Os Estados Gerais da Psicanálise. O sentido da estética entre a soberania e a vulnerabilidade da ética.

Nelson da Silva Junior

Poder, crueldade, totalitalismo, tortura, intolerância, indiferença... decididamente o encontro "Estados Gerais da Psicanálise", ocorrido entre 8 e 11 de julho de 2000 em Paris, se deu sob a égide da vocação moral da ciência freudiana. A proposta do encontro recupera um momento preciso da história da França: 17 de junho de 1797, quando, pouco antes da Revolução Francesa, o Rei convoca uma assembléia com o propósito de escutar as queixas dos delegados de várias regiões de instâncias da monarquia. Inquietante recordação quando se constata uma crise inédita na demanda clínica da psicanálise em inúmeros países… Estaria a psicanálise igualmente próxima do fim de seu reinado? Hoje cerca de trinta mil pessoas se dedicam à escuta de pacientes sob as regras da psicanálise, destes, cerca de 1200 estavam presentes. O internacionalismo do encontro foi notável: 33 países atenderam a um chamado que não vinha propriamente de uma instância oficial. Note-se que o mero prestígio de seus organizadores , René Major e Elizabeth Roudinesco não teria sido suficiente para que a comunidade de psicanalistas ali presente tomasse sua continuidade no próximo século como uma questão que exige cuidado e reflexão. Uma pequena comunidade internacional de psicanalistas preocupada em examinar as forças destruidoras do seu interior e do seu exterior, tomando como única medida uma "relação autêntica com o desejo, a palavra e a realidade" (discurso de abertura de René Major). Com efeito, o estado atual da psicanálise no mundo parece confirmar a justeza desta preocupação: com ligeiras diferenças entre países, a convergência em torno de questões fundamentais permitiu uma confirmação desta crise. Esta foi uma das constatações de Chaim Samuel Katz: paradoxalmente, o aumento da potência teórica do pensamento analítico tem sido acompanhado por uma clara diminuição da demanda clínica. Única exceção a tal decadência generalizada: a América Latina, particularmente o Brasil, surge como um novo Eldorado psicanalítico aos olhos do velho continente. Mme. Roudinesco lembra que, no Brasil, a psicanálise se encontra fortemente enraizada da formação universitária dos cursos de Psicologia Clínica. (palestra de abertura, publicada no Le Monde de 10/7/2000). A comitiva brasileira no encontro foi, é verdade, a mais numerosa, e pela primeira vez, um Congresso Internacional de Psicanálise fora do Brasil e de Portugal é contemplado com o português como língua oficial. Mas, a participação brasileira foi bastante além de uma parcela respeitável no numerário. Maria Cristina Rios Magalhães foi a primeira brasileira a falar, e sua presença neste momento de abertura demarcou a participação do Brasil como fruto da maturidade conquistada no Encontro Sul Americano dos Estados Gerais da Psicanálise, realizado em novembro de 1999 em São Paulo. Em seguida, a excelente apresentação de Paula Rocha, capaz de reorientar as discussões para problemáticas atuais de caráter geral a partir de um trabalho que engaja sua experiência com a clínica do autismo para compreender certos fenômenos culturais no Brasil de hoje. O trabalho respeitoso e crítico dos leitores brasileiros, Miguel Calmon, Regina Orth de Aragão, e as discussões realizadas por Daniel Kuperman, Chaim Katz e Catherina Koltai, demonstraram a seriedade da produção psicanalítica de nosso país. Destaque-se o trabalho de interpretação de Joel Birman da prosperidade do movimento psicanalítico na América Latina como tendo sido possibilitada precisamente pela dolorosa experiência política dos regimes totalitários, experiência infeliz marcada pelo horror, mas capaz de, em alguma medida, propiciar uma salutar desconfiança de base nas relações dos sujeitos com todas formas de autoridade, inclusive a autoridade das instituições oficiais de formação, ou seja, os Institutos de Psicanálise. Francis Hofstein, da França, nesse sentido, enfatizou, o uso da transferência pelas instituições de formação enquanto instrumento de poder, o que demonstra a possibilidade patológica da transferência enquanto um obstáculo à transmissão da psicanálise. Haveria na América Latina, segundo J. Birman , um "saber sobre a transferência", saber que dir-se-ia se despedir sem nostalgia da falsa proteção do masoquismo moral, e se abrir ao próprio desamparo como a uma possível liberdade.

