O processo de envelhecimento e as mudanças no edifício identitário

Sylvia Salles Godoy de Souza Soares*

Resumo
Partindo da observação clínica do segmento etário entre 50 e 70 anos, a autora se propõe investigar as transformações que afetam o binômio função - identidade geradas, pelas mudanças corpóreas e, pelas alterações sofridas nas relações sócio culturais que precipitam desencontros na relação mente-corpo. Levando em conta um enfoque interacional das dimensões individual e social, a autora parte de dois vértices teóricos: social e psicanalítico. Na ilustração de dois fragmentos clínicos, procura fazer uma análise da especificidade desse momento, no qual, há o recrudescimento de processos já vividos e que culminam com uma desestabilização no edifício identitário. Por fim, a autora faz uma reflexão sobre a inserção da psicanálise, e do desenvolvimento da capacidade de construção, desconstrução, e reconstrução, que é por excelência a capacidade adaptativa do próprio viver.

Palavras-chave: identidade, envelhecimento, transformações, desestabilização.

Resumen
Partiendo de la observación clínica del segmento de edad comprendido entre los 50 y 70 años, la autora se propone investigar, las transformaciones que afectan al binomio función - identidad generadas, por los cambios corporales y, por las alteraciones sufridas en su relación sociocultural que precipitan los desencuentros en la relación mente - cuerpo. Teniendo en cuenta un enfoque interaccional de las dimensiones individual y social, la autora parte de dos vértices teóricos: social y psicoanalitico. Con la ilustración de dos fragmentos clínicos, la autora procura hacer una análisis del momento crítico en el cual hay, el recrudecimiento de procesos ya vividos que culminan en una desestabilización del edificio identitario. Por último, hace una reflexion sobre la aplicabilidad del psicoanálisis en el sentido de movilizar recursos que permita desarrollar la capacidad de vivir esa etapa de la vida en contacto con las realidades interna y externa.

Palabras-clave: identidad, envejecimiento, transformaciones, desestabilización.

Introdução.

Esse trabalho é antes de mais nada um projeto, ou tentativa, de ampliar a questão do idoso, menos com a pretensão de oferecer idéias conclusivas e mais como um alargamento de fronteiras de um segmento da população pouco explorado.

Para se pensar em envelhecimento, é preciso fazê-lo em pelo menos duas direções: na dimensão individual da experiência temporal; e, na dimensão social, isto é, no significado que adquire nas relações que estabelece com seu meio. Para delimitar um campo, quando nos referirmos ao envelhecimento, estaremos falando de uma faixa etária entre 50 e 70 anos: de uma mulher que possa ter passado pela experiência de casamento, ter tido filhos, os quais nessa altura já se casaram, ou de alguma forma bateram asas...; e, de um homem, à exceção de alguns, que tendo já ultrapassado o ápice de sua carreira, começa a ter que suportar o declínio e pensa numa aposentadoria, mas ainda sente-se forte, vigoroso, embora sem a ousadia e disposição para correr os riscos, próprios dos anos anteriores. Em suma referimo-nos a alguém que reconhece já ter passado seu momento de grande realização, que está com boa parte da vida já percorrida, tendo cumprido uma série de coisas para as quais a "sociedade" lhe convocou, mas talvez, não tendo atingido o que esperava ou havia se proposto. Etapa de vida, na qual a pessoa por não saber muito bem onde se situar, posto que não é moço nem velho, eclodem áreas de conflito e desacerto, precipitadas pelo processo de mudanças significativas, pela ambivalência de afetos e emoções; momento crucial, onde a pessoa, ao sentir-se desnecessária por esvaziar-se sua função, questiona seu papel, comprometendo sua identidade pessoal. Por reviver um período de certa indefinição própria dos processos de transformações e mudanças semelhantes à adolescência, achamos que um termo apropriado seria envelhescência. Mas, creio que a questão é ampla e merece ser pensada em sua especificidade, porquanto se vive de forma diferente, dependendo de como cada indivíduo se insere em sua cultura, de seu de seu nível social, econômico, etc.

A reflexão sobre identidade, ao levar em consideração um enfoque interacional, requer uma investigação de certos elementos que contribuem em sua complexa organização, para que se possa pensar nas transformações que vai sofrendo a relação mente-corpo no percurso da vida, gerada pelas mudanças, incluindo o efeito produzido pelas alterações corpóreas em suas diferentes facetas; e, que com freqüência conduzem à manifestações de estereotipia segundo padrões pré- concebidos, no exercício da sexualidade, no caráter subjetivo da masculinidade/feminilidade e conseqüentemente nas relações de objeto.

