Doxa e Alétheia nas eleições - algumas reflexões psicanalíticas sobre o momento político

Sérgio Telles

Estamos em plena campanha eleitoral e a propaganda nos atinge a todos. Fica-se perplexo ao constatar-se a despreocupação com a verdade nos discursos dos políticos.

Como poderíamos entender tais discursos? Seria seu único objetivo o confundir e esconder o que se interpõe como obstáculo ao poder?

Se cedêssemos a uma tentação nosográfica, poder-se-ia perguntar: seriam produto perverso de psicopatas antissociais? Seriam fabulações deliriosas de "borderlines"? Seriam francos delírios que negam radicalmente os fatos? Nestes discursos, onde ficam a memória, as lembranças que facilmente se oporiam às ficções por eles veiculadas? A propaganda e a publicidade, por definição, tem algum compromisso com a realidade e a verdade?

Esses discursos que guardam pouca relação com a verdade foram examinados por Debord, em sua descrição da "sociedade do espetáculo". Ali diz ele que uma das formas usadas pelo poder para perpetuar-se e afastar opositores, é a criação de um presente "eterno", desligado de um passado e sem dirigir-se a um futuro. Com isso se pretende abolir a história (memória) e destruir o pensamento lógico, que possibilita conexões de causa e efeito, elementos que o poder deseja evitar pelo potencial contestatório neles implícito. Diz Debord: "Busca-se a dissolução da lógica, de acordo com os interesses fundamentais do novo sistema de dominação, por diferentes meios que sempre se apoiaram reciprocamente nessa ação" (1).

Na verdade, o que vemos agora é um problema mais antigo e amplo, que transcende o âmbito do discurso direto dos políticos em época de eleição. Esta é apenas a versão atual e circunstancial da importante questão que diz respeito às relações entre a palavra e a verdade, questão examinada com detalhe pelos gregos entre os séculos VI e V AC.

Naquela ocasião, considerava-se que existia uma palavra sagrada portadora da verdade, Alétheia, só acessível ao aedo, ao poeta sagrado, que a ela chegava após beber nas fontes de Mnemósine (memória) e do Lethes (esquecimento). A Alétheia revelava as verdades apreendidas no mundo dos deuses, percebidas na medida em que o poeta esquecia as situações imediatas da vida humana.

Em contraposição a Alétheia, se organizava a Doxa, a Opinião. A Doxa, a Opinião, foi desenvolvida pelos sofistas, que dessacralizaram a palavra, desvincularam-na dos deuses e da verdade, deram-lhe um estatuto humano, transformando-a num instrumento de persuasão utilizado quando diferentes interesses entravam em conflito. Isso deu nascimento à dialética, ao diálogo, mas rompeu de uma vez por todas a mítica relação da palavra com a verdade.

Alétheia foi abandonada. A palavra agora procura persuadir, levar os interlocutores a concordarem com determinados pontos de vista que, obviamente, obedecem aos interesses em jogo, sem nenhuma preocupação em vincular-se à verdade.

Como a Opinião não tem outro sustentáculo além da persuasão, muitas vezes esta degenerava em coação ou pura violência. Platão tenta resolver o impasse, estabelecendo uma diferença entre Doxa (Opinião) e Episteme (Conhecimento). Doxa, a Opinião, diz respeito à certeza subjetiva sobre determinado tema e Episteme, ao conhecimento objetivo sobre esse tema.

O mito grego explica - através da dessacralização da palavra - a irreversível ambiguidade que marca definitivamente o discurso humano. Deixado a si mesmo, estará ele sempre preso a interesses e desejos que nem sempre têm como prioridade a preocupação com a verdade e a realidade. Daí a importância do referencial ético, único a poder norteá-lo.

O discurso humano que se expressava na retórica dos debates orais, com a escrita passa a ser registrado nos textos das mais variadas características - produções filosóficas, religiosas, literárias, científicas, etc. Os tempos modernos tornaram possível o aparecimento dos meios de comunicação de massa (mídia), que veiculam a informação.

Supostamente a mídia deveria proporcionar a divulgação da informações cujo conhecimento é necessário para o pleno exercício da cidadania na polis. Assim, ela deveria ilustrar o maior número possível de pessoas, dando-lhes conhecimento de fatos e acontecimentos que permitiriam uma maior compreensão da realidade e a possibilidade de nela intervir adequadamente, quer seja no âmbito de suas vidas privadas ou públicas, inseridas num projeto democrático.

Mas é essa a "informação" veiculada pela mídia? Estaria a "informação" mais vinculada à Alétheia ou à Doxa? Seria a "informação" a Doxa levada às últimas consequências?

