"CIDADE DE DEUS" - A Exclusão e o Processo Civilizatório

Sérgio Telles

"Cidade de Deus", o festejado filme de Fernando Meireles, é baseado no livro homônimo de Paulo Lins. A matéria prima do romance veio de uma pesquisa sobre criminalidade na favela carioca Cidade de Deus, da qual participou o autor. A partir de personagens reais e fatos ali ocorridos, Lins construiu seu enredo, situado nos anos 70 e 80, mostrando como o tráfico de drogas se iniciou timidamente, apenas mais uma entre várias práticas marginais, como assaltos e roubos, até se instalar como atividade principal das gangues. Vemos ali, in statu nascendi, a força e o poder econômico que essas novas quadrilhas atingiram, a ponto de serem hoje um poder paralelo, que desafia o estado, impondo suas próprias exigências.

Tanto o romance como o filme - que focalizam a extraordinária violência da fração marginal - não estão preocupados em fazer um relato documental sobre a favela como um todo. Em sua rica complexidade social, a favela entremescla trabalhadores honestos e bandidos, em áreas bem delimitadas e discriminadas, segundo o próprio autor. Ele mesmo é uma evidência disso, pois sempre morou na Cidade de Deus com seus pais, numa família bem constituída, estudou regularmente e entrou numa universidade. Antes do romance que foi filmado, escrevera livros de poesia.

É necessário dizer isso para evitar estereótipos que confundem favelados com marginais. Embora ambos convivam em situações muitas vezes sub-humanas, miseráveis e de exclusão, nem todos reagem da mesma forma a essa privação. O que faz com que frente a miséria e suas condições degradantes, alguns optem, se é que podemos falar assim, pelo crime e outros não, é uma das questões que ventilaremos aqui, sem pretender esgotá-la.

"Cidade de Deus" tem como núcleo central o fenômeno da violência e da criminalidade. Se este fenômeno pode ser estudado via depoimentos e estudos sociológicos, a abordagem ficcional não é menos rica, pois a percepção fina e acurada do artista, ao recortar a realidade para montar sua obra, produz intensos e valiosos efeitos de verdade.

Vamos então seguir o enfoque do autor. Embora o filme conte várias histórias diferentes, o núcleo narrativo mais duro está centrado em três adolescentes e seus irmãos menores, entre eles o narrador Buscapé (que centraliza e unifica os diversos episódios contados em flash-back) e a dupla Bené e Dadinho, que terão grande destaque no desenvolver da trama.

Uma coisa que o artista deixa logo patente é a quase total falta de adultos. É como se naquelemundo ali retratado não existissem os adultos, como se não existissem pais ou famílias. A cena é inteiramente dominada por adolescentes e crianças.

Na primeira fase, os adolescentes executam pequenos golpes e assaltos. Não planejam matar ninguém em suas incursões. Se isso ocorre deve-se mais a um imprevisto inoportuno do que a uma ação planejada. O autor mostra a marginalidade num momento pré-tráfico de drogas, coisa que se alterará completamente na década seguinte. O episódio que mostra o final trágico dos três adolescentes e o posterior, que trata da irrupção franca do tráfico, estão ligados pelo personagem Dadinho. Muito mais jóvem, uma criança, ele teimava em participar das incursões dos três amigos. Já naquela ocasião, Dadinho se diferençava pela intensidade assustadora de sua violência e agressividade.

Vemos que Dadinho, adolescente ou jóvem adulto, vai a um pai-de-santo que o rebatiza com o nome de Zé Pequeno, prometendo-lhe imunidade contra os inimigos, caso usasse um determinado amuleto. A partir daí, Zé Pequeno se transforma num chefão da droga. Instaura um reino de terror e violência, apenas mediado pelo amigo Bené, que muitas vezes o contem no extravasar da mais pura violência.

