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O psicanalista lê os jornais
Sérgio Telles
1) As Fotos da Tortura no Iraque
São várias as fotos. Não as tenho agora sob minhas vistas e as descrevo de memória. A primeira coisa que nelas chama a atenção é a nudez dos prisioneiros, contrastada com a pesada vestimenta militar dos soldados americanos. Numas fotos, eles estão amontoados uns sobre os outros, como uma pirâmide de corpos nus, observados por soldados. Noutra, os prisioneiros estão enfileirados e um deles manipula os próprios orgãos genitais, no que é observado por uma soldada que parece se divertir com a situação. Mais uma e vemos a mesma soldada apontando para os genitais de um prisioneiro, como que ridicularizando-o. Uma outra: um soldado sentado sobre o corpo de prisioneiro deitado no chão. Cães retidos por soldados ameaçam atacar um prisioneiro despido. Prisioneiros simulam relações sexuais. Aquela soldada, a mesma que aparece em várias fotos e que depois viemos a saber que se chama Lynddie England, segura uma coleira presa ao pescoço de um prisioneiro despido, que se arrasta pelo chão.
Pergunto-me porque me esforço em descrever fotos que circularam e foram vistas pelo mundo inteiro. Pareceria um trabalho desnecessário. Mas penso que, ao descrevê-las, ao escrever sobre suas características, eu as retiro do registro visual e as recodifico na linguagem escrita. O efeito imediato sobre isso é o escapar do fascínio que a imagem - qualquer imagem - sempre nos provoca. A imagem nos seduz e nos suga para seu interior, tornando mais difícil o sempre penoso trabalho de pensar. E o que pretendo aqui é justamente pensar sobre essas fotos. Não apenas me revoltar com a violência da situação ou - mais secretamente - gozar com as cenas sado-masoquistas ali representadas.
Como disse acima, o que logo atrai nosso olhar é a nudez dos prisioneiros. Porque ela nos atrai o olhar tão intensamente? Porque ela nos escandaliza mais que os corpos mutilados e mortos, vitimados dos bombardeios e tiros decorrentes das ações da guerra? Por que a nudez é usada como instrumento de tortura?
Se tomamos a Bíblia, vamos encontrar no Gênesis o relato inaugural do escândalo provocado pela nudez. Como se sabe, realizada a criação, Deus cria Adão e Eva. Inicialmente, eles "estão nus e não tem vergonha" (Gen, 2-25). Mas Eva, desobedecento a ordem divina, deixa-se seduzir pela serpente e come - juntamente com Adão - do fruto proibido. Imediatamente, "os olhos de ambos se abriram e viram que estavam nus; teceram folhas de figo e com elas se cobriram"(Gen, 3,7). Pouco depois, Adão foge da presença de Deus e, ao ser por ele interpelado, diz que "estava com medo, pois estava nu" (Gen, 3-10). Deus lhe pergunta, "como sabes que estás nu?"(Gen, 3-11). Conhecemos o desfecho de tudo - Deus expulsa Adão e Eva do Paraíso, condenando-os às agruras da vida humana e à morte ("tu és pó e ao pó retornarás" - Gen, 3-19).
