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Sobre os estados gerais da psicanálise
(Publicado em O Globo, caderno Prosa & Verso, em 01/07/2000)
Por Daniel Kupermann
http://members.aol.com/call97 é o site dos Estados Gerais da Psicanálise. Nele se pode acessar os trabalhos e as idéias que serão debatidas no evento inédito que acontecerá de 8 a 11 de julho no grande anfiteatro da Sorbonne, em Paris. A proposta, lançada em 1997 na forma de uma convocação pelo psicanalista René Major, é a de repensar os rumos da psicanálise no limiar do novo milênio. Os psicanalistas, independentemente de suas filiações teóricas e institucionais, foram provocados a um esforço no sentido de articular seu saber com os discursos contemporâneos sobre a subjetividade - ou com aqueles que decretam a extinção das subjetividades - e com o contexto sócio-político no qual vivem, bem como de rever a situação de suas próprias instituições de formação e das modalidades de transmissão da psicanálise. Cerca de duzentos trabalhos foram enviados de várias partes do mundo, mais de um quarto deles produzidos no Brasil. Justifica-se, portanto, que o português tenha sido adotado como uma das línguas oficiais do encontro.
A idéia da convocação dos Estados Gerais está associada, na história republicana, à períodos de crise e, consequentemente, de transformações (a inspiração veio, sobretudo, da revolução francesa). A própria modalidade de convocação, adesão e funcionamento do evento escapa radicalmente ao que vimos assistindo em termos de troca de idéias e de experiências entre os psicanalistas durante os cem anos da psicanálise: os Estados Gerais da Psicanálise não é patrocinado por nenhuma instituição psicanalítica, tampouco por qualquer instituição acadêmica e, mesmo assim, recebeu uma adesão maciça em vários continentes (espera-se mais de mil participantes); é aberto a todos os psicanalistas e estudiosos da psicanálise, seja qual for a sua linha de trabalho, o que rompe com a geopolítica da psicanálise contemporânea que se polariza, grosso modo, entre os "freudianos" da Associação Psicanalítica Internacional e os "freudo-lacanianos" (sem considerar aqui as complicadas cisões e ramificações internas em cada uma dessas tendências); não propõe de antemão a criação de uma nova organização internacional, residindo sua aposta maior na "livre associação" dos psicanalistas, ou seja, na criação de novas redes de intercâmbio ao redor do mundo, que não precisem ficar restritas às redes de compromisso e mesmo de submissão transferencial estabelecidas até hoje, em grande parte responsáveis pela mumificação e esterilização da discursividade psicanalítica; finalmente, nos quatro dias em que estaremos reunidos na Sorbonne, não haverá apresentação de conferências, mas plenárias de discussão em torno dos pontos de tensão e polêmica encontrados nos trabalhos disponíveis há cerca de seis meses na internet. A palavra viva e afetada deverá ser, assim, liberada, o que, aliás, não deveria parecer estranho a um encontro de psicanalistas. Uma exceção importante será feita ao filósofo Jacques Derrida, interlocutor e crítico da psicanálise, convidado como conferencista. Serão seis os temas em discussão: clínica psicanalítica; transmissão da psicanálise; instituições psicanalíticas; as relações da psicanálise com o social e o político; com a arte, a literatura e a filosofia; e com o direito, as neurociências, a biologia e a genética.
Por sua própria concepção, portanto, os Estados Gerais da Psicanálise não apenas problematizam a questão da transmissão da psicanálise na atualidade, mas promovem efetivamente um ato que incide em um incômodo sintoma que se abateu sobre o campo psicanalítico: o dogmatismo esterilizante. Psicanalistas fazem análise com outros psicanalistas. A análise pessoal de cada um deveria ser uma experiência radicalmente singular e livre de quaisquer interferências institucionais. No entanto, desde meados do século, percebe-se que, na análise dos analistas, há uma tendência para uma idealização exagerada do "saber" do próprio psicanalista e para uma adesão incondicional ao seu sistema teórico, conhecido efeito da manipulação da transferência que costuma ocorrer nas instituições psicanalíticas, onde é comum o analista ser também mestre teórico, supervisor clínico e até mesmo ocupar importantes cargos institucionais. Com isso, pode-se estabelecer uma identificação acrítica também aos procedimentos técnicos adotados por tal ou qual linha de trabalho, o que é cômodo para o psicanalista iniciante que tem que se haver com uma prática marcada pela incerteza, mas prejudica obviamente o avanço da pesquisa em psicanálise.
A própria receptividade conquistada pelo evento de Paris aponta uma tendência para os rumos da psicanálise no novo século: o resgate do pluralismo, seja ele teórico ou institucional, e o conseqüente intercâmbio de gente e de idéias entre as várias vertentes da psicanálise. A contemporaneidade tem apresentado uma série de impasses para o projeto de uma existência desejante e criativa que a modernidade nos legou, manifestos no crescente mal-estar sócio-político e nas formas clínicas das depressões, das manifestações psicossomáticas, das drogadicções e da divulgada síndrome do pânico. O resgate da diversidade no campo psicanalítico é também uma forma de repensarmos a própria potência da psicanálise frente às dificuldades da nossa atualidade. Afinal, a psicanálise, instrumento privilegiado para a transformação expansiva da vida, é um assunto demasiadamente humano para ficar restrito à uma ou outra corrente psicanalítica.
DANIEL KUPERMANN é psicanalista, membro da Formação Freudiana e autor de Transferências Cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (Ed. Revan).
E-mail: danielk@openlink.com.br
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