Em determinado momento, Bené se apaixona. Planeja abandonar o crime e viver em outro lugar. Faz uma festa de despedida, onde é acidentalmente morto. Essa perda radicaliza a violência de Zé Pequeno até os estertores finais.

Analiticamente, podemos aprender algumas coisas apresentadas pelo autor. Em primeiro lugar, parece ele apontar para o abandono das crianças - a ausência de pais, adultos, famílias - como uma das maiores causas da violência e criminalidade.

Isso estaria muito próximo da compreensão analítica. Sabemos que para a psicanálise, o ser humano nasce em desamparo e se constitui no contato com o outro. É necessário que sejam exercidas as funções materna e paterna para que o infans se constitua como sujeito desejante. A "função materna" (que não necessita ser executada pela mãe biológica) corresponde não só os cuidados com a vida orgânica do bebê, a satisfação de suas necessidades fisiológicas, bem como o fundamental envolvimento fusional afetivo da díade mãe-bebê, que permite a introdução do bebê no mundo simbólico cultural, através da linguagem. A "função paterna" (tal como dito acima, não necessita ser executado pelo pai biológico) é aquela que vem regular essa relação fusional, pemitindo que a mãe e o bebê se separem e se reconheçam como subjeitos discriminados. Posteriormente, esse pai estabelece a lei, a interdição do desejo, dando à criança acesso ao mundo externo e à realidade. Estamos resumindo os três momentos do édipo segundo Lacan, pois essas relações básicas primeiras vão estabelecer as identificações constitutivas do próprio psiquismo do novo ser humano, organizando as interdições necessárias à vida em sociedade.

A agressão desimpedida e a libido também sem restrições tornariam a vida em sociedade inviável. A civilização, diz Freud, repousa necessariamente na repressão dessas duas grandes forças pulsionais, daí seu permanente e estrutural "mal-estar". Essa repressão que permite o convívio social, se organiza singularmente através das já mencionadas funções paterna e materna, que são internalizadas como o complexo de édipo.

Isso tudo é importante lembrar, pois na medida em que no filme vemos crianças totalmente abandonadas na rua, podemos concluir que esse abandono produz uma definitiva falha estrutural psíquica, onde a regulação da agressividade - uma dotação comum a todos - fica prejudicada.

O filme dá algumas confirmações dessa hipótese. Não é gratuito que Buscapé, de todos os personagens, o único que escapa do inferno ali descrito, advém de uma família constituída, onde aparecem pai e mãe, exercendo suas funções estruturantes. Os demais personagens, parecem organizar suas identificações com os chefes de gangue, incapazes de transmitirem a lei.

Poder-se-ia dizer que não, que tais chefes de gangue transmitem sim a lei, a sua lei própria, diferente da lei "burguesa".

É necessário aqui fazer uma digressão sobre o que analiticamente se chama "lei".

Devemos lembrar que mesmo os animais têm "regras" ou "leis" de convivência para a vida em comunidade. Nem vamos falar das altamente organizadas sociedades das abelhas e formigas, com suas hierarquias e funções muito bem delimitadas. Falemos simplesmente na lei do mais forte, do macho mais poderoso que pode afastar os rivais e manter o maior número de fêmeas. É uma "lei", a "lei do mais forte".

Na verdade, tais comportamentos animais são regidos por instintos inatos e imutáveis. Não podemos falar de "leis", já que essas são produto do mundo simbólico exclusivo do homem.

Mas a sociedade humana, como lembra Freud em seu "Totem e Tabu", também passou por uma etapa semelhante, onde predomina no grupo a "lei do mais forte" , o pai todo-poderoso, que domina todas as fêmeas e expulsas os demais machos.

Não é o momento de relembrar todo o processo descrito por Freud como base de uma organização social. Basta dizer que nela há uma internalização da lei, através do super-ego.

Entretanto, essa forma mais "civilizada" de convivência social não é universal, muitos grupos humanos ainda são regidos pela "lei do mais forte", pela "lei da selva", pela "lei do cão".