Fazendo um pequeno parêntese. Para escrever esse texto voltei a ler trechos do Gênesis, coisa que há muito não fazia. Fui arrebatado pela beleza literária e intrigado com sua riqueza simbólica enquanto mito das origens, o que me fez levantar questões muito mais amplas que aquelas que eu ali buscava, ligadas à nudez. Embora sabendo que tais questões já ocuparam legiões de estudiosos (religiosos ou não), aos quais não consultei neste momento, não resisto à tentação de me deter um pouco sobre o que essa leitura me sucitou, desviando-me de meu objetivo principal, ao qual logo retornarei. A primeira coisa que chama a atenção diz respeito a como Deus é ali apresentado. Onipotente e onisciente, ele cria o universo do nada. À sua imagem e semelhança, cria Adão e Eva e os deixaria no Paraíso, desde que o obedeçam e a ele se submetam sem nenhum questionamento. Estabelece uma única interdição, que - ao ser contrariada - descobre-se que objetivava vedar o acesso ao conhecimento. Perguntas: Deus nos queria submissos e ignorantes? Reservaria para ele toda a quota de conhecimento, mesmo aquela que Adão e Eva - com as limitações próprias à condição de meras criaturas - poderiam ter? Essa descrição de Deus poderia ser entendida psicanaliticamente como a representação mítica de pais narcisistas e onipotentes, incapazes de verem suas próprias falhas, intolerantes com a expressão própria e singular que os filhos podem vir a ter (eles são criados à "sua imagem e semelhança"), além de exigirem deles a mais completa obediência e submissão, objetivando mantê-los infantilizados e castrados, em estado de permenente dependência, ignorância e desconhecimento, especialmente no que se refere à sexualidade. Um outro aspecto que salta a vista é o papel que a mulher desempenha no Gênesis. Ela é apresentada claramente sob um enfoque negativo, desde que lhe é atribuída a desobediência que desencadeia a ira divina e a punição extrema - a expulsão do Paraíso. Ela é a incapaz de manter o compromisso, são dela a fraqueza e a traição. Mas, ao se deixar seduzir pela serpente-falo-pênis, não expressaria Eva o desejo de crescer, de reconhecer a diferença sexual, de exercer sua sexualidade, de testar a possibilidade de procriar? Os desejos de Eva não são legitimados, são severamente punidos. Deus diz que haverá sempre um ódio entre os descendentes da serpente e os da mulher. Indicaria isso que a mulher, a curiosa, a que quer ter conhecimentos, tem para sempre seu acesso a eles interditado? Por isso ficaria relegada a um papel secundário, ao lugar doméstico de mãe? Seria esta uma das raízes culturais da forma depreciada com a qual a mulher é vista, o considerá-la menos confiável, mais vulnerável e frágil, incapaz de manter a palavra, um ser inferior? Afinal, é nessa condição que a mulher viveu durante muitos séculos, até recentemente ter seus direitos reconhecidos, ainda que não universalmente. Nesse particular, não precisamos lembrar da condição da mulher no Islã e na África, pois mesmo em nossas civilizações ocidentais tal visão denegrida persiste.
São questões interessantes, mas voltemos ao nosso tema - a nudez. Vimos sua evitação no Gênesis, nos momentos inaugurais da humanidade. Cobríamo-nos não para nos proteger das intempéries e sim para esconder o sexo. Adão e Eva tecem um "avental' com folhas de figueira. Não seria despropositado pensar que Freud inspira-se nesse relato bíblico quando atribui o trançar e o tecer como algumas das poucas contribuições femininas para as descobertas e invenções na história da civilização. Tal invenção visava cobrir a genitália da mulher, no caso a ausência do pênis. ("Feminilidade" - Conferência XXXIII - 1933 - vol. XXII - Standard Edition - Imago -1969 - p.162).
Pode-se considerar que o relato bíblico simboliza o momento descrito por Freud da descoberta das diferenças anatômicas sexuais.Na fantasia da criança, a nudez inicialmente não tem significado ("estavam nus e não tinham vergonha") pois ela acredita que todos os seres humanos somos iguais. Todos temos falos. Se ele está presente em alguns e falta noutros, a mente infantil resolve esse problema apelando para uma experiência já armazenada em sua jovem existência: a dentição. No início todos têm uma gengiva lisa, sem dentes. Mas logo eles aparecem, "nascem". Assim, ao observar que algumas crianças têm pênis e outras não, ela não se preocupa, pois, mais cedo ou mais tarde, eles "nascerão" - tal como ocorreu com a dentição.
