Riso e poder na transferência*

Maria Nilza Campos / Regina Orth de Aragão

"O humor seria ele sinal de mudança?"
B. Pontalisi

Resumo
A partir de uma reflexão anterior a respeito da função do humor nos modos de transmissão da psicanálise, nesse texto focalizamos mais especificamente a relação do humor e do riso com o poder, em suas manifestações na relação transferencial. Levando em conta que o meio privilegiado de transmissão é a própria experiência analítica, pensamos que uma reflexão sobre os possíveis usos do humor na transferência abre perspectivas par refletir não só sobre a clínica psicanalítica, como também sobre a formação do analista.
Palavras-Chave: humor, transferência, poder, formação.

Resumen
Dando continuidad a una reflexión anterior a cerca de la función del humor según el modo propio de la transmisión de la Psicanálise, focalizaremos más especificamente la relación del humor y la risa con el poder y sus manifestaciones en la relación transferencial. Tomando en cuenta que el medio privilegiado de transmisión es la propia experiencia analítica, pensamos que una reflexión sobre los posibles usos del humor en la transferencia abren perspectivas para reflexionar, no solamente sobre la clínica psicanalítica, sino también sobre la formación del analista.
Palavras Clave: humor, transferencia, poder e formación.

Resumé
À partir d'une étude antérieure concernant la fonction de l'humour dans les modalités de transmission de la psychanalyse, dans ce texte nous regardons plus spécifiquement les rapports de l'humour et du rire avec le pouvoir, tel qu'il se manifeste au niveau du transfert. Tenant compte du fait que le moyen privilégié de la transmission est l'expérience analytique elle-même, nous pensons qu'une réflexion sur les usages possibles de l'humour dans le transfert peut ouvrir des perspectives utiles non seulement pour la clinique psychanalytique, mais aussi pour la question de la formation de l'analyste.
Mots-Clefs: humour, transfert, pouvoir, formation.

O humor, com seu caráter irreverente e surpreendente, foi objeto de uma reflexão anteriorii, onde relatávamos de que modo seus efeitos puderam remover impasses paralisantes no decorrer de uma experiência de trabalho de um grupo de analistas. Pensávamos então sobre o processo de transmissão da psicanálise, mas obviamente o entrelaçamento das questões da transmissão com o próprio processo analítico já nos aparecia como bem evidente.

No desenvolvimento proposto agora, a partir dessas reflexões anteriores, voltamo-nos mais especificamente para o estudo dos efeitos do humor no processo analítico. Coincidentemente e felizmente, vários trabalhos em torno desta questão têm sido publicados ultimamenteiii, trazendo aportes novos à compreensão dos fenômenos clínicos e institucionais, e propondo releituras interessantes dos próprios textos freudianos referentes ao tema, que são "O Chiste e sua relação com o Inconsciente"( 1905) e "O Humor" (1927).

Se voltarmos nossa atenção para nossas clínicas, encontraremos várias situações em que o surgimento de manifestações de riso, ou de humor, seja na expressão do analisando, seja na do analista, parece apontar para movimentos importantes nessas análises, ora abrindo perspectivas até então insuspeitadas, ora testemunhando uma nova maneira de lidar com sintomas e dores, de parte do analisando. Em outras palavras, parece-nos muitas vezes que o surgimento do humor no âmbito da transferência tem funções muito mais criativas, e porque não dizer, curativas, do que se ele for simplesmente considerado uma modalidade defensiva diante da emergência de angústia, ou em face de uma realidade por demais penosa. Que seja uma modalidade defensiva, como parece ser o pensamento de Freud, mas que possa ser pensado também num espaço de criação.

Como pensar então o humor na transferência, a partir dos referenciais de que dispomos, no texto freudiano, e em outros autores?

