Impressões sobre os "Estados Gerais"

Sérgio Telles

É interessante o convite da Comissão Organizadora dos "Estados Gerais" para todos os participantes do evento registrarem suas opiniões e reflexões sobre o mesmo. Tais contribuições poderão, se escritas em francês, ser enviadas para o "site" francês e, no nosso caso, se escritas em português, para o "site" brasileiro.

As opiniões pessoais necessariamente farão recortes específicos, enfocando aquilo que tocou particularmente a cada participante, possibilitando uma rica e diversificada visão e elaboração do acontecimento.

Assim, o que se segue são algumas impressões que tive durante o próprio acontecimento, bem como algumas idéias que me surgiram após o mesmo. Não me deterei em reproduzir o programa, a sequência das falas ou seu conteúdo.

A) Impressões gerais

Antes de mais nada, é bom lembrar que os "Estados Gerais" são um desdobramento natural do espaço transinstitucional "Confrontation", criado por René Major. Tal espaço teve um importante papel no ambiente "psi" francês e seu rico percurso, que perdurou por 10 anos (1973-1983), pode ser recuperado nos relatos dele feitos por Roudinesco em sua "História da Psicanálise na França", vol. 2.

Se esta foi uma tentativa restrita à França, com os "Estados Gerais" René Major estendeu sua convocação ao âmbito internacional e a grande acolhida que recebeu, o que se evidencia no número de participantes do encontro, parece apontar para sua pertinência e adequação dentro do momento histórico que a psicanálise vive em todo o mundo. Referindo-se a "Confrontation", Roudinesco diz que ali se pensava "uma psicanálise libertária, não institucionalizada, anti-imperialista". Exatamente o que pode ser dito dos "Estados Gerais".

Para nós brasileiros, o nome "Sorbonne" pode provocar desagradáveis ressonâncias. O grupo militar liderado pelo Gen. Castello Branco, que instaurou a famigerada Gloriosa Revolução, denominava-se "Sorbonne". Queria, talvez, com isso dar-se um verniz intelectual, retirando a merecida pecha de "milicos", "gorilas", que tanto o ofendia. Pensava que assim se diferenciava dos outros grupos de tiranetes ditatoriais que marcaram nossa história de "américa latrina".

Outro a usar do prestígio ligado ao nome "Sorbonne" é nosso presidente Fernando Henrique, quando lembra de suas façanhas universitárias, tão distantes do pântano escuro onde se encontra atualmente.

Esse mesmo prestígio deve ter influenciado a escolha do local para a realização dos "Estados Gerais da Psicanálise": a Sorbonne. Sede principal da Universidade de Paris (atual Paris IV), fundada em 1326 por Robert Sorbon, ela representa sete séculos de história intelectual.

No interior do prédio clássico, no belo Grande Anfiteatro, de frente à imensa tela de Puvis de Chavennes, sob o olhar atento das estátuas de Sorbon, Descartes, Lavoisier, Rollin, Pascal e Richelier, acredito que todos nós (cêrca de 1260 psicanalistas do mundo todo, 210 -1/6 do total - provenientes do Brasil) estávamos conscientes da importância do evento que se iniciava.

O encontro seguiu à risca o programa. Os organizadores dos "Estados Gerais" idealizaram as sessões de forma que cada tema fôsse introduzido por um conferencista. A seguir, dois "leitores" , previamente designados para ler os trabalhos e deles fazer uma súmula, apresentariam suas conclusões que, por sua vez, seriam examinadas por dois "comentadores". Somente então, depois da intervenção destes cinco componentes da mesa, a palavra era finalmente dada à assembléia.

Tal formatação gerou de início uma certa insatisfação, pois os autores dos trabalhos não se sentiram bem representados pelos "leitores", desde que estes nem sempre conseguiram levar a cabo a espinhosa tarefa de ler e resumir trabalhos muitas vezes díspares. Alguns "leitores" praticamente ignoraram os textos dos quais seriam porta-vozes e usaram do tempo disponível para dar um depoimento pessoal. O excesso de palestrantes (conferencista, dois "leitores" e dois "comentadores") tornou o encontro um tanto cansativo, ficando reduzido o tempo para as manifestações da assembléia. Essa, por sua vez, ao tomar da palavra, o fazia de forma um tanto desarticulada e dissociada do que a mesa tinha exposto.

De certa forma essa insatisfação foi paulatinamente cedendo à percepção de que mais do que a leitura e a discussão dos importantes temas colocados, importava o evento em si, o acontecimento dos "Estados Gerais", o fato de 1260 psicanalistas atenderem a uma convocação e se juntarem, sem a tutela de qualquer instituição oficial, para pensar a psicanálise. Nesse ato performático, nessa performance estava toda a importância. Os psicanalistas estavam ali interrogando-se sobre aspectos fundamentais da prática, da clínica, da instituição, da formação, da vinculação com o mundo externo e a neurociência, tentando fazê-lo longe do cipoal das transferências institucionais.

A consciência sobre a real importância do evento foi cristalizada com a conferência de Jacques Derrida, que considerou a realização do "Estados Gerais" como um momento histórico para a psicanálise. Como se sabe, Derrida é um dos filósofos mais importantes da França e seu trabalho está intimamente ligado à psicanálise. No dizer de René Major, tem ele "desde 1960, interrogado numerosos temas que dirigem o discurso psicanalítico e filosófico; tais temas, para citar apenas alguns, são os chamados fonocentrismo, logocentrismo, falocentrismo, 'discurso pleno' como verdade, o transcendentalismo do significante".

Os debates sobre formação e instituição foram especialmente marcantes. Nessa ocasião, Helena Basserman Vianna, em explícito gesto politico desvinculou-se da IPA.