A partir de um determinnado momento, essa diferença não mais é equacionada dessa maneira. Pensa a criança que aquelas nas quais o pênis não é visível, isso deve-se ao fato de terem-no extirpado, cortado fora. Aqueles que o exibem, correm o risco de sofrer a mesma mutilação. As meninas, que são aquelas que supostamente sofreram a castração, quando o pênis lhes foi cortado, roubado, tirado, ficariam permanentemente com a queixa, o ressentimento e a inveja. Já os meninos, que não sofreram a castração, ficariam para sempre ameaçados de perderem-no.
Essa dramática mudança se dá em função do complexo de édipo, das fortes correntes amorosas e raivosas dirigidas para os pais, decorrentes dos desejos de exclusividade no amor ao pai ou à mãe - esses "deuses" poderosos e imprevisíveis.
Desta forma, o homem possui o pênis, mas não está seguro de sua permanência, está sempre angustiado, executando rituais que o reasseguram quanto a sua presença, exconjurando a sempre pendente ameaça de castração. O machismo é uma supercompensação frente essa angústia, expressando-se como medo da submissão ou passividade frente a outro homem, condições vividas imaginariamente como castração. As mulheres sentem-se prejudicadas e inferiorizadas, ressentidas e invejosas por não terem aquilo que pensam ser uma garantia de completude e felicidade.
As conseqüëncias psicológicas das diferenças anatômicas entre os sexos poderiam, a nível simbólico, conduzir a um abandono do narcisismo onipotente e à aceitação do outro e do diferente. Ter ou não ter um falo passa a ser o símbolo fundamental de nossa imcompletude humana. Mas nem todos conseguem atingir essa compreensão e se aferram aos fantasmas imaginários do falicismo, acreditando numa superioridade do homem e no desprezo e ódio à mulher, o que explicaria a posição social inferior que ela tem ocupado por tantos séculos. Machistas e feministas relutam ver que ambos, mulheres e homens, são - para sempre - incompletos e desejantes.
Por outro lado, autores como Melanie Klein e seus seguidores, que enfatizaram a importância da relação dual com a mãe, a mais primitiva e fundamental de todas as relações, permitiriam entender o ódio à mulher de outra forma. O desprezo à mulher decorreria não do fato de ser ela imaginariamente castrada, mas da inveja que um dia, no passado, ela despertou no seu então bebê, ao exibir para ele seu seio bom, do qual ele dependia de forma absoluta ou seu seio mau, que tanto o perseguia. O ódio às mulheres seria uma terrível vingança pelo excessivo poder que ela - enquanto mãe - um dia exerceu sobre os filhos. É o terror do poder sedutor e envolvente das mães que desencadeia o ódio e desprezo à mulher. Embora essas idéias possam decorrer das teorizações kleinianas, elas não estão ali explicitadas e sim, curiosamente num autor como Stoller, um freudiano mais criativo. Diz ele: "Com isso quero me referir ao fato de que os meninos precisam realizar um ato de separação frente à mãe que as meninas não têem necessidade de fazer. Esse ato imaginário estabelece, dentro dos meninos, uma barreira contra o desejo primitivo de permancerem fundidos com suas mães, de não serem indivíduos separados de suas mães e, assim, de não poderem ter certeza de serem efetivamente machos. Em outras palavras, eles temem se transformar em mulher. Muito da masculinidade em todas as culturas deriva deste conflito: a ênfase no falo, o medo da intimidade com as mulheres, o medo de ser humilhado pelas mulheres, a necessidade de humilhar as mulheres, de fetichizá-las" (Pain and Passion - A Psychoanalyst explores the world of S & M - Robert Stoller - Plenum Press - New York / London - 1991 -pg. 42 ; livro resenhado em Psychiatry on Line Brazil - www.polbr.med.br - arquivo - fevereiro 2001).
Claro que ambas interpretações - o desprezo às mulheres decorrente de serem elas consideradas 'castradas' e o ódio retroativo pelo excessivo poder materno - não são excludentes e devem-se sobrepor, abrangendo a costumeira sobredeterminação presente nos fenômenos inconscientes.