Freud, em seu detalhado e exaustivo estudo sobre o chiste (1905), buscou compreender os mecanismos de produção do witz com base na metapsicologia da qual dispunha então, situando-os entre os sistemas PCs-Cs e Ics . Na sua análise do chiste, estava presente a dimensão da busca do prazer, sendo o objetivo deste o de obter com as palavras o mesmo prazer obtido nos jogos da infância. O chiste representaria uma economia na despesa com a inibição enquanto que o humor representaria uma economia na despesa com o afeto. O humor, tratado no último capítulo do livro sobre o chiste, volta a merecer um texto específico de Freud em 1927 (O Humor). Aqui, já dispondo do conceito de narcisismo, e referindo-se à segunda tópica, situa o humor na relação entre o ego e o superego. E mais, acena pela primeira vez com a existência de um superego benevolente, capaz de falar "bondosas palavras de conforto ao ego intimidado", superego que tenta, por meio do humor, consolar o ego e protegê-lo do sofrimento. Para Freud, isso não contradiz sua origem no agente paterno, e o leva até a afirmar que "temos muito a aprender sobre a natureza do superego"iv. Situando o humor como processo defensivo, Freud, no entanto, valoriza-o por seu caráter rebelde e combativo, e por sua capacidade de reconhecer o afeto doloroso, sem negá-lo, tentando sobrepujá-lo pelo riso e pela brincadeira.

O caráter rebelde e transgressivo do riso também foi explorado por Bakhtinv, que propôs uma reflexão aproximando o riso e o poder, em suas essências contraditórias. Apresentou a nova concepção do mundo trazida pelo Renascimento como podendo em parte ser atribuída ao desenvolvimento da cultura popular do riso na Idade Média, onde "ele assumia uma significação positiva, regeneradora e criadora". Na Idade Média, a cultura popular do riso se desenvolveu fora das esferas oficiais da sociedade, onde reinava o tom sério e autoritário, que acorrentava e proibia, associado às intimidações tão próprias do rígido sistema feudal.

O riso era autorizado na vida corrente, que gravitava em torno das festas nas igrejas, que mais tarde foram tomando as ruas e as tavernas. Longe de ser uma manifestação subjetiva e individual, era vivido num espaço de compartilhamento social. As festas representavam abundância material, igualdade, liberdade e renovação. Elas se pareciam com isso que hoje chamamos de carnaval, onde os lugares poderiam estar invertidos: o artesão podia se tornar rei e a camponesa a princesa. O riso aparecia como um triunfo sobre o medo, na suposição de que o medo poderia ser dominado. O homem medieval vivia no riso a vitória sobre o terror divino e sobre as forças da natureza; sobre o terrestre e o não terrestre; e sobre o poder humano e autoritário de sua sociedade. E, ainda que as festas tivessem dia e hora marcados, os cidadãos podiam levar essa experiência consigo, entrevendo assim uma outra realidade.

Numa dimensão mais subjetiva Freud (1908)iv também vai apontar para a existência de uma outra realidade, para a qual a criança é transportada quando no brincar. O escritor faz o mesmo que a criança, ao criar um mundo próprio, considerando que " como adulto, pode refletir sobre a intensa seriedade com que realizava seus jogos na infância; equiparando suas ocupações do presente, aparentemente tão sérias, aos seus jogos de criança, podendo livrar-se da pesada carga imposta pela vida e conquistar o intenso prazer proporcionado pelo humor". Salienta, ainda, que a fantasia é o substituto do brincar infantil, e ao contrário da criança, que exibe seu brinquedo, ele, o adulto exibe suas fantasias sempre com muita inibição. A criação literária oferece a oportunidade para que esses devaneios do adulto, suavizados por disfarces e alterações, nos proporcionem um efeito estético e prazeroso, a partir do qual podemos nos regozijar com os nossos próprios devaneios.

Winnicottvii, com seu conceito de espaço potencial descreve uma área intermediária entre fantasia e realidade, que se desdobrará para a área da criatividade e a experiência cultural. A mãe num primeiro momento é o ambiente que envolve o bebê atendendo às suas necessidades básicas e mantendo, dessa forma, a ilusão de sua onipotência., mas sua tarefa será também a de desiludi-lo gradativamente, a fim de que possam estar, de forma paradoxal, individualmente juntos, abrindo espaço para a mãe como sujeito, e só assim tornando possível a vivência da perda da onipotência do bebê. Uma adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando se dá de forma suficientemente boa, dá a este a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar. É nessa área intermediária entre a mãe e o bebê que toma forma a subjetividade da criança, e é onde Winnicott vai localizar o brincar, a criatividade, a análise e a experiência cultural. Assim, o potencial é o espaço do criar.

