Pierre Fédida

Notícia de Falecimento

Com profunda tristeza, anunciamos o falecimento de Pierre Fédida, no dia primeiro de Novembro. Nosso querido e inesquecível companheiro de trabalho, nos deixou vitimado por um acidente vascular cerebral, aos 68 anos feitos no dia 30 de Outubro. Foi membro do comitê de preparação da primeira reunião dos Estados Gerais da Psicanálise, realizada em Paris, no ano de 2000 e já havia nos informado, há poucos dias atrás, a sua decisão de vir ao Rio de Janeiro, para a Segunda Reunião Mundial, em 2003. Membro da Association Psychanalytique de France e com vida universitária intensa, gerou uma importante contribuição à Psicanálise. O seu trabalho é, internacionalmente, considerado relevante.

Tendo sido um grande amigo do Brasil e dos brasileiros, durante quase quarenta anos, sistematicamente, nos dedicou seu tempo. Nos transmitiu a principal característica de seu trabalho: rigor e liberdade.

São Paulo, 9 de novembro de 2002
Maria Cristina Rios Magalhães


Pierre Fédida (1934-2002)

Faleceu em Paris, França, no dia 01 de novembro de 2002, aos 68 anos completados no dia 30 de outubro, o Professor Doutor Pierre Fédida. Filósofo, psicólogo, psicanalista, Agrégee em Filosofia e Docteur d'Etat, membro da Association Psychanalytique de France (APF), tendo sido seu presidente (1988) foi, também, professor da Université Paris 7 - Denis Diderot onde dirigiu a Formation Doctorale de Psychopathologie Fondamentale-Psychanalyse-Biologie, fundou o Laboratoire de Psychopathologie Fondamentale et Psychanalyse e o Centre du Vivant, membro fundador da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, editor responsável da Revue Internationale de Psychopathologie (Paris, Presses Universitaires de France), membro do Conselho Científico da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, autor de numerosos artigos e diversos livros em colaboração com outros autores. Escreveu Le concept et la violence (Paris, Union Générale d'Éditions, 1977), Corps du vide et espace de séance (Paris, Jean-Pierre Delarge, 1977), L'Absence (Paris, Gallimard, 1978), Crise et contre-transfert (Paris, Presses Universitaires de France, 1992), Le site de l'etranger. La situation psychanalytique (Paris, Presses Universitaires de France, 1995) e Des bienfaits de la dépression. Éloge de la psychothérapie (Paris, Editions Odile Jacob, 2001). Estes livros tem sido traduzidos em diversas línguas e, em português, estão publicados Clínica psicanalítica: estudos (São Paulo, Escuta, 1988), Nome, figura e memória. A linguagem na situação psicanalítica (São Paulo, Escuta, 1988), O sítio do estrangeiro. A situação psicanalítica (São Paulo, Escuta, 1996), Depressão (São Paulo, Escuta,1999), e Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia (São Paulo, Escuta, 2002).

Nascido em Lyon, de pai algerino e judeu sefaradin, o rigoroso pensamento de Pierre Fédida encontra suas raízes mais profundas e marcantes na atividade clínica e em suas manifestações psicopatológicas. Por ser, antes de tudo, um pensador do vivido na clínica, encontrou em Freud os fundamentos mais sólidos de sua posição. Não tendo sido um lacaniano, manteve boas relações com Jacques Lacan e com sua obra. Finalmente, não descuidou do estudo e da compreensão da técnica e da metapsicologia de Sándor Ferenczi - que freqüentemente estava presente em seu pensamento -, Melanie Klein, Bion e Winnicott, que também visitavam seu pensamento sobre a atividade clínica.

As principais influências filosóficas sofridas por Fédida passam, por um lado, por Sócrates, Platão e, menos, por Aristóteles assim como por Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty. Vivamente interessado na estética, Pierre Fédida era profundo conhecedor da obra de Paul Klee, a quem dedicou uma pesquisa sistemática, e seu pensamento era marcado pelo de Henri Maldiney, a quem se referia como seu mestre, e pelo de Georges Didi-Huberman, de quem se dizia amigo. Assim, em 1987, ofereceu um brilhante curso na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP sobre o A caminho em direção à palavra, de Heidegger.

A filosofia e a estética sempre estiveram, em Fédida, a serviço do pensamento sobre o pathos psíquico e freqüentemente se articulavam à psiquiatria fenomenológica, outra sólida fonte de sua posição. Ludwig Binswanger, com quem estudou e praticou em Zurique, na Suíça, certamente foi a principal influência psiquiátrica sofrida por Fédida, com quem consolidou uma forte disposição para a escuta clínica e para a liberdade de pensamento, tanto própria como da do outro. Essa disposição, talvez a manifestação mais marcante da maneira de Fédida estar no mundo, encontrou fundamento e apoio, também, nos demais psiquiatras alemães - Karl Jaspers, von Gebsattel, Tellenbach - e, na França, em Eugène Minkowski, Henri Ey, Roland Kuhn e Arthur Tatossian e no Japão, com Kimura Bin. A influência do pensamento psiquiátrico fenomenólogo em Fédida revela-se na coletânea denominada Phénoménologie, psychiatrie et psychanalyse (Paris, Echos-Centurion) que organizou e fez publicar em 1986.