Com efeito, um tal entrelaçamento do âmbito político com a produção teórica e clínica da psicanálise se confirmou em tristes e corajosas lembranças, em testemunhos que marcaram este encontro como talvez a despedida de um século que se definiu produzindo crueldades e sofrimentos inéditos no ser humano. Foram Helena Bessermann Vianna, e Anne-Lise Stern as duas damas destes dias, e cada uma delas soube trazer suas memórias com a delicadeza decantada por décadas de dor e de verdade. Anne-Lise Stern, sobrevivente dos campos de concentração, silenciou a todos evocando uma noite onde se conversou sobre Freud, desejos e sonhos entre as prisioneiras. No dia seguinte, contou, elas vieram lhe trazer em abundância os frutos oníricos desta conversa. Uma delas, contudo, décadas depois, procurou-lhe para dizer como pode sobreviver graças ao sonho que tivera aquela noite: uma luz aquecia ainda que fracamente o deserto do mundo. Helena Vianna, vítima da adesão da própria psicanálise primeiramente à crueldade da tortura, e, em seguida, à crueldade do silêncio sobre a tortura. Sua mera presença representava a impossibilidade de evitar a questão, explicitada em outro momento por Armando Uribe, ex-embaixador do Chile sob Allende, sobre o "pequeno Pinochet em cada um de nós". Helena Vianna leu aos presentes sua carta de desligamento da IPA, recém enviada a Otto Kernberg, presidente desta Instituição.

Sobre esta imanência do mal em cada um de nós, cabe aqui retomar alguns elementos da conferência proferida por Jacques Derrida. Antecipando o cerne de sua conferência com uma pontuação linguística que desvela todo o poder de recalcamento de uma tradução, Derrida opõe o termo latino "crueldade" ao termo germânico, "Grausamkeit", usado por Freud. A etimologia destas duas palavras remete a compreensões fundalmentemente diversas quanto à natureza deste mal. Assim, se a raiz latina cruor diz respeito ao sangue derramado, e portanto, e descreve os efeitos do sofrimento, a semântica teutônica fala diretamente do prazer obtido no sofrimento. A partir deste resgate etimológico, Derrida elege a psicanálise como um discurso único pois aborda "sem álibi" o prazer psíquico no sofrimento. "Sem álibi", esta expressão é retomada inúmeras vezes ao longo de duas horas de uma conferência impactante pela sua franqueza. Freud explora a sintaxe deste prazer no sofrimento, esboça a geografia da crueldade sem justificação ou finalidade senão si mesma. A partir da noção de pulsão de morte, a crueldade humana se apresenta sem álibi pois nela vigora o "mal pelo mal".

Teria a psicanálise condições de enfrentar a crueldade, seja aquela descrita por Freud como ligada ao princípio do prazer, a saber, a crueldade ligada à sexualidade, e à pulsão de dominação, seja aquela descrita como um dos destinos possíveis da pulsão de morte? Quais estratégias se enfileiram diante de cada uma destas formas e causas da crueldade? Como poderia uma ciência psicanalítica posicionar-se eticamente, isto é, engajadamente, contra a crueldade? Na opinião de Derrida as resistências à psicanálise operadas por ela própria ainda não permitiram que esta se alçasse acima dos males que ousou denunciar. Lembra que o próprio projeto terapêutico da psicanálise se constitui como uma destas resistências a si própria, na medida em que tal projeto se fundamenta sobre uma lógica de dominação. No que diz respeito às resistências exteriores, tratar-se-ia aqui da crueldade imanente à pulsão de dominação ( pulsion de maîtrise, de souveraineté, termo que em seu discurso transcende a noção freudiana) se localiza e se fortalece no interior da cultura através da centralidade que uma série de princípios continua a ocupar no campo jurídico, ético e político. Tais princípios, que definem, para Derrida, o campo da soberania são a "autonomia e onipotência do sujeito individual ou estatal, vontade egológica, intencionalidade consciente", ou seja, em termos psicanalíticos, o ego, o ideal de ego e o super-ego. Por soberania Derrida indica assim a primazia de uma compreensão da liberdade enquanto livre arbítrio da consciência, e de uma série de ideais correlatos a este princípio. Mas, para o filósofo, a psicanálise ainda estaria aquém de sua própria vocação, pois ainda não pensou este "mais além do além do princípio do prazer".

Como possível encaminhamento desta questão, Derrida retoma o texto "Porquê a guerra?". Neste texto, Freud contesta a tese de Einstein de que a paz seria possível desde que os Estados Nacionais estivessem dispostos a sacrificar incondicionalmente uma parte de sua soberania diante de uma entidade jurídica internacional. Segundo Freud, haveria causas psíquicas que impediriam este sacrifício. Contudo, diante da equação mortal ("matar ou morrer") imposta pela lógica da pulsão de morte, Freud aponta para soluções parciais, onde segundo Derrida, poderiamos nos inspirar para uma estratégia de "obliquidade", termo recorrente no texto freudiano. Haveria de se contar, diante do impasse entre a ambição de uma imposição totalitária da paz, e uma aceitação ingênua da natureza humana como essencialmente cruel, com uma lógica do indecidível, lógica fundada sobre uma compreensão da finitude não meramente negativa, ou negativista. Aqui a possibilidade da cultura dependeria do abandono da ilusão de uma erradicação total da crueldade, e da aceitação de uma economia do possível, pensando a constituição humana como um de seus limites. Derrida finaliza sua conferência acenando para o futuro da psicanálise, um futuro possível mas certamente novo, já que as formas experimentadas até agora se mostraram inadequadas.