Penso que esses grupos, por razões variadas, estão à margem do grande processo civilizatório pelo qual nós, enquanto psicanalistas, devemos batalhar.

É importante não confundir "processo civilizatório" com a imposição de modelos culturais desta ou daquela região sócio-econômico-geográfica. Por exemplo, não se trata de contrapor modelos eurocêntricos aos modelos islâmicos ou confundir o processo civilizatório com as imposições de produtos culturais de uma economia mais desenvolvida sobre outra menos desenvolvida. Muito menos é ele o valorizar modelos étnicos em detrimento de outros, o que levaria a desvios ideológicos cujas conseqüências trágicas em termos de racismo e preconceitos todos nós temos ciência.

O processo civilizatório que menciono aqui teria mais proximidade com o projeto iluminista, que deseja que toda a humanidade possa compartilhar os bens que a cultura e a ciência proporcionam, afastando-nos a todos da ignorância e da superstição. Penso que a Declaração dos Direitos do Homem, estabelecidos pela ONU, deixa claro quais são essas prerrogativas. Não podemos ignorar que muitas situações econômicas, políticas e culturais impedem a consecução desses direitos.

Se é verdade que o projeto iluminista merecidamente tem recebido críticas, como expõe Lyotard, não penso que ele deva ser abandonado, mas melhorado. É essa a posição de Derrida em "Estados d'Alma da Psicanálise" - devemos buscar um iluminismo para nosso tempo, com a colaboração da psicanálise. Um iluminismo que inclua o inconsciente, com todas suas conseqüências na vida pessoal e social. Os projetos político, ético e jurídico, como diz Derrida, precisam incorporar o conhecimento psicanalítico.

Penso que, para Freud, a "lei" e a subseqüente processo civilizatório dela decorrente, passa necessáriamente pelo complexo de édipo, na medida em que, através desse procedimento, ficam estabelecidos os processos repressivos que controlam as pulsões agressivas e sexuais, viabilizando a convivência social. Além disso, com o complexo de Édipo, o sujeito abandona a prevalência do processo primário e a posição onipotente narcísica, condições que o afastam totalmente da realidade, quer seja a realidade psíquica como a factual, e estabiliza o processo secundário, as relações objetais, o contato realístico com as realidades interna e externa. Para Freud, como mostra Lacan, a "lei" implica no abandono do narcisismo onipotente e no reconhecimento da castração simbólica, de nossa incompletude que nos faz desejantes. Esses são pré-requisitos para o acesso à realidade.

Implicaria essa postulação de Freud numa convicção de cunho conservador, políticamente falando, como alguns equivocadamente poderiam pensar? O obedecimento desta "lei', do "nome-do-pai" impossibilitaria a crítica à lei que emana do Estado e que poderá ser perversa, como nos estados corruptos ou totalitários? O respeito ao nome-do-pai faria dos cidadãos súditos submissos do Estado?

Claro que não. A "lei", o "nome-do-pai" (aqui misturo deliberadamente Freud e Lacan, por achar que - nesse ponto - o segundo desdobra com fidelidade idéias do primeiro) permitirá ao sujeito uma visão mais objetiva da realidade, permitindo-lhe, conseqüentemente, uma visão crítica da lei emanada pelo Estado, o que - por sua vez lhe possibilita uma ação política adequada. A não existência desta "lei", do "nome-do-pai", pelo contrário, faz o sujeito permanecer em sua onipotência narcísica, presa de suas fantasias infantis, que toldam a visão clara da realidade externa, ficando o sujeito com dificuldades de nela agir operacionalmente.