Um breve histórico, para situar o problema

Alguns fatores que contribuem para uma consciência de identidade. Antes de mais nada, nos perguntaríamos o que a define? A título de ilustração, diríamos que: quando se é criança e lhe perguntam quem é você? A resposta é: "sou filho de fulano/a". Isto é: você se identifica como filho. Quando se é adolescente, ao começar um processo de separação da infância, você não mais quer ser parecido com o pai/mãe, mas com os amigos, com a com os/as colegas, com artistas de cinema de televisão, etc. Essa busca de identidade dá-se de início, por um processo de homogeneização: o Eu sou eu, dessa fase, é um ser igual nas atitudes, no vestir, no falar, na produção de um código comum, e que paradoxalmente, ao mesmo tempo que confere um sentido de pertença ao grupo, outorga uma distinção e produz a singularidade de cada um. Isso impulsiona a pessoa a ir em busca de algumas coisas, a traçar um projeto de vida que traga sucesso, pois é quando se quer conquistar um status, um espaço social, profissional, ou mesmo realizar-se somente no casamento. Mas fato é, que ao identificar-se com qualquer desses modelos, a pessoa vai articulando-se em torno de um eixo: sou um engenheiro, sou uma dona de casa, uma médica...; enfim, ou profissionalmente, ou pelo estado civil a pessoa se reconhece como tal. Articula-se uma relação entre potencial, força e juventude, bem como a produção de um padrão na qual a pessoa se sente inserida. Dito em outros termos, vai-se adquirindo uma forma de ser, própria da pessoa adulta, com autonomia, responsabilidade, independência, etc.. Entretanto, essa construção, pelo próprio efeito de sua permanência no tempo, conspira para uma ilusão de caráter definidor, que com o passar dos anos, com a perda de certas funções, vai se desfazendo e contribuindo para uma fluidez identitária: quem é você nessa hora, na ordem das coisas? Creio ser essa a indagação que a maioria das pessoas se faz, nesse "entardecer" da vida, ao sofrer a ruptura e a descontinuidade na experiência do viver. Seu universo apresenta-se limitado e a vida lhes parece estagnada. Que fazer dos dias que se sucedem, sem um estímulo que desperte seu interesse? O lazer vivido isoladamente, traz pouca satisfação. Além do mais, como conviver com as necessidades afetivas, que muitas vezes atingem um estado agudo, provocado pela própria inação? O resultado é que as pessoas se sentem 'soltas no espaço', e sem perspectivas pelos anos vindouros, que sabemos hoje, pelo avanço da medicina, poderão ser muitos...

Dos enfoques teóricos sociais, sobre envelhecimento, destacamos dois vértices: teorias normativas, filiadas a num modelo organicista e na psicologia do desenvolvimento, que estão baseadas nas idéias de seqüencialidade, unidirecionalidade e irreversibilidade, com transformações referenciadas à cronologia dos calendários. A ocorrência de etapas que caracterizam as idades, reiteram a idéia de fases de desenvolvimento no decorrer da vida, o que pode ser útil, para uma compreensão de estados que as caracterizam; e teorias não normativas, filiadas a uma contextualização dialética, que defendem a idéia da interação contínua e recíproca entre o organismo ativo e o contexto sócio cultural, ambos em mudança, que determinam processos contínuos e descontínuos e dão um sentido histórico ao curso da vida. Do meu ponto de vista essas duas posições não se excluem. A ocorrência de estágios específicos numa seqüencia obrigatória e universal, ou "Estações da vida", como propõe Levinson (1978)1 determina períodos alternativos de relativa estabilidade, e de transição. Num determinado período articula-se uma estrutura de vida (combinação de papéis, relações interpessoais, relações com o ambiente físico e social). Nas fases de transição, essa estrutura pode ser abalada pelas demandas dos eventos internos e externos, gerada principalmente com relação à 'ocupação'. O modelo sócio-interacional, ainda que afirme que a natureza da experiência é determinante do desenvolvimento adulto, retoma a idéia de fases, para dar subsídios a sua formulação de uma agenda social, baseada em categorias etárias e papéis correspondente, que organiza e referencia a vida, e que se constitui em expectativas, e padrões de comportamentos esperados. Esse relógio social, determina um relógio individual, fruto da aprendizagem social, que refere-se a consciência da experienciação dos eventos durante o curso da vida. Portanto, a percepção e o significado que cada um dá a própria experiência, vai constituir sua singularidade;