Se constatamos que a "informação" não está primordialmente preocupada em expressar a verdade, que está sempre enviesada pelos inevitáveis interesses em jogo, podemos pensar que ela é a matéria prima da Doxa, é a Opinião executando seu trabalho de persuasão.

A situação fica ainda mais obscurecida quando se constata a íntima relação entre a mídia e a propaganda (publicidade).

Com a propaganda (publicidade), a Doxa tem sua expressão mais refinada e acabada. É a forma mais eficaz de persuasão usada nas democracias ocidentais para alimentar o grande capital, criando falsas demandas, instituindo a civilização do consumo.

Embora o uso da propaganda com fins políticos evidentemente também ocorre nas democracias ocidentais, ela é mais patente nos países totalitários. Ali a propaganda política é implacável e impõe à força bruta a Doxa oficial, a ortodoxia do partido único.

Em ambos os casos - a propaganda nas democracias ocidentais voltadas para o consumo ou para a propaganda política - sendo esta, como vimos, mais evidente nos paises totalitários - o resultado é o que Debord chama de "desinformação" sistemática, imposta deliberadamente pelo poder. (2)

O conúbio dos meios da mídia com a propaganda produziu uma estranha e proteica entidade, a "opinião pública". Ela é tão importante que nenhum passo pode ser dado por elas sem tê-la consultado, o que é feito através das "pesquisas de opinião".

Assim, "opinião pública" tem uma estranha posição na polis moderna. Ela é produto direto da midia e da propaganda, na medida em que é criada, manipulada, orientada, induzida por elas, e ao mesmo tempo, é um poderoso senhor à qual a midia e a propaganda se submetem inteiramente e a quem não cessam de prestar todas as reverências.

Como já se pode concluir , a "opinião pública" moderna é também um avatar da "Doxa".

Platão mostra sua repulsa frente à prevalência da Doxa (Opinião) em detrimento de Aletheia (verdade) num trecho famoso de sua "República", quando a chama de "Grande Animal". Diz ele: "Que cada um desses particulares mercenários, a quem essa gente chama de sofistas e considera como rivais, nada mais ensina senão as doutrinas da maioria, que eles propõem quando se reunem em assembléia e chamam a isso ciência. É como se uma pessoa, que tenha de criar um animal grande e forte, aprendesse a conhecer suas fúrias e desejos, por onde deve aproximar-se dele e por onde tocá-lo, e quando é mais intratável ou mais meigo, e por quê, e cada um dos sons que costuma emitir a propósito de cada coisa, e com que vozes dos outros se amansa ou irrita, e, depois de ter adquirido todos esses conhecimentos com a convivência e com o tempo, lhes chamasse ciência e os compendiasse, para fazer deles objeto de ensino, quando na verdade nada sabe do que, dessas doutrinas e desejos, é belo ou feio, bom ou mau, justo ou injusto, e emprega todos esses termos de acordo com as opiniões do Grande Animal, chamando bom àquilo que ele aprecia, mau o que ele detesta, mas sem ter nenhuma outra razão para tanto, antes designando por justo e belo o inevitável, porquanto nunca viu qual é a diferença essencial entre a natureza da necessidade e a do bem, nem é capaz de a apontar a outrem". (3)

Como se vê, parece que Platão estava antevendo a existência da "opinião pública" e das "pesquisas de opinião".

A presença da "Doxa" na sociedade moderna foi também objeto de atenção de Karl Kraus, escritor austríaco que produziu no período entre as duas grandes guerras mundiais, de quem Freud era admirador. Durante quase trinta anos, Kraus manteve seu pequeno jornal "Die Fackel" ("A Tocha"), mostrando como a linguagem e a lógica eram sistematicamente distorcidas na imprensa austríaca em função dos interesses do poder. De Kraus disse Benjamim: "Sem se deixar reconhecer, como Harum-Al-Rashid, ele vigia de noite as construções linguísticas dos jornais e, por trás da rígida fachada das frases feitas, espia seus interiores, descobre nas orgias da "magia negra" o estupro, o martírio ds palavras" (4).

Calasso, em um de seus instigantes ensaios, disse que Kraus apontou para uma das poucas, senão única, formas de combater a Doxa imperante, evidenciando sua fraudulenta essência, fazendo com que surja o conhecimento e a verdade: a análise sistemática da linguagem (5).

A análise da linguagem, a desconstrução do discurso político, o detectar a Doxa e desmontá-la são tarefas hercúleas que se mostram sempre necessárias, especialmente num momento como o que vivemos, pré-eleitoral, quando o discurso político, a midia e a propaganda se mesclam muitas vezes para turvar a cristalina aparência da verdade.