Winnicott evidencia o quanto esta área pode favorecer ou não a experiência analítica. Diz ele que " a transferência não é apenas uma questão de relacionamento ou relação, ela se refere ao modo como fenômenos altamente subjetivos aparecem repetidamente. A psicanálise consiste principalmente em propiciar as condições para o desenvolvimento desses fenômenos e, a interpretação dos mesmos no momento oportuno."viii Freud já havia indicado o manejo da transferência como o principal instrumento do qual o analista dispõe para fazer face à compulsão à repetição. Ele mesmo aponta para o caráter lúdico que se apresenta na transferência, comparando-a a um playground, como " uma região intermediária entre a doença e vida real, através da qual a transição de uma para outra é efetuada."iv. Desta forma, podemos pensar o espaço analítico como aberto a inovações, ainda que a condição do surgimento do novo seja a repetição do antigo.

O pensamento de Freud, que já apontava no brincar infantil (fort-da), ao mesmo tempo o caráter repetitivo e criador, encontra ressonância nas reflexões de Walter Benjamimx, que em seu artigo sobre o brinquedo e a brincadeira afirma que a repetição também é a essência da brincadeira e que para a criança nada dá tanto prazer como brincar outra vez. Citando Göethe, ele nos diz: "'Tudo seria perfeito se pudéssemos fazer duas vezes as coisas': a criança age segundo essas palavras de Goethe. Somente ela não quer fazer a mesma coisa apenas duas vezes, mas sempre de novo, cem e mil vezes".

Repetição e transferência vistos dessa forma nos situam no campo do paradoxo. Paradoxo este que faz com que a repetição, que num primeiro momento colocada a serviço da resistência, acarretou um agravamento dos sintomas, num segundo momento cede lugar a novas significações destes mesmos sintomas. Na transferência o paciente projeta no analista uma série de experiências na qual estão envolvidas onipotência e idealizações, que correspondem às agonias da infância, O analista assim é chamado a uma posição de poder, que está associada ao seu suposto saber, do qual o analisando espera que possa vir a cura dos seus males. Todavia, sabemos que nenhuma invenção é possível sem o abandono da onipotência que lhe é atribuída pelo analisando, pois a submissão transferencial impede a emergência de qualquer vivência renovadora.

A condição para que o analisando possa renunciar a sua onipotência, deve então partir do próprio analista, em sua capacidade de reconhecer sua limitação e seu não-saber, estabelecendo deste modo a condição para que uma análise se dê. Segundo Roustangxi, no texto "Como fazer rir um paranóico" que introduz uma série de artigos onde passeia por questões centrais da clínica e da formação psicanalítica, é preciso que o analista antes de tudo possa rir de si mesmo. Roustang toma o paranóico como o paradigma do sujeito contemporâneo, na medida em que apresenta a paranóia como "emblemática da nossa cultura, ao colocar sob os nossos olhos o que podemos produzir de mais refinado no registro da doença mental." Nela encontramos os traços do indivíduo que afasta quaisquer espelhos que lhe devolvam uma imagem desvantajosa. É nela ainda que reconhecemos "uma louca paixão de controle e de domínio...Enfim a paranóia encontra-se em seu ápice na necessidade de um líder que teria determinado antes de nós o saber ao qual podemos nos confiar. E pouco importam os estragos causados por uma tal submissão. Somos todos paranóicos em 'germe'que se sustentam pelo ressentimento ou pela espera exasperada de um reconhecimento e de um poder...Nessas condições, se queremos nos tratar, e ir à raiz do mal, é preciso tratar o paranóico em nós ". E como fazê-lo a não ser pelo riso, riso de si próprio?