Em suma, é da interação constante, entre os elementos internos e externos dos domínios bio/psicológicos, sócio/culturais e ecológico, em constante transformação, que resulta, numa perspectiva dialética, o próprio desenvolvimento do indivíduo, que implica em movimentos de -sincronia -nas fases estáveis,- e assincronia -nos momentos de transição, os quais são potencialmente geradores de tensão e crises, e cuja reorganização vai depender dos recursos disponíveis para mudanças, preparação para novo desequilíbrio, retorno a um outro equilíbrio e assim por diante...

Partindo-se do pressuposto, que o processo de envelhecimento, está a mercê dessa interação de fatores, numa relação dialética, devemos ressaltar que a articulação desses eventos, se dá em relação à noção de como o tempo se inscreve, ou seja, qual a ação do tempo sobre o indivíduo, dentro de uma cultura num determinado momento histórico. Anita Neri, em seu trabalho "Envelhecer num país de Jovens"2, refere-se ao tempo como passagem: "fluxo constante, ele nasce no passado e passa pelo presente empurrando-o rumo ao futuro, se escoa se esvai, desaparece. O tempo é um ente natural que determina o destino dos homens ao permitir a vida a cada dia mas a leva consigo à medida de seu transcurso. Ele desgasta, amadurece ou devasta as pessoas. Em contrapartida o tempo é para ser gasto dispendido desfrutado; demarcado subjugado e controlado. O relógio e o calendário são símbolos onipresentes dessas intenções. Porém de meros artefatos destinados as registrar e a demarcar arbitrariamente o tempo, assumiram o status de fatores causais." Essas crenças, fortalecidas pelas concepções científicas, foram transformadas em abstrações tais como "idade o homem": infância, adolescência, meia idade, velhice avançada, que, tais como modelos de comportamento vêm moldando, enquanto fatores causais, "estágios de desenvolvimento. Esses constructos criaram categorias, (um adolescente deve ser rebelde, um velho deprimido e/ou marginalizado) sem levar em conta que é a própria experiência que determina a emergência da consciência temporal.

O tempo, que transcende essa mensuração, invade outros territórios da mente humana que é pautada por uma intrincada mescla de elementos: o tempo ecológico, que é pautado pelos ritmos do mundo natural (estações, luas, secas, chuvas...) fornece um calendário básico; tempo coletivo, que conjuga-se também pela mediação do sagrado, ligado aos calendários religiosos, tempo mítico. Do momento em que a capacidade simbólica do homem permitiu, houve uma nova distribuição do tempo, mas que só muito mais tarde passou a ser regido por leis astronômicas. Na dimensão individual, a realidade é referenciada por eventos biológicos (ciclos orgânicos de sono, vigília, gravidez, parto, menarca, menopausa); psicológicos (adolescência, crises de idade) e sociais (casamento separação aposentadoria).

O tempo social é a síntese da multiplicidade dos esquemas individuais de tempo, regulado por uma agenda social que determina a emergência de papéis e expectativas, inserida na existência de normas, que funcionam como um sistema de controle: um 'relógio social', que delineia as principais fases da vida, bem como os comportamentos aceitáveis para os indivíduos em suas diferentes fases. A experiência pessoal de tempo, que inclui a memória, vai ser explicada pela mediação de eventos interacionais, portanto, a noção de tempo nasce de sua relação com as coisas.

Para complexizar a questão, Freud introduz a idéia de atemporalidade -tempo do inconsciente-, o que nos possibilitou examinar a natureza da experiência humana, numa outra dimensão. Mas, com a descoberta do funcionamento típico (ou atípico) dos processos desse estrato mental, que operam por deslocamento e condensação, Freud nos convidou a incluir a intensa variabilidade temporal, que assemelha-se ao "caos". Traduzindo em outros termos, tudo que é apreendido da experiência de mundo, é passível de ser processado pela interveniência dessa instância psíquica, que nos remete a situações por vezes desorganizadoras: desejo não tem idade. Mas, o próprio Freud que complica nossa vida, também vem nos amparar, quando sustenta a evidência do ego, instância organizadora, capaz de integrar as percepções de mundo interno e mundo externo. O tempo portanto, é preciso ser considerado como um dado da consciência, mas de uma consciência que se desdobra: passado e futuro que são construídos pela subjetividade...

