem reduzir a heterogeneidade, o salto no indecidível, o além do possível, objeto do saber e da economia psicanalítica, inclusive em seu discurso mitológico sobre a pulsão de morte e além dos princípios".
Faz parte da força da convocação de Jacques Derrida estimular o questionamento. A interrogação nasce, pois, seguindo o rápido tempo dessa brilhante interpretação do pensamento psicanalítico, de seus avanços e de suas faltas. Sem parasitar a escuta dessa mensagem urgente, o ouvinte psicanalista transformado em leitor do tempo de um verão gostaria de retornar mais de perto aos conceitos freudianos para encontrar neles os sutis distinguo; os que operam sobretudo entre pulsão de morte, pulsão de destruição, pulsão de dominação, mando e poder, crueldade e sadismo, tantas nuances que o texto freudiano contém e somente oferece ao preço de uma leitura que se apóia na clínica, nuances conceituais cuja supressão, através de uma assimilação apressada demais, poderia no final impedir uma manutenção rigorosa da heterogeneidade justamente invocada.
De uma interrogação a outra, é preciso realçar - mas há tantas outras coisas que seria preciso destacar - que em sua generosidade intelectual Jacques Derrida dá à psicanálise e aos psicanalistas um crédito sem limites. A vox populi, é sabido, gosta de repetir a quem quiser ouvir que só se empresta aos ricos. Daí a questão que não deixa de surgir: será que os psicanalistas poderão, saberão, quererão levar em consideração - não se ousa dizer em conta - o apelo que lhes foi lançado em uma noite de julho enquanto eles tentavam organizar o enorme dossiê de suas queixas? Freud cultivava o ceticismo que alguns confundiram com pessimismo. Seria ser otimista desejar ver esta questão inscrita no centro dos debates futuros e, além, para assistir, participar de uma séria tomada em consideração, sem alibi, da coisa política pela psicanálise?
Michel Plon é psicanalista, co-utor, com Elisabeth Roudinesco, do Dicionário de Psicanálise (Zahar).
Artigo publicado no número 795 (1 a 15 de novembro) de La Quinzaine Littéraire
Em Português
Jacques Derrida
ESTADOS - DA - ALMA DA PSICANÁLISE : O IMPOSSÍVEL PARA ALÉM DA SOBERANA CRUELDADE, EDITORA ESCUTA, SÃO PAULO.
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