A via de acesso a essa forma de riso se daria ao colocarmos em dúvida as certezas em relação ao nosso ofício, bem como às nossas convicções teóricas.O riso de si do analista seria a primeira condição do tratamento. Roustang preconiza mesmo uma " paixão da descrença que deve habitar o terapeuta, não uma descrença defendida, mas uma descrença alegre, uma descrença em ato, capaz de desfazer a cada instante toda compreensão prévia." Coloca-se assim um desafio ao analista de abdicar na transferência de sua posição de poder, para poder estar aberto àquilo que possa vir de criativo e de novo entre ele e o paciente. Deixar-se levar pelo riso, implica na possibilidade de se deixar levar pelo brincar, e assim, permitir ao analisando fazer uso desse espaço privilegiado criado entre ele e o analista, e onde podem emergir o brincar e o humor.

Winnicott ressaltava que a função primeira do analista era " ensinar o paciente a brincar", estabelecendo novas formas de contato com seu sintoma. Brincar implica em poder estar em mais de um lugar, em trocar de papéis, poder fazer de conta que se é um, depois outro e experimentar esse movimento no cenário criado na transferência. O humor, por outro lado, transforma a realidade em algo menos aterrorizador, ao permitir ao sujeito distanciar-se da sua dor e ao mesmo tempo aproximar-se dela de forma menos ameaçadora, com a ajuda do superego benevolente. Podemos esperar que no espaço analítico o brincar e o humor sejam compartilhados entre analista e analisando, de forma a reproduzir algo do espaço potencial primeiro vivido entre mãe e bebê que estabeleceu as condições de surgimento da subjetividade.

O humor, ao permitir ao mesmo tempo uma aproximação e um distanciamento do sofrimento, seja na realidade psíquica, seja no campo social, se apresenta de forma paradoxal. No campo do social ele se diverte com o poder, e no campo subjetivo brinca com a onipotência; tanto num, como no outro ele se move no espaço da ilusão. Se nos transportamos para a cena analítica, a associação livre é por excelência o lugar possível da invenção e do inesperado. O deslocamento de papéis que o brincar e o humor produzem e que emerge na fala do analisando, precisa encontrar no analista uma escuta marcada pela mobilidade e pela invenção, de forma a torná-lo livre para construir sua própria autoria na aceitação do contrário , no reconhecimento da ambigüidade e na convivência com diferenças..
* Agradecemos a Sílvia Tachinardi pela interlocução enriquecedora nos encontros preparatórios de realização deste trabalho.
i - Pontalis, B. "Avant propos", in "L'humeur et son changement' . Nouvelle Revue de Psychanalyse.nº 32 Gallimard Paris, 1985
ii - "Conversa entre analistas: dá para (se) entender?" Maria Nilza Campos, Regina Orth de Aragão, Silvia Tachinardi.
iii - Referimo-nos aos trabalhos de Abrão Slavutsky "A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise é muito séria"; Daniel Kuperman, "Da institucionalização do mal-estar ao mau humor instituído"; Davi Bogomoletz, "Freud Winnicott e o humor"; Jane de Almeida (1998), Achados chistosos, São Paulo, EDUC, entre outros.
iv - Freud, S. (1927) "O Humor" , in Obras Completas, vol. XVII. Imago Ed., Rio de Janeiro.
v - Bakhtin, M. "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais". Ed. UnB, Brasília, 1999.
vi - Freud, S. (1908) . "Os Escritores Criativos e Devaneio", in op.cit., vol. IX
vii - Winnicott, D.W. "O Brincar e a Realidade", Rio de Janeiro, Imago Ed. , 1975.
viii - Winnicott, D.W "O Ambiente e os Processos de Maturação", Porto Alegre, Artes Médicas, 1983.
ix - Freud,S.(1914) "Recordar, Repetir e Elaborar", in Obras Completas, vol. XII. Imago. Ed., Rio de Janeiro
x - Benjamin, W., "Brinquedo e Brincadeira", in Obras Escolhidas, vol. I. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985.
xi - Roustang, François. Comment faire rire um paranoïaque? Paris, Éditions Odile Jacob, 2000.