A visão de corpos nus, especialmente os do sexo oposto, terá uma conotação prazerosa, francamente erótica, tanto mais estejam distantes as angústias fálicas infantis, que os via apenas como castrados (percebidos com horror - visão masculina) ou não castrado (percebidos com inveja - visão feminina).
O reconhecimento das diferenças anatômicas sexuais só acontecem, claro, estando os corpos desnudos, em estado de nudez. O uso das roupas faz parte da estratégia do mal-estar na cultura, da repressão da sexualidade, da não estimulação dos desejos sexuais através do olhar. A cultura exige que andemos vestidos. Só nos despimos na maior intimidade e confiança - nos atos de higiene, nos procedimentos médicos e na prática amorosa.
A nudez nos expõe em nossa vulnerabilidade. Muito embora seja verdade que a nudez nos deixa com menos defesas aos ataques físicos do que se estivermos com roupas, a vulnerabilidade que me refiro é maior e de outra ordem. A nudez nos deixa à mercê, no plano mais profundo, dos antigos fantasmas da castração - do angústia decorrente do perigo que ela possa ocorrer ou da humilhação de se exibir já castrado.
Há algum tempo, escrevi um texto sobre as performances de Spencer Tunick ("Corpos Nús", neste site, em "Atualidades via Psicanálise", textos em interlocução), o artista que faz instalações com corpos nus de voluntários convidados a participar do evento. Na ocasião, mencionei a imagem dos corpos nus e amontoados do Holocausto, contrapondo-a com a dos corpos vivos da instalação artística. Lembro esse acontecimento porque a nudez também é um índice de liberdade de escolha. Habitualmente, só nos despimos quando queremos e desejamos. Se isso ocorre contra nossa vontade, se somos forçados a nos despirmos, configura-se uma situação de violência e constrangimento, agravados por todas as conotações profundas implicadas na exibição de nossos corpos nus, como mencionamos acima..
Por todos esses motivos, a nudez chama nossa atenção. Também fica claro o seu uso nas técnicas de tortura, como forma de debilitar a resistência de prisioneiros. A nudez imposta nos faz regredir psiquicamente. Deixa-nos desvalidos e expostos a alguns de nossos fantasmas mais angustiantes. As roupas estão embuídas de cargas simbólicas protetoras, pois trazem os emblemas da classe social, do gênero sexual, da identidade profissional, etc. Nus, estamos despojados daqueles referenciais identificatórios, restando apenas os que estão focalizados diretamente no corpo e, neste, na diferença sexual, o que nos remete de volta à discriminação primeira e imaginária - castrado, não castrado, já castrado, a-ser-castrado.
As fotos do Iraque merecem ainda duas observações.
1) Não seria um tanto hipócrita a universal indignação com a publicação das fotos de tortura? Por acaso ninguém sabe que a tortura é usada sistematicamente em todas as guerras? Esqueceram que "guerra é guerra", como diz o velho ditado, e que, nessas circunstâncias a violência e a destrutividade estão à solta, executando todas as atrocidades que a mente humana é capaz de engendrar? Como lembra Derrida ("De que futuro", Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003) durante as guerras, cria-se a figura jurídica do "inimigo" e, com ela, a permissão legal de assassiná-lo. É verdade que não devemos desprezar o simbólico que torna possível transformar o "inimigo" a ser assassinado num "prisioneiro" ao qual se deve proteger, mas vê-se que o problema é muito mais amplo.
2) As fotos evidenciam a revolução na comunicação trazida pelas câmeras digitais e pela internet, veiculando com grande facilidade imagens que antes seriam inacessíveis ao público. Essa é uma boa coisa - talvez a única - desse episódio macabro. O pensarmos que o controle da informação próprio dos regimes totalitários e dos estados em guerra fica cada vez mais difícil, permitindo o trabalho daqueles que não se furtam a exercer sua humanidade mesmo quando esta parece ter desaparecido a seu redor. Não sei bem como as fotos chegaram a público. Mas me agrada pensar que algum soldado, inconformado com a barbárie, o tenha enviado para o mundo como um protesto. Se assim foi, envio-lhe daqui meus comprimentos e solidariedade.