Para aprofundar-mo-nos um pouco mais no terreno da psicanálise, tomei como ponto de partida as idéias de Ferrari3 que fundamentando suas hipóteses em Freud, Klein e Bion, entre outros, acrescenta: "que flutuamos delicadamente entre uma visão subjetiva e objetiva do mundo e esse dilema é o centro da natureza humana."(p20) Sua hipótese é de que o modelo de funcionamento mental deve repousar num contexto biológico e etológico e que possa ser observado em suas funções relacionais, em interação da pessoa com o ambiente, focalizando a inter-relação corpo e mente com suas mudanças significativas que se operam continuamente. Afirma que o processo de crescimento e da organização mental dependem essencialmente de como se dá a interação do biológico/psicológico num determinado momento histórico cultural, salientando a importância da linguagem, enquanto veículo do "aprender" a viver. Considerando o inefável, diz que não é possível separar a emoção, (sensações) na medida que estas são um produto colateral e automático da capacidade de pensar, mesmo porque, estão em sua origem. Em suma, Ferari sustenta, que o pensar é uma unidade sintética que reflui de representações, através da linguagem, no ambiente em que se nasce cresce age e morre... Esse é um sistema ativo de uma estrutura capaz de atualizar-se e reorganizar-se, de forma tal para adaptar-se ao mundo em sua contínua transformação. Partindo do pressuposto que corpo é um objeto por excelência da mente e sua realidade primeira, Ferrari formula o paradigma: "o somático, que define como "Objeto Originário Concreto", vai inteirar..., um conjunto de funções (sensoriais, metabólicas) que se articulam com as funções mentais. O desenvolvimento dessas funções mentais, caminhando paralelamente à contenção, (registro) das sensações confusas, se dá através de um gradual distanciamento mental do eu da pessoa, enquanto pessoa somática e vai instituir-se de uma relação com o Eu, visto como uma representação do próprio corpo e sucessivamente através dele mesmo, da própria mente."(p.20) Denominou-o objeto concreto por significar um objeto dentro do qual estamos e por ser a fonte de todos os objetos possíveis de onde provem todas as representações. Partindo-se do princípio que a função mental tem seu início, quando dá significado aos primeiros registros de uma percepção sensorial, concordamos que existe um aparelho que registra e um objeto registrado. A mãe, ao exercer sua função essencial de reverie, acolhe a carga excessiva de estímulos do bebê, e para o bebê, portanto também contém, registra e dá significado. O objeto corpo, tem então uma representação na mente e um estatuto. A mente pode representar o corpo como uma obra de arte, mas dado à sua concretude e a sua natureza volúvel, temos que ter em mente que trata-se de algo que não é de todo representável. Os objetos verdadeiros são as interações contínuas que construímos, percebidas pelo aparato mental, que anota e lhes dá um sentido. A seqüencia que vai da percepção sensorial, à emoção e ao pensamento vista como uma linha de percurso em duas direções, permite uma série de combinações possíveis. Ferrari, seguindo esse modelo, fez a imagem de um eclipse, ou seja, de que o possível distanciamento dessas magnitudes, vai criando uma alargamento do espaço mental que se projeta como uma sombra sobre o físico, atenuando sua luz e refrescando o calor das emoções. Sublinha que esse processo vivido nos primeiros anos da existência, passa por uma nova edição na adolescência; e mais, que alguma coisa dessa condição, de que modo não sabemos, permanece em nós, conferindo uma representação incompleta da nossa corporeidade. Ferrari descreve, o processo relacional em duas direções: o interno intra-psíquico que inclui a mente e o corpo numa dimensão vertical; e outra na relação com a "mãe": horizontal, que se re-apresenta na relação transferencial da análise. A experiência que cada um tem de si mesmo é portanto fruto da relação dialética dessas magnitudes, podendo haver um predomínio de fantasias abstratas ou concretas nesse jogo de claro escuro, o que vale dizer que dependendo da história evolutiva e da maneira como o indivíduo interage com seu meio, esse processo pode ter seu percurso repetido infinitas vezes durante a vida. Na medida em que os processos vertical e horizontal, possam operar num sentido harmônico, ambos podem expressar-se; mas, se houver alguma falha, a prevalência de uma ou outra área pode se instalar, o que implica não só numa constricção de uma das partes, mas principalmente num prejuízo para o todo. A pessoa pode privilegiar uma experiência prevalentemente física, através do significado que imprime ao corpo, circunscrevendo essa área, ou bem, exacerbar o psíquico numa tentativa de elaboração. Em qualquer dos casos, a experiência concorre em grande parte para determinar uma forte percepção de identidade.