Uma das questões clínicas que mais interessavam Fédida era a contratransferência e, sobre esse tema, a respeito do qual escreveu vários trabalhos, ele citava Harold Searles como um interlocutor privilegiado.

Em torno de 1964, quando foi à Brasília e tornou-se amigo do Dr. Luiz Meyer, Pierre Fédida passou a se interessar pelo Brasil e pelo pensamento clínico dos brasileiros e voltou, numerosas vezes, ao nosso país, primeiro por convite do psicanalista Durval Cecchinato, no âmbito do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP e, a partir de 1987, por um grupo de psicanalistas coordenados pelo Dr. Luiz Carlos Menezes, de quem era amigo próximo. A partir dessa vinda, Fédida passou a trabalhar na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo - SBPSP, onde Menezes era o anfitrião, formando-se, também, uma forte ligação entre ele, Manoel Tosta Berlinck e Maria Cristina Rios Magalhães que o hospedaram diversas vezes e com quem ele e outros ilustres psicanalistas trabalharam na Livraria Pulsional - Centro de Psicanálise. Esse intenso e, muitas vezes, prolongado trabalho tinha a forma de seminários clínicos onde fragmentos de casos eram apresentados e pensados por grupos de psicanalistas que se constituíam especialmente para essas ocasiões. Foi aí que o estilo de Fédida se revelou de maneira a mais florescente e foi aí, também, que os que deste trabalho tomaram parte puderam testemunhar a maneira original e produtiva de um homem que respeitava as palavras do outro e fazia delas um recurso rigoroso para sua própria atividade de pensamento. Ia, também, à Campinas trabalhar com o grupo reunido em torno do Prof. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira, na UNICAMP.

Fédida esteve no Brasil, pela última vez, em 1998, a convite do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP e com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP. Realizou, então, um brilhante seminário sobre depressão que resultou em artigo em co-autoria com Manoel Tosta Berlinck publicado em Psicopatologia fundamental (São Paulo, Escuta, 2000) e em seu último livro Dos benefícios da depressão. Elogio da psicoterapia. Nessa oportunidade trabalhou, também, em seminários clínicos na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, na Livraria Pulsional e na UNICAMP.

Pretendia voltar ao Brasil em 2003 para participar do II Congresso Mundial dos Estados Gerais da Psicanálise, que será realizado no Rio de Janeiro.

A influência de Pierre Fédida na psicanálise praticada no Brasil não termina assim. Diversos ilustres psicanalistas brasileiros, dentre os quais se destacam o Prof. Dr. Mário Eduardo Costa Pereira, o Prof. Dr. José Luiz Caon, o Prof. Dr. Edson Luis André de Sousa, o Dr. Fabio Landa, a Profa. Dra. Maria Helena Fernandes, a Dra. Ivanise Fontes, o Prof. Dr. Nelson da Silva Jr., a Dra. Cristina Lindenmeyer Saint-Martin e a Dra. Adriana Campos de Cerqueira Leite realizaram seus doutorados sob sua orientação, na Université Paris 7 - Denis Diderot.

Revela-se, assim, uma concepção peculiar de formação do psicanalista, onde a Universidade ocupa um papel central. Fédida tinha um elaborado pensamento a esse respeito e, por isso, foi trabalhar, desde 1979, na Université Paris 7 - Denis Diderot.

Em homenagem a esse pensamento e visando estimular a emergência de jovens autores de textos de psicopatologia fundamental, a Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental criou o Prêmio Pierre Fédida de Ensaios Inéditos de Psicopatologia Fundamental que terá sua quarta edição em 2004.

Pierre Fédida era um espírito inquieto, verdadeiramente universitário e sempre atento com a política. A sua preocupação com o sofrimento humano provocado pelas diversas formas de totalitarismo e pela miséria na África, na Índia e na América Latina freqüentemente estava presente em suas conversas. Acreditava que, no discurso miscigenado e exótico dos psicanalistas brasileiros, encontra-se o futuro da psicanálise. Mas, acima de tudo, dava testemunho de uma grande liberdade de rigoroso pensamento voltada para o pathos psíquico, a respeito do qual dizia não haver um único discurso que pudesse esgotar esse assunto.

S.Paulo, 09 de novembro de 2002.
Manoel Tosta Berlinck


Pierre Fédida (1934-2002)

Necrológio para o jornal Le Monde de 6 de novembro de 2002, por Elisabeth Roudinesco

Grande personalidade da universidade francesa, onde durante quarenta anos instituiu um ensino fecundo da psicanálise, Pierre Fédida faleceu no Hospital Necker, em 1 de novembro, em conseqüência de um acidente vascular cerebral.

Nascido em 30 de outubro de 1934, ele era oriundo de um meio modesto. Seu pai, judeu sefardim de origem argelina, exercia o ofício de marceneiro, e sua mãe, de Lyon, era tecelã de vestimentas sacerdotais. É em Lyon, sua cidade natal, que ele faz uma parte da sua formação universitária. Em seguida, passa no concurso para a "agrégation" em filosofia, antes de defender sua tese de doutorado em letras e ciências humanas, inserindo-se depois na tradição da psicopatologia, que conheceu seu momento de glória com Ludwig Binswanger, médico, diretor da prestigiosa clínica de Bellevue, situada em Kreuzlingen, na margem suíça do lago de Constança.