2) A candidatura de Maluf e a sociedade de espetáculo, o reino do simulacro.
Recentemente soubemos pela imprensa que autoridades suiças confirmavam a entrada, em um único dia, de 155 milhões de dólares em contas de Paulo Maluf naquele país. Tal informação vem dar prosseguimento a um processo que se arrasta há anos e que o acusa de desvio de verbas de obras públicas.
Pela lógica, frente a tal situação, deveríamos concluir que a candidatura de Maluf estaria impugnada pelo próprio partido, que não teria interesse em ser associado a um político corrupto. Além do mais, pensaríamos que ele seria rejeitado por qualquer eleitor com um minimo de neurônios.
A realidade, entretanto, não poderia estar mais distante das proposições lógicas desenvolvidas acima. O que vimos foi Maluf impor sua candidatura na convenção do partido e proferindo para o público, através da midia, um discurso no qual promete dar o dinheiro "a quem achá-lo", afirmando que tudo não passa de calúnias contra sua candidatura vitoriosa.
Esse episódio nos faz pensar muita coisa.
Constata-se aí uma dissociação completa entre fatos comprovados e um discurso que os ignora. Isso caracteriza o discurso do político, de modo geral. É um discurso sem nenhum compromisso com a verdade, que visa exclusivamente a consecussão de objetivos pragmáticos ligados à conquista do poder.
Vivemos hoje numa sociedade do espetáculo (Debord), na qual, cada vez mais, importam as imagens ou os simulacros e não os fatos, situação possibilitada pelo desenvolvimentos das midias eletrônicas e pelas pesquisas de opinião pública. No caso em pauta, o partido de Maluf não está preocupado primordialmente com o fato de ser comprovada ou não sua corrupção. A preocupação primordial é avaliar a resposta do público a essa informação, através das pesquisas de mercado. É a partir dessa reação do público, ou seja da imagem que o público faz do ocorrido, que o partido irá agir.
Como se sabe, essa é a base da propaganda politica e da publicidade comercial. Distante da verdade, os discursos próprios dessas produções miram objetivos específicos - o acesso ao e a permanência no poder, por parte dos partidos políticos e o aumento do consumo, por parte da indústria e do comércio.
Seguindo essa lógica, entendemos porque os governos investem tanto em publicidade. Por exemplo, se há uma queixa da população de que a educação está sendo negligenciada - não há investimentos na formação de professores, não há remumeração digna, faltam salas de aula, etc., - o governo não reconhece publicamente essas falhas, nem toma providências para saná-las. Pelo contrário, vai criar um mundo fictício na midia que afirma o contrário do que ocorre na realidade - são produzidas propagandas que mostram alunos impecáveis, em escolas magnificas, com alegres e bem dispostas professoras. Essa situação de total distanciamente da verdade nos faz viver num simulacro de realidade.
Voltando a Maluf, é importante frisar uma frase que ele sempre usa quando é acusado de corrupção. Ele lembra que todas as suas contas foram aprovadas pelo Tribunal Regional de Contas. Deixando claro o que Maluf está dizendo: se suas contas foram fraudulentas e permitiram o desvio comprovado de 155 milhões de dólares numa única conta no mesmo dia (o que não exclui outras contas, outros milhões, outros dias), a fraude ocorreu com plena anuência e cumplicidade dos senhores juizes daquele ínclito tribunal.
Para que sejam desbaratadas as redes de corrupção instaladas no estado, são organizadas comissões de inquérito e investigações várias, que têm o objetivo precípuo de nada descobrirem ou investigarem, configurando assim um outro excelente exemplo de 'simulacro'.