Nossa hipótese é de que, dadas às mudanças acentuadas do processo de envelhecimento como um todo, incluindo o declínio dos recursos e atributos físicos, o objeto concreto possa voltar a sobrepujar o espaço mental, invertendo seu percurso natural, gerando uma hiper valorização de aspectos concretos, revigorada pela ânsia de um padrão estético irrecuperrável, com inevitável perda do dimensionamento de valores anteriormente atingido. Mudanças no corpo, mudanças no ambiente. A mente tem que formular uma modalidade para fazer frente, as demandas pulsionais dentro das opções que ambiente lhe oferece, e buscar respostas apropriadas às exigências do corpo e do ambiente.

A repetição dessa passagem pode ser ilustrada por dois fragmentos clínicos. Um deles de uma paciente F. de 56 anos, viúva há 6 anos, em análise há 4 anos, e me procurou em desespero de causa, porque um dos filhos teve um surto psicótico. Tem sido uma mulher dedicada à família, com domínio de suas funções: cozinha costura atende aos filhos, etc.

Em uma sessão, relata um diálogo que ela ouviu na novela de T.V., entre duas mulheres:

Joana- "Eu sempre achei que o casamento de vocês era muito desigual, porque você é uma mulher muito doméstica para seu marido."

Isa- "Eu fui educada para ser uma boa esposa!"

Joana- "Eu fui educada para ser Mulher!"

A paciente diz que essa fala a deixou impressionada, e questionando sua vida. Acrescenta Paciente-"...de que vale pensar nisso agora se o tempo já se foi...?

Analista- "Você já morreu ? Estou conversando com quem?


Dando uma gargalhada ela diz:

Paciente- "Estou rindo porque minha irmã ontem me ligou e perguntou: 'você está viva? O fato é que assim fomos educadas, minha irmã e eu. Eu ainda estou melhor porque tenho minha casa, minha vida, mas ela depois que se separou do marido, voltou para a casa de meus pais, nunca mais se casou, e lá ficou até hoje. Imagino quando meus pais morrerem, que já estão com mais e 80 anos, o que vai ser dela! Ela vive entre a vida dos pais e da filha, dos netos... Mas estou aqui pensando o que é ser mulher; eu tinha o marido, ele estava lá; tinha proteção mas sempre achei que faltava alguma coisa...

De certa forma desimpedida para trilhar novos caminhos, essa mulher reflete, pensa em sua vida. Dá-se conta de tê-la percorrido sem que de verdade a tivesse vivido. -"Eu não pensava"- como muitas vezes me afirmou, prenunciava com freqüência uma descoberta; mas o fato inédito, era perceber que podia ter idéias próprias, à medida em que ia desconstruindo o padrão prensado e imperativo da época, para o qual foi programada: casar, ter filhos, desempenhar um papel, sob a tutela do pai, depois do marido, por último de um filho..., sem licença de viver o próprio corpo ou a mente. Mas, uma ruptura nessa cadeia (a morte do marido) precipitou uma implosão no sistema. À essa mulher, que se viu privada dos cuidados maternos, porque sua mãe adoeceu quando ela nasceu, -mãe esta, que ao nascer ficou órfã, podemos atribuir, ou ao menos imaginar, falhas irrecuperáveis no processo de desenvolvimento. Minha hipótese, é de que as sensações do corpo, por não terem sido ouvidas, pela ausência de reverie, pararam de se manifestar, calaram-se. O corpo como que anestesiado, ficou mudo. Pelo desenrolar do processo, pode-se inferir o restante, ou seja, seu "aprendizado" pautou-se pelo caráter doutrinário do acordo: a proteção em troca do silêncio. Sua experiência de vida não tendo sido marcada por grandes incidentes, não lhe forneceu acréscimos. Quando surgia algum problema, ela dizia para si mesma: "amanhã eu penso"! O amanhã foi-se eternizando, até a hora em que a "vida" lhe pegou de surpresa: a morte do marido, aliada à necessidade de cuidar do filho doente obrigou-a a pensar, ou enlouquecer de vez. No momento de grandes mudanças, angústias muito primitivas recrudesceram, trazendo à tona uma intrincada e complexa organização mental. Por vezes me parecia um encistamento de tipo autístico. Mas o que se contrapunha por vezes era um lampejo de uma raiva, detonada pela noção do tempo perdido, e por outras, a presença de devaneios e sonhos, que embora operassem num nível idealizado, emitiam sinais de sua vida mental. Em que medida a ação do tempo que se fez sentir em diversos níveis, reavivou o processo da interação mente/corpo. Nessa hora, ela questiona, o que é ser mulher, e o que fazer agora com esse corpo que se manifesta, hoje transformado em objeto de suas percepções e preocupações. Quer um parceiro, mas pensa: haverá tempo? Na experiência de análise, por sua especificidade, ela vem encontrando um lugar para dar existência a um Eu, antes aprisionado a "vínculos" imaginários que exerciam sobre sua mente poderes 'sobre-naturais'.