Seguindo a direção apontada por este aceno, proponho algumas reflexões sobre o papel metodológico do campo da estética no questionamento das resistências da psicanálise a si própria. Suponho como justo o apelo de Jacques Derrida a uma urgente busca de respostas diante de novas formas de resistências do mundo à psicanálise, mas igualmente resistências da psicanálise ao mundo. A estética tem, a meu ver, uma função metodológica na análise das resistências da psicanálise para consigo mesma. Mas, para avançar nesta proposta, cabe começar por uma pergunta. Teria a arte qualquer coisa a dizer sobre esta possibilidade incerta, isto numa disussão que gira essencialmente sobre questões éticas? Esta questão é fundamental, pois a voz cotidiana duvida a priori da importância do campo estético no debate político. Com efeito, as relações da psicanálise com a arte têm sido tributárias quase que exclusivamente de uma herança kantiana, que postula uma independência entre o campo estético (sem finalidades) e o campo político (o bem como finalidade). Entretanto, a tradição kantiana não é senão uma das tradições neste debate que engaja a política e a estética. Aristóteles e Platão, por exemplo, embora divergindo quanto ao interesse da tragédia para a Pólis grega, admitem como legítima uma profunda e complexa relação entre arte e política. Com efeito, segundo Platão, a governabilidade corria um risco, diante do excesso de emoções suscitado pelo espetáculo trágico. Aristóteles, por sua vez, supunha que a governabilidade poderia ser facilitada pela catarse regular e controlada das emoções no próprio interior da cidade grega.

Se atribuímos à arte a função de interlocutor da questão ética, partimos do princípio que um exame das políticas da arte pode dar continuidade ao debate sobre a soberania e a crueldade inerente aos modelos clínicos freudianos. A arte partilha com a psicanálise uma posição intermediária nas ordens discursivas: ambas, não podendo dedicar-se exclusivamente à sua vocação ética, admitem relações problemáticas com a ética. Problemáticas, num sentido muito preciso: acolhimento de um problema em sua própria casa, aceitação de sua existência como partilhada, abertura para uma experiência marcada pelo conflito e pela dor. Tal abertura legitima a arte como guia da psicanálise na busca de si mesma, na busca de explicitação de sua(s) ética(s).

Os modelos de subjetividade, modelos implícitos nas hipóteses da psicopatologia psicalítica, possuem um caráter a priori na escuta analítica. Neste "lugar" de determinação da teoria sobre a clínica analítica cabe um questionamento a respeito da abertura à existência do outro. Trata-se então de uma questão ética específica: não mais uma pergunta sobre o que devemos e sobre o que não podemos "fazer com o outro", mas de uma pergunta sobre se o modo como a psicanálise pretende tratar o outro permite de fato a existência deste outro.

O chamado a concebermos uma "metapsicologia" para a escuta analítica que evite a certeza de uma possibilidade total de deciframento, parece-me como uma das possibilidade da psicanálise questionar a pulsão de soberania em ação nesta mesma escuta. Aqui pode ser retomado o problema derridadiano da soberania no interior da psicanálise em sua vertente clínica. No que diz respeito às resistências da psicanálise à si mesma, é precisamente nos modelos psicanalíticos, ali onde a possibilidade a existência do outro deve ser garantida, que soberania prefere se esconder o mais profundamente.

Considerar a metapsicologia como uma hermenêutica do discurso significa tomar o analisando como susceptível de deciframento, e analista como 'expert' decifrador. Ambos, o analisando em sua inconsciência, e o analista com sua ciência, seriam supostamente idênticos a si mesmos, invulneráveis neste processo. Contrariamente a esta hermenêutica da identidade, a escuta aberta à negatividade, inspirada na experiência estética, responde a uma "pré-" hermenêutica: isto é, uma forma de escuta na qual o analista repousa sobre a mais opaca ignorância de si mesmo. O prefixo "Pré", em tal pré-hermenêutica, tem o sentido apresentado pela sensibilidade grega tal como a narrativa trágica a supõe. Nesta narrativa a função do desconhecimento permite um novo tipo de cultura moral, onde a vulnerabilidade é condição da ética. Sobre a possibilidade desta ética da vulnerabilidade, e o fim da soberania na Psicanálise? Cito Chico Buarque de Holanda, nosso artista, não por acaso, do feminino: "te encontro com certeza, talvez no tempo da delicadeza...".

São Paulo, 30 de setembro de 2000

Nelson da Silva Junior
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