Voltando à "Cidade de Deus", com suas crianças abandonadas, entregues à violência mais desenfreada, vemos que não houve o estabelecimento da "lei", do "nome-do-pai". Entregues a si mesmas, as crianças não sofreram o processo civilizatório necessário, implícito na imposição da "lei", da castração simbólica, do édipo. Elas descarregam a agressividade sem peias. Nisso o filme lembra muito o clássico "Lord of the flies", de Golding. Em ambas as situações, vai vigir a "lei do mais forte", a "lei do cão", aquela decorrente da onipotência narcísica de um chefete, que a impõe pela violência, em defesa de seus próprios interesses. As crianças têm esses chefetes como modelos de identificação, com resultados catastróficos. É quase como se a eles ficasse vedado o acesso à realidade, desde que a encaram a partir de enfoques narcísicos e onipotentes.

Acima falamos de como alguns, numa situação de miséria e privações, "optam" pelo crime, enquanto outros não. Talvez uma resposta para isso seja exatamente uma boa construção edipiana.

Ao denunciar o abandono das crianças e suas conseqüências, "Cidade de Deus" levanta uma questão de suma importância. Como vimos acima, o sujeito humano se constitui no contato com o outro, operacionalizado pelas ditas "função materna" e "paterna".

Claro está que o exercício destas funções vai sofrer várias vicissitudes, sendo talvez a maior delas a forma como os pais vivenciaram e internalizaram essas funções ao serem delas objeto, ou seja, quando eram bebês e receberam os cuidados de seus paternais.

Dizendo de outra forma, a forma como os pais vão exercer essas funções não depende de uma deliberação voluntária e consciente, pois elas estão fortemente ligadas a complexos inconscientes, estabelecidos durante suas infâncias.

Isso quer dizer que o exercício dessas funções depende basicamente da estrutura interna dos pais, independe de situações externas. Isso quer dizer ainda que pais que gozem de excelente situação financeira podem abandonar seus filhos, na medida em que não tenham condição de exercer suas funções estruturantes, por impedimentos inconscientes estabelecidos em sua própria história pessoal. Por outro lado, pais com parcos recursos podem se desincumbir muito bem no exercício destas funções.

O abandono das crianças, com suas graves conseqüencias, por decorrer basicamente do inconsciente dos pais, se dá em qualquer classe social. Mas nos excluídos os pais podem se ver impedidos de exercerem suas funções pela situação externa adversa, não por comprometimento interno.

Mas, e é isso que o filme denuncia, há situações onde os pais podem se ver em condições de não poderem executar suas funções estruturantes - não por impedimentos inconscientes internos e sim pela violência da situação externa, como a miséria, que os priva da possibilidade de darem a seus filhos aqueles cuidados que sabemos ser indispensáveis.

"Cidade de Deus" nos faz pensar que a exclusão social e econômica têm efeitos muito mais terríveis do que costumamos admitir. Questiona até que ponto está uma larga parcela da população não só excluída dos bens culturais e do consumo, mas diretamente prejudicados no próprio processo de constituir-se como sujeitos humanos, dado que os cuidados específicos das funções paterna e materna lhe são privados na justa medida, deles tendo substitutos e derivados precários e insuficientes.

Como já foi dito, em "Cidade de Deus", há uma quase ausência de adultos. Eles só aparecem quando é relatada a formação da favela. Eles chegam em massa, com suas malas e apetrechos, o refugo desprezado do resto de uma sociedade injusta, degredado numa zona erma, distante, isolada do "mundo". A sociedade afluente, ao colocá-los nesse estado de exclusão, seguramente produzirá efeitos deletérios em seus psiquismos. Um deles poderia transforma-los em pais decaídos e frustrados, incapazes, impotentes.

Essa questão, patente no filme, só se agudizou desde então. A atual "cultura do narcisismo" apregoa a busca do sucesso e do prazer imediatos, criando naqueles não excluídos imensas expectativas irrealistas, fazendo-os perseguir obsessivamente estas metas e entrarem em depressão ao constatar sua inviabilidade. Se isso ocorre com os não excluídos, o que pensar dos excluídos?

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