Diz Baudrillard: "Quando as coisas, os signos, as ações, são libertadas de sua idéia, de seu conceito, de sua essência, de seu valor, de sua referência, de sua origem e finalidade, entram então numa auto-reprodução ao infinito. As coisas continuam a funcionar, ao passo que a idéia delas já desapareceu há muito. Continuam a funcionar numa indiferença total a seu próprio conteúdo. (...) mas as conseqüências dessa dissociação podem ser fatais. Qualquer coisa que perca a própria idéia é como o homem que perdeu a sombra - cai num delírio em que se perde".
(A transparência do mal - Papirus Editora - 7ª edição - 2003 - p. 12)
(Veja nesse mesmo site, sobre o mesmo assunto, "Doxa e Aletheia - algumas reflexões psicanalíticas sobre o momento político" - em "Atualidades via Psicanálise")
3) "Pântano" (La Ciénaga)
Li em algum lugar como é gritante a diferença entre as crianças dostoieviskianas e as crianças freudianas. As primeiras sofrem o diabo nas mãos de seus pais e mães, pessoas loucas e malvadas. As crianças freudianas, por outro lado, são cheias de ódio e luxúria, desejam a mãe e querem matar o pai. Embora caricata, parece-me pertinente essa descrição, no que ela evidencia ênfases diferentes. Dostoievski aponta para a realidade factual e concreta que envolve as crianças, seus pais loucos e violentos que os atormentam de várias formas. Freud aponta para a realidade interna dos desejos e fantasias inconscientes.
Podemos entender que Freud precisou enfatizar esse ângulo para ressaltar sua descoberta do inconsciente e da psicanálise, ocasionando com isso uma certa desconsideração pela realidade externa. Gabrielle Rubin vai mais longe e diz que Freud ignorou a realidade externa, ou seja, a família, em função da vergonha que a sua lhe trazia, sob vários aspectos. (Gabrielle Rubin - Le Roman Familial de Freud - Paris - 2002 - Psychiatry on line Brazil - fevereiro de 2003)
De qualquer forma, nós, que recebemos o legado freudiano, estamos numa situação mais confortável e podemos nos dar o luxo que o próprio Freud não pode ter. Refiro-me a poder estabeler os elos entre o mundo externo dos "pais loucos" e e o mundo dos filhos desejantes - assassinos edipianos e culpados hamletianos. Na prática, isso significa a psicanálise poder se interessar pela família como privilegiado objeto de estudo.
Tais idéias me ocorrem em função do filme "O Pântano" (La Ciénaga), 2001, da jovem cineasta argentina Lucrécia Martel.
As cenas iniciais de "Pântano", quem sabe, estão destinadas a se tornarem classicas. Em volta de uma piscina imunda, os mais velhos de uma família estão bêbados e incapazes de socorrer a um deles que se machuca com alguma gravidade. Cabe às crianças cuidarem dos mais velhos. Em seguida vemos essas crianças armadas, caçando coelhos com espingarda e olhando calmamente o tormento de uma vaca impossibilitada de sair de uma poça de lama, onde está atolada até o pescoço. E ela ali ficará até morrer, sem que ninguém se dê ao trabalho de libertá-la.
Em "Pântano" vamos encontrar uma família onde os pais abandonaram suas funções estruturantes e se afogam num profundo marasmo torporoso decorrente do alcoolismo. Os filhos se viram como podem.
O que mostra o vigor criativo da cineasta é o fato de não ser ela maniqueísta. Se a família está atolada num "pântano", como a vaca, nem por isso ela está morta. Se os pais estao perdidos em sua melancolia, em suas perdas irreparáveis, os filhos se preparam para a grande aventura da vida, do sexo, do amor. Como as interdições paternas não existem, a sexualidade está sempre a um passo do incestuoso, do promiscuo.
A autora não esquece de mostrar os preconceitos de classe e de etnia, como no trato da patroa com a empregada "india".
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