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Tempo, História, Memória, Demência
Delia Catullo Goldfarb
Resumo
No presente trabalho procuro articular os conceitos de tempo, história e memória com a questão das demências do ponto de vista da psicanálise, tema da pesquisa de doutorado que realizo atualmente no IP-USP sob orientação da Profa Dra Ana Loffredo. Depois de alertar para a magnitude atual desta problemática, faço um apanhado sobre os temas teóricos propostos, uma breve apresentação do fenômeno demencial e finalmente coloco à discussão algumas idéias para pensar a psicopatologia psicanalítica das demências.
PALAVRAS-CHAVE: sujeito, simbolização, trauma, depressão.
Resumen
En este trabajo busco articular los conceptos: tiempo, historia, memoria y demencia desde el punto de vista del psicoanálisis, siendo que es éste el tema de la ivestigación de doctorado que actualmente realizo en el IP-USP com la orientación de la Dra Ana Loffredo. Comienzo alertando para la importancia actual deste problema, después hago un breve pasaje por los temas teóricos propuestos, una breve presentación del fenómeno demencial para finalmente proponer la discusión sobre los aspectos psicopatologicos.
PALAVRAS LLAVES: sujeto, simbolización, trauma, depresión.
No ano de 2015 mais de 1 bilhão de pessoas terá mais de 60 anos, o que representa mais do 15% da população total. Atualmente, 150 milhões de pessoas idosas sofrem algum tipo de doença demencial com diferentes graus de dependência.
Considerando o envelhecimento populacional e a constituição e dinâmica da família moderna, numericamente reduzida em relação à do começo do século XX comprovamos que esta não tem mais condições de abrigar e cuidar de seus idosos dependentes, constituindo-se assim um problema de difícil solução para a Saúde Pública e a Previdência Social.
A doença demencial, tanto pelo grau de dependência que provoca, quanto pela sua prolongada evolução, é uma das mais caras que se tem conhecimento, exigindo frequentemente longos anos de institucionalização.
Ao nos defrontarmos com a questão demencial pensamos primeiramente numa deterioração neuronal. Sem querer negar esta constatação do ponto de vista biológico, não podemos deixar de nos questionar sobre alguns outros enfoques.
No meio médico atribui-se apenas 15 % das demências a causas psicológicas, mas, uma vez que a etiologia desta doença ainda não foi totalmente esclarecida, podemos pensar que esta porcentagem pode ser muito maior. Devemos considerar também que os exames necroscópicos frequentemente contrariam os diagnósticos clínicos e não apresentam a deterioração neuronal esperada para a gravidade da sintomatologia apresentada, ou seja, nem sempre existe correspondência entre as lesões orgânicas e as perturbações psíquicas.
Pretendo com este breve trabalho colocar em pauta a questão das demências do ponto de vista da Psicanálise. Por ser este o tema de minha incipiente pesquisa de doutorado que desenvolvo atualmente no IP-USP, espero me enriquecer com esta discussão.
Quanto mais nos aprofundamos no tema, mais difícil resulta definir quando começa a velhice e o que é ser velho: com quais critérios o definiríamos?. Percebemos claramente que, com o aumento das expectativas de vida muda o conceito de velhice . Como quase tudo o que tem a ver com a experiência humana, as idéias sobre o envelhecer também mudam com o passar do tempo.
Mas o tempo não é só aquilo que passa, permitindo a construção de conceitos, construindo memória, criando histórias. O curso da vida não é um curso de tempo regular, perante o qual o sujeito é um mero espectador. A experiência psicológica do tempo não é mera exterioridade, mas produto de um trabalho psíquico estruturante da identidade. Neste sentido, envelhecer não será seguir um caminho já traçado, e sim, a construção de uma identidade.
Tempo, temporalidade, consciência de finitude, tempo subjetivo são conceitos que marcam um caminho a ser trilhado para melhor compreendermos os fenômenos que caracterizam o envelhecimento humano.
Ao longo da história da humanidade foram muitos os pensadores que se preocuparam com a questão do tempo e suas articulações com a história e a memória como fundantes da subjetividade. Freud não escapou da preocupação, mas não encontramos em toda sua obra um só artigo dedicado exclusivamente ao tema do tempo, porém, ele transita por toda seus textos como observamos nos conceitos de repetição e rememoração por exemplo. Mas será especialmente através do conceito de posterioridade que liga a temporalidade à causalidade psíquica, que Freud nos oferecerá os elementos necessários para pensar a questão da historicidade do sujeito.
