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Notícia sobre os Estados Gerais da Psicanálise em Paris
Chaim Samuel Katz
Os Estados Gerais da Psicanálise se realizaram entre os dias 8 e 11 de julho, no solene anfiteatro da Universidade da Sorbonne. Contaram com a presença de cerca de mil participantes, dos quais uns 150 eram brasileiros.
O clima foi bem pop, os efeitos tinham que se produzir rapidamente, dada a vastidão dos temas e do pouco tempo para a elaboração de assuntos muito complexos. Então, queira-se ou não, o efeito foi muito diferente daquilo que a Psicanálise ortodoxa espera produzir. Além da emergência das falas mais diversas, foi preciso uma encenação que as acompanhasse, que ajudava a mostrar a força das palavras e não apenas sua sabedoria.
O que se espera de uma efetividade psicanalítica? Que o inconsciente possa ser chamado à cena. O que isto significa? Que uma certa linguagem possa emergir, linguagem esta bem distinta daquela que chamamos de consciente. A linguagem consciente coincide com a satisfação, diz respeito à realização de uma vontade que pode ser explicitada. No regime da consciência indica-se uma direção, passível de ser apontada e almejada. Tenho uma meta que pode ser alcançada, diz a consciência. E o inconsciente? Sua meta, seu alvo é apenas uma elaboração, onde se estabelece uma Verdade. Ou seja, quando vamos na direção do inconsciente, nunca sabemos o que vamos encontrar, pois apenas a direção do caminhar nos é dada (à moda de Antonio Machado, para quem o caminho se faz ao caminhar).
É isto aí. Um Fórum de Psicanálise, como foi este sobre o qual lhes informo alguma coisa, não seria adequado para transmitir a Psicanálise.
Se o que a Psicanálise visa, no seu modo mais tradicional de se estabelecer, é a busca do desejo, um Fórum, por definição, não é lugar para articular o desejo. Por assim dizer, dá-se aí um movimento excessivo e ruídos muitos, que impediriam a boa comunicação psicanalítica.
Mas, atenção, em tais grandes aglomerações, acontecem encontros. Ou seja, os que fomos aos Estados Gerais tínhamos e temos algo em comum, uma vida baseada no campo psicanalítico, nas experiências agora centenárias da Psicanálise e um modo comum de viver que, inclusive, foi o que nos levou até Paris. Ou seja, vivendo num mesmo modo, mesmo que parcialmente, um modo psicanalítico, pudemos nos afetar mutuamente.
Deste ponto de vista, para mim, nosso Fórum foi um bom encontro, onde muitos puderam trocar e se manifestar. Esta faceta corresponde ao que chamamos teoricamente em Psicanálise de transferência. Na transferência, além da produção do discurso inconsciente, se estabelecem condições para a emergência do inconsciente. Num grande Encontro, se dão transferências múltiplas que, quando sustentadas de um ponto teórico adequado, permitem as manifestações inconscientes.
Assim, o show vai para outro plano: ele é necessário para a expressão da multiplicidade das falas, mas ao mesmo tempo escapa de ser espetáculo.
Se os que nos encontramos temos um modo comum de nos comunicar, se tal modo se fundamenta na teoria como um terceiro decisivo, então temos chances de aprender algo, no regime inconsciente. Marcamo-nos mutuamente, enquanto pensamento e afeto, quando nos dispomos aos encontros.
Entre os assuntos tratados, parece que o que mais interessou a direção dos Estados Gerais foi a respeito da especificidade da Psicanálise. Sua comissão, principal propôs uma "Declaração", com dois princípios básicos: 1. Que a Psicanálise se pense diferentemente das psicoterapias. 2. Que ela permaneça independente dos poderes públicos e da regulamentação do Estado.
As psicoterapias procuram as relações diretas dos sintomas e sofrimentos dos seus pacientes com explicações causais (lembram-se do que escrevi acima sobre a consciência?). Enquanto a Psicanálise procura estabelecer a articulação do psiquismo inconsciente. Na medida em que o sujeito analisando vai se perlaborando, os sintomas tendem a desaparecer. Se o "eu" do sujeito é apenas um dos muitos efeitos possíveis do psiquismo inconsciente, sua superfície, o psicanalista não recebe as manifestações egóicas como verdades absolutas, mas como um dos processos psíquicos possíveis.
Explico. Se alguém busca uma psicoterapia para falar de seu amor simultâneo por dois sujeitos diferentes, o psicoterapêuta ajuda na avaliação e relação de uma escolha melhor e mais adequada. Enquanto o psicanalista sabe que os investimentos psíquicos se fazem em direções múltiplas, que o sujeito é muito mais do que o "eu" que ele expressa agora e, por isto, não define nenhuma escolha: acata o conflito.
Tal diferença se mostra também nas relações com a política institucional, desde que os psicanalistas procuram relações mínimas com os poderes constituídos. Mas quem autoriza um indivíduo que se afirma psicanalista? O que dá direito a um grupo de se auto-denominar de "psicanálise"? Como ficam as relações dos psicanalistas com profissionais de outras áreas de atuação, na medida em que o exercício psicanalítico é sempre político e social?
Bem. Estes e outros temas foram objetos de discussão, mas sem nenhuma conclusão possível. Concluir não significaria se adequar ao objeto direto e ao poder central?
No terceiro dia, Jacques Derrida, considerado unanimemente como o maior filósofo francês da atualidade, deu uma conferência sobre a crueldade.
Duas e meia horas de uma discurso inconscientemente fundador e dotado de todos os encantos. Se tiver a saúde libidinal necessária, tento um esboço do assunto numa próxima ocasião. De qualquer modo, uma das questões por ele colocadas foi sobre se é possível aos sujeitos humanos viverem sem a crueldade. E o seu corolário: se o escrito sobre crueldade pode escapar da crueldade. O que você acha?
Pelo jeito, já devem ter notado que gostei do Encontro e também da Teoria. Nem excessivamente entusiasmado, jamais desanimado, contei decididamente com o fato e a experiência de que, como muitos sabemos, na França o vinho nacional é, se não tropeçamos, um encontro expansivo com sabores e sentires da melhor espécie. E como explicaria Dioniso ou Dionísio, isto vale muito a pena.
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