Próximo desse amigo de Freud, grande mestre da psiquiatria existencialista de inspiração hursseliana, Fédida, nesse sentido próximo também de Henri Maldiney e das primeiras obras de Michel Foucault, recebe, entre 1958 e 1966, uma sólida formação clínica e teórica da qual conserva marcas tanto em seus ensinamentos quanto no seu percurso de psicanalista que o conduzirá, após uma formação didática com Georges Favez, a se filiar à Association Psychanalytique de France (APF).

Percorrendo a mesma trilha de Daniel Lagache, Didier Anzieu ou ainda Jean Laplanche, Fedida considera que a disciplina freudiana não deve ser transmitida exclusivamente no quadro privado das associações psicanalíticas. Para se laicizar, ela precisa também se confrontar com outros domínios de saber. Sob essa ótica, e após ter se tornado professor da Universidade de Paris VII, em 1979, opta por um caminho difícil. Recusa a política adotada pelos seus predecessores, que não conseguiram evitar que os departamentos de psicologia clínica funcionassem como anexos das grandes sociedades freudianas. Estabelece, igualmente, um verdadeiro diálogo, de um lado, com os freudianos de obediência lacaniana, e, de outro, com os outros universitários, permitindo assim que a universidade se torne um lugar de confrontação entre as diversas correntes freudianas e entre elas e as outras disciplinas.

A ofensiva dos cientistas

Desde então, multiplica suas atividades e, com zelo, sedução, inteligência e delicadeza, consegue desenvolver um espaço de discussão que fará dele o defensor de um humanismo freudiano preocupado ao mesmo tempo com o respeito pelas diferenças e com um ideal racionalista e universalista.

Criador do Laboratório de Psicopatologia da Universidade de Paris VII, em 1979, e responsável pela formação dos futuros psicólogos clínicos, em particular dos pesquisadores e professores, enfrenta fortes adversários vindos das neurociências, do cognitivismo, do experimentalismo e do comportamentalismo, que se atribuíram como principal missão passar a psicologia para o lado das ciências ditas "duras" e retirar dela toda e qualquer referência ao psiquismo.

Para responder a essa ofensiva - que atualmente é denunciada pelos próprios cientistas - Fédida cria, em 1993, o Centre d´Études du Vivant por meio do qual, e em colaboração com o Forum Diderot, fundado por Dominique Lecourt, organiza grandes debates sobre temas comuns à biologia, medicina, psiquiatria, filosofia e psicanálise. Edouard Zarifian, conhecido por seus trabalhos sobre psicofarmacologia, apóia-o ativamente na crítica aos excessos de organicismo em matéria de tratamentos psíquicos. Numerosas obras coletivas nascerão desses encontros, entre as quais L'embryon humain est-il humain? (PUF, 1996), La fin de la vie qui en décide? (PUF, 1997), Demain les psychotropes? (PUF, 1998). Paralelamente, Fédida estabelece laços com importantes universidades latinoamericanas, realizando no Brasil, a cada dois anos, um seminário mensal.

Uma vasta obra

Interessado em estruturar um projeto comum de pesquisa e formação envolvendo todas as tendências psicanalíticas funda, em 1999, com seu amigo Roland Gori, professor da Universidade de Aix-Marseille, com quem divide esse combate, o Seminário Inter-universitário de Pesquisas em Psicopatologia e Psicanálise, reunindo uma centena de professores até então dispersos ou divididos em querelas de escola. Enfim, sem negligenciar a importância do belo campo das "letras", em 2000 participa da criação de um Instituto do Pensamento Contemporâneo, ao lado de Julia Kristeva e François Jullien.

Clínico respeitado, Fédida é também autor de uma abundante obra escrita, em que se misturam estudos sobre arte, literatura, corpo, exílio ou, ainda, a destituição de si. Em Crise et contre-transfert (PUF, 1992), analisou a gênese desse conceito de contratransferência na perspectiva de abrir a psicanálise para outros campos de investigação. Três anos mais tarde, em O sítio do estrangeiro (PUF, 1995/Escuta, 1996) dá continuidade a essa reflexão, mostrando que a posição do analista circunscreve uma ausência que, pela sua própria estrangeiridade, favorece o avanço positivo do tratamento. Enfim, em seu último livro, Les bienfaits de la dépression (Odile Jacob, 2001/Escuta, 2002), interessa-se pela elucidação do sintoma da depressão para deduzir que ele impede o sujeito de entrar na melancolia e que, sem dúvida, traz um benefício que os adeptos do tratamento químico se enganam ao querer extirpar (Cf. Le Monde de 9 de fevereiro de 2001).

Sua última conferência, magnífica, pronunciada em outubro na associação Espace Analytique, teve por título "As figuras da Pietá. O corpo da Virgem e o corpo de Cristo".

Tradução de Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira.