Corpos nus

Sérgio Telles

A fotografia, criada em meados do século XIX, teve extraordinária difusão no século seguinte, o recém passado século XX.

Quer seja como registro histórico, ampliando de forma até então inusitada a iconografia de uma época, de seus usos, costumes, acontecimentos importantes e decisivos, juntamente com os personagens marcantes que os protagonizaram; quer seja como expressão artística, quando força as artes plásticas, a pintura principalmente, a procurar novos paradígmas, a fotografia mudou nossa maneira de ver o mundo e nós mesmos.

É ela a mãe do cinema e da televisão, que fizeram com que toda a nossa cultura abandonasse uma tradição ancorada na escrita, passando a se deixar reger pela onipresença da imagem.

A propósito, recentemente vi, aqui em São Paulo, a exposição de obras célebre fotógrafo pioneiro francês Felix Nadar (1820-1910). A agudeza psicológica de seus "portraits", que captam com perspicácia as nuances psicológicas de cada personalidade enfocada dão do que foi falado acima uma boa mostra.

Entre as muitas imagens marcantes do século XX, estão, sem dúvida, aquelas ligadas ao Shoah, ao Holocausto, aos campos de extermínio planejados e executados pelos nazistas na Europa sob a conflagração da Segunda Grande Guerra. Refiro-me especialmente aquelas que mostrar centenas de corpos mortos esqueléticos, amontoados, jogados em valas comuns, sendo levados em carrinhos de mão ou simplesmente depositados em algum lugar.

Esses corpos - em seu mudo estupor - apontam para a inequívoca pulsão de morte presente no ser humano. Sua vontade de destruição, sua capacidade em realizar essa vontade de forma racional e pensada. Como sabemos os campos de extermínio seguiam o princípio de uma linha de montagem industrial, com um elaborado esquema de produção. Embora o Shoah tenha elementos únicos, não é diferente o funcionamento da indústria bélica em geral: a capacidade produtiva da humanidade voltada para a morte, para a guerra que está sempre em andamento em algum quadrante do mundo.

Aqueles corpos esqueléticos amontoados uns sobre os outros jogam na nossa cara a possibilidade terrivel do comportamento bestial do homem, imagem da loucura dos totalitarismos decorrentes de ideologias, essas religiões leigas, tão mortiferas e letais quanto as místicas.

Mas também esses corpos nos afrontam com a realidade da nossa futura morte. Aqui ela aparece despojada dos rituais com que a cultura tenta enconbrí-la - as práticas religiosas, o momento dramático em que ela se dá na privacidade de uma residência, junto com os familiares ou num hospital - muito embora aqui já há uma diferença significativa que não poderemos abordar.

De tudo isso, dos véus encobridores proporcionados pela cultura para ocultar a morte, os corpos amontoados dos campos de extermínio nazistas prescindem. Eles nos lembram que algum dia restará, em algum lugar, nossa carcaça, que outros logo tratarão de dela se desfazer.

Se evoco essa imagem dos corpos amontoados vítimas dos nazistas alemães, imagem que se tornou um dos ícones de nosso tempo, é porque elas me vieram imediatamente à mente ao ver as fotos de Spencer Tunick tiradas há pouco tempo aqui no Ibirapuera. Como se sabe, ele já realizou experiências semelhantes em vários lugares dos Estados Unidos e do mundo, sempre juntando centenas de corpos humanos nus, na maioria das vezes aglomerados em localidades urbanas.

Se as fotos de Spencer Tunick lembram o totalitarismo e a morte, a possibilidade de que se repitam fatos inomináveis, elas, paradoxalmente, apontam para a direção oposta.

Em primeiro lugar, ao contrário das imposições totalitárias, as fotos evocam a prática da liberdade e do respeito aos direitos civis preconizados pela democracia. Aqui estão fotógrafo e fotografados, cidadãos que fazem uso de seus direitos civis, exercitando a liberdade para a produção de uma obra de arte que segue exclusivamente a deliberação e a criatividade do artista, sem dever explicação alguma a censores de qualquer tipo do Estado. Em segundo lugar, são corpos vivos e não mortos. Se estão deitados e imóveis e amontoados é por aceitarem voluntariamente as indicações do artista. Suas posições são decorrência de uma escolha livre de qualquer constrangimento além do próprio desejo de oferecer-se como matéria prima para a obra de um artista.

É, pois, uma mensagem de vida e liberdade.

Há uma outra razão para o impacto da visão destes corpos fotografados por Spencer Tunick.

Além dos corpos vitimados dos campos de extermínio, quando vemos fotografias de corpos humanos agrupados, habitualmente estão eles em movimento, são multidões em manifetações de massa, divertindo-se em grandes espetáculos esportivos ou musicais, participando de cerimônias com líderes políticos ou religiosos.

Nas fotos de Spencer Tunick, não. Os corpos estão em paz. Deitados, imóveis, todos na mesma posição, às vezes dispostos de forma a criar efeitos estéticos. A visão destes corpos nos fazem pensar que é possível a próximidade pacífica entre os homens. Eles podem estar próximos uns dos outros sem que prevaleça a agressão. Esses corpos também fazem pensar que é possível a proximidade entre os homens sem que sejam eles dominados pelo desejo sexual, pelo erotismo. Sim, essas fotos são curiosamente despojadas de qualquer apelo erótico. Assim, curiosamente, esses corpos, em sua máxima materialidade, apontam para a possibilidade da sublimação, do usar as pulsões básicas de amor e ódio direcionadas para a produção de algo que as transcende, uma evanescente e surpreendente obra de arte.

Os corpos de Spencer Tunick estão calmos, como se dormissem. Estão em paz. Estão nus, despidos das roupas, das convicções, credos, ideologias. São tocantes em sua vulnerabilidade física. Estão reduzidos à sua essência humana básica. Mantêm a única diferença impossível de negar dentro de uma igualdade irreversível, aquele diferença que Freud chamou de "destino" - a diferença sexual.

Seria um enigma que nossos corpos, onde repousa nossa mais densa materialidade, possa apontar para nossa mais alta espiritualidade, a sublimação, a criação de arte? Se este é um enigma, é um velho enigma. Basta lembrar a escultura grega, totalmente vinculada à representação do corpo humano e ao representá-lo, transcendê-lo apontando para valores éticos, morais, estéticos. Na verdade o corpo humano tem fascinado os artistas desde sempre.

A diferença entre uma obra de arte e o consumo massificado de informações ficou patente na exploração do evento feito por programas populares da televisão. Em busca do escândalo e da vulgaridade, repórteres constrangeram aqueles que acudiram ao chamado do artista, oferendo seus corpos para a fotografia.

Algum dia será fechado o fôsso entre o povo e a arte?

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