O outro fragmento é de um homem na faixa de 50 anos e que procura análise com manifestações hipocondríacas: sintomas físicos, -sudorese excessiva, batimento cardíaco acelerado, que eram desencadeados em espaços fechados, elevadores, ou avião pousado um tempo que excedia ao esperado; procura contínua de médicos, medo de doença e medo de tomar medicação. É competente e hábil em seu trabalho. Mantém relações com F. sua ex-mulher, (com quem tem duas filhas já adultas) com L., uma colega de trabalho, há mais de oito anos e eventualmente com pessoas que possam lhe atrair; ou "trair"? Generoso, porém sente-se constantemente em "dívidas," pois, tudo que dá para uma, tem que dar para as outras, incluindo as filhas, o que conduz a uma situação de auto exigência extrema.

Paciente- "Estou preocupado com a situação do trabalho. Antes quando eu não me dava bem em um trabalho, mudava para outro. Agora na minha idade não só não existe essa facilidade como eu também não tenho condições de enfrentar a luta. Mas está tudo bem; não como Nothing Hill, (filme) aquela calma, onde nada acontece. Fui para a casa de praia com F., minhas filhas e a neta. A F. parecia estar bem mas de repente ela muda tudo e conseguiu acabar com o dia dos pais. Tudo que eu dou é insuficiente. Quando eu penso que dá para refazer uma vida de família, -tive até relação sexual para satizfazê-la-, mas não adianta. Ela começou a encrencar, mas dessa vez eu dei o troco, o que antes não fazia, tinha medo.

Analista- "Você diz que é a natureza dela: é como o escorpião, quando menos se espera...

Paciente -"Ele ferra. A R., arqui-inimiga da L. queria vir comigo para S.P.. Mas achei que já era demais. Depois ela quer ficar... Elas querem casar, querem uma situação de segurança e eu não quero ninguém morando comigo. O melhor é cada um na sua casa. Vou com a L. para os E.U.A., mas o que é complicado é que quando estou bem com uma pessoa, tenho medo do que está por trás. Silêncio. Estou me dando conta que eu estou sempre com pé atrás e "armando" para tirar um proveito da situação; como também você aqui, fica me observando, para pegar um outro sentido que possa ter o que eu digo. Mas num bom sentido!

Analista- "Você capta uma situação. Mas também, que a diferença está na intenção".

Esse homem se sente estressado, e cobrado pela auto-imagem de um "corpo", construída nos moldes das exigências externas e internas e vê-se em conflito por notar que não mais dá conta dessas solicitações. Sente-se espremido pelas contingências de sua vida, sem a mesma disposição dos anos "dourados". Tem medo de falhar na saúde, o que lhe condenaria baixar o padrão de vida; e, no sexo, menos como desempenho físico, do qual não tem queixas, mas pela imagem de grande conquistador, idéia da qual se imbuiu. A iminência de perda do controle é transformada (em alucinose)4 num abalo sísmico. A análise vem se apresentando para ele como um terreno confiável. Ele encontra-se com uma "mulher" num local com dia e hora marcada onde ele sabe o preço que vai pagar e nada além disso lhe é exigido em troca. O setting analítico, tem tido a função de reverie, pois ele pode evacuar elementos beta para serem transformados em alfa, ou seja, despejar suas angústias de um corpo que não mais se representa onipotentemente, mas com limites. Ao poder ir construindo comigo novas imagens, vem depurando e refinando seus valores. Colecionar aventuras não lhe traz a mesma excitação, porque tem medo do coração não agüentar. Ele agora anseia por um pouco de tranqüilidade. Por outro lado, ele está sendo capaz de exercer sua vontade, a partir de novos referenciais. Um homem pode saber-se viril e potente pelo acervo conquistado como fruto de suas experiências.