A idéia de efeito de posterioridade ou après-coup, não pode ser reduzido ao simples efeito do passado sobre o presente, como um determinismo linhar. Antes, deveremos pensá-lo como a possibilidade de transformação "a posteriori" deste passado, uma verdadeira reinscrição ou resignificação das recordações. Uma construção histórica que questiona o conceito de verdade e de memória.
Se temos uma história é porque conseguimos registrar na memória os acontecimentos significativos de nosso passado, descobrir aquilo que permanece e o que muda, e assim, confirmar nossa identidade. Tomamos de Piera Aulagnier o conceito de "Projeto Identificatório" que define a construção contínua do Eu pelo Eu, necessária para que esta instância possa se projetar num movimento temporal, ou seja que esta projeção depende da própria existência do Eu, do Eu como instância constituída historicamente. Temporalidade e historicidade do sujeito são então inseparáveis. A entrada em cena do Eu é a entrada em cena de um tempo histórico. "O saber do Eu pelo Eu tem como condição e finalidade, assegurar ao Eu um saber sobre o Eu futuro e sobre o futuro do EU" (Aulagnier, 1979, cap. IV, p. 154). Cria-se então um "compromisso identificatório" do qual o Eu será o grande redator. Neste compromisso uma parte de suas cláusulas não deverá mudar para garantir a identidade, enquanto outras deverão ser sempre modificáveis para garantir o devenir dessa instância. (Aulagnier, 1991, cap v, p. 224)
À psicanálise interessa sempre a história atualizada, a leitura que o sujeito faz hoje dos fatos do passado, os efeitos transformados e transformadores da subjetividade ao longo do tempo, aquilo que se constitui como a sua "verdade". Assim o efeito de posterioridade não é uma simples ação diferida no tempo, não é o retorno idêntico do passado, uma vez que este não é um acúmulo de recordações depositadas em algum lugar, à espera de um estímulo qualquer; pelo contrário, é uma reconstrução realizada no presente do que foi vivido no passado. A memória não responde pela ratificação do passado e sim pela construção do presente. O passado não existe se não for lembrado, e só o será se a partir do presente for chamado a construir um sentido para a identidade. Esta história vivencial pouco ou nada tem a ver com a história biográfica que se pretende objetiva e verdadeira.
Em seu texto de 1915 "O Inconsciente" Freud afirma que os processos inconscientes são atemporais, que não são ordenados, nem modificados em relação ao tempo. Mas, tratando-se de processos, fica difícil pensá-los sem movimento. A modo de hipótese, penso que o tempo do inconsciente pode ser considerado como tempo de repetição. Daquilo que, apesar de nossos esforços elaborativos, retorna sempre igual, parecendo fruto do destino, nos surpreendendo e nos mostrando que alguma coisa que não controlamos acontece, a qual seria melhor poder esquecer.
Mas, na consciência, o sentimento de finitude é exclusivo do ser humano. Ele é o único ser vivo que sabe que vai morrer, e como tal se organiza para isso. Acreditamos que a temporalidade humana se constrói sobre uma linha temporal que a partir do presente nos permite avaliar o passado, retificá-lo e nos projetar no futuro. Este é o movimento da historicidade humana, que cria subjetividade e preserva a identidade, dando um sentido de permanência.
Proponho-me a analisar o tempo de vida como um "tempo cronológico" que podemos medir de acordo com as diferentes convenções, mas que vivenciamos fora de qualquer acordo; "tempo subjetivo" de construção do sujeito psíquico, que não podemos medir, a não ser na sua mais pura intensidade. Tempo de construção da "história vivêncial" que resiste à mesura do "registro biográfico".
O tempo do envelhecimento se caracteriza pela presença do sentimento de finitude que é vivenciado com diferentes qualidades e intensidades emocionais dependendo das características de cada sujeito e das diferentes experiências de proximidade com a morte por ele vivenciadas ao longo de sua vida.
Estas proximidades com a morte, marcam experiências de luto, ou seja, de elaboração de perdas, processo sempre necessário para que venham se instaurar outros objetos no lugar do perdido, para que outros investimentos sejam possíveis e a libido continue a produzir vínculos.....e vida.
Mas existem casos em que esta elaboração parece não ser possível. E aqui entramos no campo do traumático, daquilo que pela sua intensidade e modalidade de inscrição não pode ser retomado na posterioridade, aquilo que se constitui como um resto de impossível elaboração e que marca os limites e é o grande desafio de qualquer psicoterapia. O inominável que não se representa simbolicamente e só pode ser atuado no corpo.
É neste ponto que posso formular uma das hipóteses desta pesquisa: podemos pensar a demência senil como efeito do traumático sobre o processo identificatório, pensá-la como uma via regressiva do desenvolvimento humano que afasta o ego através da interrupção da comunicação com os outros e o isola no esquecimento mais mortífero pois constitui a morte da própria identidade.
Esta falta de elaboração, pode ser então razão suficiente para levar um sujeito pelo caminho sem retorno do esquecimento mais radical e violento? Quais seriam os impedimentos para o sucesso de um processo elaborativo da perda ? Em que consiste essa perda afinal? Domínio talvez da Pulsão de Morte ?
Neste caso, é legítimo pensar que a especificidade da demência - onde o sujeito historicamente constituído se perde - não estaria dada por um déficit orgânico que afeta a memória como função neurológica, e sim, por um transtorno de identidade que tem efeito sobre a memória como função historizadora.
Nas demências podemos observar que em primeiro lugar perdem-se as representações de palavras e depois, as representações de coisas. O sujeito quer dizer algo, nomear alguma coisa que sabe o que é e para que serve mas, faltam-lhe as palavras. Começa assim uma espécie de deconstrução psíquica que avança afetando a memória, os vínculos e finalmente todo o campo do simbólico. Realiza-se então um desinvestimento do mundo exterior sob a forma de uma indiferença generalizada. A pesar disto, não são raros os casos de súbitas demonstrações de interesse em situações e objetos cuja escolha, de fato, não é aleatória. Então, com uma escuta atenta e interessada podemos observar uma tentativa de reatualização do passado no presente, mas não como acontece na reminiscência que é uma forma elaborativa, senão como atualização idêntica ao que já foi, como se o tempo não tivesse passado, como um tempo de repetição, sempre o mesmo, tempo em suspensão. Ultima e desesperada tentativa da pulsão de vida de conservar uma identidade.
Podemos dizer que estamos na presença de um funcionamento psíquico primarizado onde as alucinações -como forma primária da satisfação do desejo- são harto freqüentes .(Neste ponto acho necessária uma volta a pensar a questão das amências tal como foi pensada por Meynert e Freud).
Para pensar ainda mais a questão do sujeito, lembremos que Lacan fala de um "tornar-se" sujeito. Se há um estranho que fala por nós, que nos faz dizer o que não queremos, alguma coisa que parece externa mas incomoda como própria; tornar-se sujeito será tomar essa alteridade para si, implicar-se na estranheza, excluir as causas do destino e se apropriar dessas vicissitudes fazendo a passagem de objeto a sujeito do próprio destino, causa da própria existência, no processo de subjetivação. Então o sujeito será dinâmico, móvel, sempre mutante, passível de diversos posicionamentos. O sujeito não será a cristalização de imagens ideais e sim o surpreendente sobre "si mesmo". O sujeito se descobrira ali onde não sabia que estava. O sujeito irrompe quando ante uma surpresa sobre si mesmo pode-se perguntar "más, eu fiz isso?" Podemos ver que tornar-se sujeito é ir além do registro imaginário do eu. É ter um posicionamento em relação ao Outro, ou melhor, uma postura em relação ao desejo do Outro, e aqui já estamos falando da ordem simbólica. Tornar-se sujeito é assumir a clivagem, o que interrompe nossa onipotência, é ser cindido, barrado e ao mesmo tempo, estar sempre tentando superar esta situação sabendo antecipadamente do inevitável fracasso. E isto não se faz sem sofrimento, por isso as vezes parece tão fácil fugir do simbólico.
Antes de uma criança nascer, ela já é falada, é nomeada com palavras que estão na cultura. Quando nasce, seus sentimentos e condutas são nomeados pelos Outros -geralmente os pais- terá frio, calor, raiva ou dor; ou será encantador e amoroso, sempre interpretado e definido pelos Outros. Assim, a criança encontrará um mundo de palavras já pronto ao qual adaptará seus sentimentos (e sempre haverá um resto inadaptável) e usará as palavras que a cultura lhe oferece (e sempre faltarão palavras) . É por esta razão que dissemos que a criança nasce alienada na linguagem, que é a linguagem do Outro que se impõe. Mas como é fácil deduzir, esta é uma luta desigual.
A criança - que ainda não é sujeito- submete-se, assujeita-se ao outro já que dele depende para viver. Na alienação a criança aceita ser representada por palavras.
Se a criança nasce é porque em algum momento e por alguma razão foi desejo de alguém que isso acontecesse. Os pais, não importa por qual motivo, desejaram o nascimento desse filho. O sujeito nasce causado pelo desejo do Outro. Alienado e sujeitado haverá de se tornar sujeito a não ser que por não permitir ser sujeitado pelo Outro e alienado na linguagem, se torne um psicótico. Ora, se é possível não se tornar sujeito, é possível também deixar de sê-lo, seja por pequenos períodos o de forma permanente já que é condição do sujeito a falta de estabilidade e permanência.
Para Fink o sujeito psicanalítico tem duas faces: O sujeito como precipitado e o sujeito como furo. O sujeito como precipitado nada mais é que a sedimentação de sentidos dados pela substituição de um significante por outro. Mas é sedimentação, algo que permanece rígido, é objeto do desejo do Outro. O sujeito como furo é o caminho aberto entre os significantes, que abre as possibilidades de ligação e pode se desamarrar dos sentidos - o que implica em movimento- criando um furo no real, situação não pouco angustiante onde o sujeito aparece metaforizando essa falta de sentido. Não é um precipitado sedimentado, e sim uma precipitação, um movimento. Mais do que um movimento é apenas um lampejo que cria uma metáfora, que substitui um não-senso por um novo sentido que produzirá uma ilusão de persistência e continuidade (muito frágil, certamente)
Assim sendo podemos pensar que a perda de memória na demência seja uma falha na metaforização, uma impossibilidade de encadeamento de significantes. Impossibilidade de outorgar novo sentidos à vida, de produzir pensamentos e idéias, de encaixar uma série de significantes dentro de outra série e criar assim um novo significado. Uma recusa a compreender.
O sujeito pode negar-se a compreender, a lembrar, a subjetivar. Esse velho sujeito que no dizer popular "volta a ser criança" -com toda a carga de preconceito que isto encerra- pode finalmente triunfar sobre a sujeição ao outro, abandonando sua posição de sujeito. Podemos pensar que, ante uma situação não passível de elaboração -de metaforização- renuncia a ser sujeito e de alguma maneira passa a usufruir o ganho de não sê-lo. Nesse sentido, volta a "ser criança", onde em todo caso o discurso do Outro não o atinge com toda sua força, e onde ao mesmo tempo exige do Outro uma mudança radical enquanto ao sistema de linguagem em que é inserido. Como "criança", finalmente, poderá se aproximar mais da experiência primária de satisfação, poderá esquecer que essa recuperação é impossível. Se o objeto procurado é constituído pelos restos que escapam da simbolização, a demência pode ser considerada uma lembrança: tentativa radical de reencontro com o objeto perdido.
Nesta minha tentativa de um certo entendimento sobre as demências pergunto-me muito sobre a diferenças com a psicoses. Se a psicose é o fracasso em se tornar sujeito, a demência representaria o abandono desta condição. Ao abandono de todo processo de subjetivação, sobrevive um eu primarizado que é capaz de responder ao nome próprio, porém incapaz de dizer "eu", nem "eu fiz" nem "eu fiz" nem "me aconteceu", não ao menos relacionado com um tempo de presente compartilhado. Há então um retorno a um tempo de "dependência" anterior ao tempo da linguagem e do pensamento. O Outro internalizado porém estranho, finalmente pode ser desligado, desautorizado em uma espécie de morte psíquica. O Outro deixa de existir como tal, a lei e a linguagem se esquecem. Tudo se reduz ao nível de experiências não simbolizáveis, por tanto, extremamente fortes, imediatas fragmentadas.
Por outro lado acho que não podemos deixar de considerar a magnitude dos investimentos que a cultura faz na constituição do sujeito. Devemos pensar quais as possibilidades de investimento libidinal que um idoso tem quando já próximo a fim da vida, não encontra objetos dignos de substituir os perdidos e deixa de ser objeto de investimento. Devemos pensar como a marginalização do idoso (presente até nos melhores projetos de atendimento conhecidos na atualidade) pautada pelos preconceitos sociais, provoca situações de abandono onde a retração libidinal pode-se constituir como a única forma de saída. Saída do universo dos intercâmbios energéticos com o mundo, tal como entendida por Freud em Luto e Melancolia: "um estado de animo profundamente doloroso, o cesse do interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar, a inibição de todas as funções e a diminuição do amor próprio". Esta definição adapta-se perfeitamente ao que observamos nos estágios inicias da demência.
Outra hipótese é que a demência pode ser entendida como uma fuga da depressão. Haveria uma perda não metaforizada, não tramitada, que provoca uma dor insuportável ante a qual o sujeito "decide" literalmente esquecer que o mundo existe. E esquece.
Novas perguntas se instalam. Como pensar psicopatologicamente as demências? Como pensar os mecanismos de defesa? O que acontece com a sublimação? Devemos pensar a partir de "ausências" ou aceitar o confronto com uma produção psíquica que nos propõe outro tipo de funcionamento, outro tipo de escuta, uma escuta de um discurso sem palavras?.
Delia Catullo Goldfarb
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