A democracia, em termos ideais, é o sistema onde cidadãos conscientes de sua responsabilidade cívica - aquela que diz respeito à organização e manutenção da coisa pública - escolhem aqueles que os representarão no exercício do poder. A instituição da democracia foi um passo importante na criação do estado moderno, superando o poder absoluto dos reis apoiados pela religião e afastando-se dos totalitarismos, dos regimes ditatoriais.

Sabemos como o regime democrático encontra muitos obstáculos para se estabelecer. O processo pode ser desvirtuado deliberada e conscientemente através de atos criminosos de fraude e corrupção. Além disso, a mídia e a propaganda se empenham em confundir e mistificar o eleitor. Nisso se incluiria o que falamos acima, os discursos que com determinação se afastam da verdade em busca da satisfação do desejo de poder.

A coisa fica muito mais complicada com a introdução de mais um elemento, o inconsciente, dimensão psíquica descoberta por Freud. Ele faz com que seja necessário repensar uma série de pressupostos.

A psicanálise mostra que as escolhas proporcionadas pelo processo democrático não obedecem a critérios puramente racionais, conscientes e objetivos. Elas são profundamente influenciadas pela fantasia e desejo inconscientes dos eleitores. Isso faz com que a figura real do candidato fique em segundo plano, substituída que é por outra, construída pela idealização e onipotência nelas depositadas pela ilusão dos eleitores.

Esse fato, que é um dado espontâneo da psicologia das massas, dos grandes grupos, é largamente utilizado pelos "marqueteiros", especialistas em criar e manipular a "opinião pública", que trabalham a "imagem" dos candidatos, adequando-a às ilusões e fantasias infantis dos eleitores, da grande massa. Esse trabalho é monitorado com detalhes a partir das "pesquisas de opinião pública". Desnecessário reafirmar, nestas alturas do processo, o quão distante nos encontramos de Aléteia, o quão embaralhados estamos no reino da pura Doxa.

Isso explica a persistência de determinados candidatos, que apesar de fortíssimas suspeitas de corrupção - e mesmo com comprovados processos criminais em andamento - se darem ao desplante de posarem de severos bastiões da moralidade pública.

Dizendo de outra forma, é necessário entender que o processo democrático é obstaculizado pelas manipulações da midia e da propaganda (que cria "imagens" de candidatos que são "vendidas" ao eleitor/consumidor) e pelos os processos inconscientes destes eleitores (que, em última instância são capitalizados pela mídia e propaganda). Isso, é claro, não retira a validade do processo democrático, mas faz com que se torne necessário pensar meios de superar esses entraves.

Se, num país como o Brasil, somos tentados a atribuir as más escolhas que levam à eleição de políticos corruptos e ineptos ao analfabetismo e à falta de cultura política própria de uma sociedade atrasada e traumatizada com as inúmeras interrupções da prática democrática, basta olhar para outros países mais avançados e com uma população mais educada para constatarmos que a situação exige outra explicação, pois aí também se vêm escolhas desastradas. ISSO SE DEVE ÀS FANTASIAS INCONSCIENTES DOS ELEITORES, QUE TOLDA A POSSIBILIDADE DE UMA ESCOLHA OBJETIVA E REALISTA.

Para que o processo democrático pudesse acontecer a pleno contento, seria necessário que os eleitores pudessem estar em condições de desmontar os discursos mentirosos da midia e da propaganda, além de estarem atentos para as próprias ilusões fornecidas por seus desejos e fantasias inconscientes. A primeira condição depende de uma educação política adequada que os estados deveriam proporcionar e a segunda depende de uma compreensão maior do próprio psiquismo, tornada possível pela psicanálise.

A psicanálise é uma forma de combater a Doxa. Ele traz importantes e novas contribuições para a compreensão das vinculações complexas entre palavra e a verdade.

O sujeito vive escravizado por uma Doxa, uma Opinião de si mesmo, que é o desejo do Outro, no qual está alienado. Sua verdade, sua Aletheia, seu Episteme, lhe são desconhecidos. Trabalhando o discurso, o analista desconstroi a Doxa e deixa entrever a verdade de seu desejo.

Ao fazer isso, possibilita que, a nível social , o sujeito também desconstrua os discursos do poder - Doxas - e procure, atrás deles, a Aletheia, o Episteme da efetiva realidade, da verdade possível.

Sérgio Telles é escritor e psicanalista, membro do Depto. de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, autor de "Peixe de Bicicleta" (EdUFSCar - 2002).
Referências
1) Debord, Guy - A Sociedade do Espetáculo - Editora Contraponto - 1999 - Rio - pg. 187
2) idem - pg 201-207
3) Calasso, Roberto - Os 49 Degraus - Companhia das Letras - São Paulo - 1997 - pg .65
4) - idem - pg 69
5) - idem - pg 66