Considerações Finais

Considerar a relevância do contexto ao qual nos aproximamos, é ter presente sua complexidade: desde uma macro visão do processo, até sua especificidade,- das classes sociais, da etnia, da cultura, da herança, mítica, etc.-, que transparece no caráter multifacetado que relativiza o perfil da nossa população, e que define o traço identitário. A partir de uma perspectiva de integração, a apreensão das pessoas no envelhecimento deve ter presente a idéia conjunta de identidade grupal, que inserida no âmbito social, define um sentido de pertença ao grupo; e, da identidade individual cuja configuração nos é oferecida no exercício clínico. Com esses referenciais em mãos, estaremos em melhores condições de precisar, se vamos nos deparar com problemas específicos de estrutura, ou perturbações declanchadas por crises de transição. Essa observação não pretende dar um sentido diagnóstico, mas referendar a possibilidade de intervenção da psicanálise seja para a compreensão dos processos em vigência, ou da extensão de sua aplicabilidade, obedecendo ao rigor de seu do método e técnica.

Enquanto essas questões, são deixadas em aberto, para poder absorver novas idéias, quero deter-me numa questão fundamental que é: de que maneira os valores e padrões são internalizados, do momento que estão continuamente operando em nossas mentes?

A cultura exige uma transformação. Como assinalou Ferrari5: na adolescência se é jogado na "fornalha da vida". Ao envelhecer, se é retirado do cenário. Tudo que antes é permitido e até exigido, parece ir se transformando no proibido. Citando Kernberg6, "De fato, a moralidade convencional dirige as proibições sexuais tanto na sexualidade infantil, quanto para a vida sexual dos idosos; no que concerne, a vida sexual é freqüentemente representada como vergonhosa, decadente ou ridícula. A associação cultural entre intimidade sexual e os corpos perfeitos dos adolescentes, reflete a projeção das proibições edipianas experimentadas pelas crianças, as quais assumem, até o correspondente clichê cultural dos jovens adultos, que seus próprios pais à medida que envelhecem não apreciam a relação sexual. A moralidade convencional, refletindo a proibição e culpa edipianas culturalmente compartilhadas, nega assim a satisfação plena fora da estreita faixa de idade..." Esse artigo envolve questões de maior complexidade teórica, que escapa à nossa proposta, mas nos convida a mergulhar num estrato da mente humana, que se vê às voltas com conflitos gerados por demandas internas que não encontram ressonância no ambiente, e com parcos recursos para mobilizar instrumental adaptativo.

Na envelhescência, o corpo, que durante anos conservou-se dentro de uma certa estabilidade, começa enviar seus sinais de declínio; vai sofrendo periodicamente pequenos abalos, e não só, não mais corresponde aos seus anseios, como também não mobiliza olhares, passa sem ser notado. As mudanças são a cada dia mais acentuadas, e perceptíveis a olho nu. A forma física refletida no espelho vai distanciando-se da efígie, que antes lhe serviu como protótipo de representação de si mesmo. Quando volta o olhar para dentro, para sua interioridade, um estranhamento... "Meu corpo não obedece minha cabeça (ao desejo); ou, muitas vezes ao contrário, o corpo tem força mas a mente não acompanha." Quando olha em volta, não se reconhece e não é reconhecido. Seus pares não querem se parecer com eles: "velho" é lerdo, cansado, rabujento...; velho é sempre 'o outro', nunca ele próprio. Às voltas com a discriminação e com seus próprios preconceitos vê-se sectarizado, e nessa perspectiva, o ânimo arrefece. Talvez que a aproximação com jovens, até num contato sexual, possa lhe trazer uma certa compensação narcísica, mas esvanece-se, quando no contato à pequena distância, o meio, se mostra revelador. As expectativas de vida, são forjadas por um caráter paradoxal: se por um lado o avançado dos anos atestam a aproximação de um fim, ou pelo menos que estão vivendo a última etapa da vida, a ciência acena para uma prorrogação do 'tempo regulamentar'. Mas de que forma? As chances de novas perspectivas vão se tornando cada vez mais escassas. Os anos passam voando e os dias são intermináveis... À angústia da iminência de perdas, soma-se à necessidade de engajar-se; mas, como fazê-lo, frente à inexorabilidade da passagem do tempo, com seus efeitos sentidos duplamente: em si mesmo e nas barreiras sociais? A tendência, a grosso modo, é de que ao encontrar o caminho estreitado pelas próprias condições, emirjam tentativas de escape que podem acontecer em várias direções. Com freqüência observa-se uma recusa em aceitar as mudanças, o que de certa forma aprisiona a pessoa, em dois sentidos: 1O - Na busca insana de uma imagem corporal segundo o modelo juvenil, através de cirurgias plásticas performance físicas, etc., e nesse caso, nossa hipótese é que a sombra da representação do corpo, primeiro objeto de percepção, como afirma Ferrari, (1992) reprojeta-se sobre a mente, desencadeando uma hiper-valorização do corpo, enquanto objeto, obscurecendo os processos mentais e, fragilizando o equilíbrio harmônico anteriormente conquistado. 2O -A um funcionamento mental, que deslocado no tempo, vai desenterrando reminiscências, na tentativa de apegar-se ao passado, ou reviver uma época que já se foi, perdendo assim as próprias referências. A configuração da identidade como que dilui-se, parte pela percepção do obsoletismo de suas funções, e parte pela impossibilidade reconstrutiva do ego que por todas as razões internas e externas já mencionadas, não mobiliza recursos adaptativos. A representação dos objetos é toldada por imagens enfraquecidas e a falta de mobilidade, obstaculiza a formação de novos vínculos. As relações, no plano horizontal, truncadas por separações e perdas, são insuficientes para lhes propiciar uma identidade grupal. Por outro lado, a proposta de viverem com os iguais, seria entrarem para o grupo de terceira idade, o que lhes parece ainda mais deprimente, pois é ser taxado. Portanto ao sentirem-se desgarrados de um grupo, privados de um convívio no cotidiano, vão percebendo-se isolados da vida da sociedade mais ampla. A frustração de ter que abandonar antigas estruturas, pode provocar um mergulho numa nostalgia estéril, configurando-se um quadro depressivo. É o 'viver' segregado! Os objetos internos vão sofrendo um esvanecimento, e como que a pessoa olha para os lados e não vê ninguém. A relação com o tempo altera-se. O recrudescimento de processos já vividos, culmina com uma desestabilização do edifício identitário.

Visto por uma outra ótica, essa fase da vida pode-se revelar engrandecedora, se se permitir "o desenrolar de novos temas para os últimos capítulos". Porém, trata-se de tentar por em marcha um processo de mudança, para promover uma transformação em direções outras, que venha definir melhor o momento. O desafio será, em que medida cada um vai poder buscar algo novo dentro de si, ou mesmo recursos que no decorrer do tempo, poderão ter sido embotados, passado incólumes, mas que ainda se encontram a disposição para serem desenvolvidos. Há pessoas que por elas próprias são capazes de promover esta renovação. Não dá certo aqui, tentam acolá, pela própria capacidade de construção, desconstrução e reconstrução, que é por excelência a capacidade adaptativa do viver. Em outros casos, creio que a contribuição de uma análise ou terapia, na medida em que seja possível suportar, poderá ser de grande valia, para criar condições de reformular idéias, modos de vida, e quem sabe descobrir as faces positivas desse período, o qual poderá ser vivido mais plenamente: seu tempo é todo seu! Tempo de liberdade para novas escolhas... Enfim, se for possível dispensar certos padrões, próprios da adolescência, e utilizar-se da somatória das experiências de vida, sabemos que existe mais de uma opção. Ao desembaraçar-se de um estilo padronizado de antigos modelos, conceitos, e preconceitos, por reconhecê-los em desuso, pode dar-se ao luxo de sendo 'diferente', talvez reencontrar o eixo de si mesmo.

Sylvia Salles Godoy de Souza Soares
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São Paulo S.P. Brasil.
* Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
1 - Levinson, D. J. The seasons of man's life. 1978. New York Knopf.
2 - Neri, A..L., Envelhecer num País de Jovens. 1991. Ed. Unicamp. P.17.
3 - Ferrari, A B. L'eclissi Del Corpo 1992. Roma. Borla. ps.18 à Trad. livre da autora.
4 - Bion, W, R., Transformations.
5 - Ferrari, A. -Palestra Conferida na S.B.P.S.P, em 31-5-2000.
6 - Kernberg, O. F., Relações Amorosas Mais Tarde Na Vida. Trabalho apresentado em 24-08-98,em Reunião Científica da S.B.P.S.P., p.1 e 2.

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