Pessoalmente, acredito que as instituições psicanalíticas são necessárias enquanto instrumento de transmissão e espaço de interlocução entre pares, sendo que - para mim - está cada vez mais claro que nenhuma pode se arrogar a ser a "fiel depositária" do saber analítico, estando aí uma das razões do grande mal-estar atual da psicanálise: a impossibilidade de manter a ilusão religiosa de ser a portadora da "verdade revelada", o ter de admitir que, ao lado de um acervo inquestionável e de inestimável valor, persistem - como não poderia deixar de ser - aspectos desconhecidos, pontos negros que as diferentes teorizações tentam resolver.

Por esse motivo, é necessário que o "narcisismo das pequenas diferenças" seja suplantado, dando margem ao aparecimento de uma efetiva tolerância e respeito que torne possível uma convivência adulta e produtiva entre as diversas instituições. Além do mais, penso que é preciso entender que o saber psicanalítico transcende, por sua vez, às instituições psicanalíticas, no sentido em que se interessa pela cultura (observando os acontecimentos que a realidade sócio-cultural exibe) e é, por sua vez, objeto de interesse da cultura (outras áreas de conhecimento que se apropriam de seu acervo).

Penso, e acredito não estar sozinho nisso, que as instituições, oficiais ou não, padecem dos mesmos vícios: são estruturas onde a disputa pelo poder e sua manutenção prepondera de longe sobre o cuidado com o saber psicanalítico. O uso perverso da transferência, infantilizadora e castradora , estiola a criatividade na produção teórica e clínica. Urge que usemos o instrumental analítico para criarmos instituições que fujam do padrão da psicologia do grupo e da estrutura familiar, com seus inevitáveis comportamentos espasmódicos de submissão/rebelião amotinada contra os pais, de rivalidade fraterna, de alianças secretas.

Foi a partir destas posições dentro do movimento psicanalítico que achei importante ir aos "Estados Gerais". Para mim, mais importante do que discutir um tópico ou outro da técnica, da teoria, da clínica, importava mais estar ali. Entendi este estar ali como um ato político da maior relevância.

Estava ali por acreditar que os "Estados Gerais" são uma forma incipiente, ainda em gestação, de uma modalidade nova de agrupamento psicanalítico.

O que vi e ouvi por lá confirmaram minhas impressões, reforçaram minhas posições. Penso que foi isso o que Nasio falou em sua alocução de abertura, ao dizer que o futuro da psicanálise estava se presentificando naquele momento.

B) Algumas outras impressões

Apesar das queixas de alguns, penso que a forma escolhida pelos organizadores terminou por ser a mais adequada: tornou possível, sem autoritarismo ou censura explícitos, o necessário e difícil controle de uma grande assembléia. O exíguo tempo designado para a livre expressão do público pareceu-me uma imposição da realidade, no sentido do uso do tempo e na prevenção de situações potencialmente disruptivas. Isso pareceu para alguns uma manipulação da cúpula organizadora, opinião com a qual não concordo.

Essa situação ficou especialmente evidente na última sessão, onde se fariam as deliberações e proposições gerais. Previsivelmente, a tarde foi tumultuada, com intervenções hilárias, como a do colega que - no meio da confusão - pediu para ser acrescentado o til (~) ao nome do peruano Peña, argumentando sobre a importância do nome próprio e vendo na ausência do sinal gráfico uma evidência da atitude colonizadora e desrespeitosa dos franceses para com os estrangeiros...

Tendo em vista que, formalmente, os "Estados Gerais" deveriam dissolver-se no final do encontro, cabia à mesa coordenadora dos trabalhos cumprir com essa dissolução e solicitar a deliberação da assembléia sobre a continuidade futura- se haveriam outros encontros e, caso afirmativo, quem os organizaria e onde.

Estava óbvio para todos que ninguém queria um final definitivo. Todos desejávamos que aquilo que ali se iniciava tivesse desdobramentos e frutificações.

Michel Plon, que coordenava a mesa, ao invés de seguir essa que seria a ordem natural das coisas, talvez levando em conta o espírito geral evidente em todos e desejando ser simpático, abriu os trabalhos dizendo que seguramente nosso próximo encontro seria na América Latina, dado a grande concorrência de latinos ao encontro.

Desta forma, inadvertidamente Plon se precipitava numa atitude inaceitável. Estando ele na posição de mesa organizadora , não lhe cabia declarar que haveria sim continuidade do movimento, muito menos onde o próximo encontro se realizaria.

Instalou-se um "imbroglio", pois alguns entenderam a inabilidade de Plon como uma atitude impositiva e autoritária, que negava todo o que tinha sido dito até então. Finalmente o bom senso prevaleceu e, por aclamação, a assembléia decidiu o que se impunha: a continuidade dos trabalhos.

C) Depois do evento - algumas questões a serem pensadas

Há uma importante questão que se evidenciou na vigência dos "Estados Gerais", mas que penso transcendê-los. Acho que merece ser objeto de nossa reflexão. Trata-se da grande participação dos brasileiros. Como vimos, éramos 1/6 do total de participantes. Porque tantos brasileiros? Que significaria isso?

A primeira reação é de uma certa euforia. Afinal, impusemos o português como uma das línguas oficiais do encontro. Lá ouvimos a encorajadora afirmação de Roudinesco a respeito da importância do Brasil para a psicanálise, mencionando o fato de estar ela firmemente implantada na universidade, o que não é comum em outros lugares do mundo. Um participante francês, referindo-se à nossa presença no encontro, falou em "colonialismo ao contrário", a eventual submissão da França à America Latina...

É verdade que a organização desenvolvida por Maria Cristina Magalhães seguramente merece muitos créditos pela nossa grande afluência a Paris. Não sabemos como a convocação teria sido trabalhada em outros países.

Deixando de lado esse aspecto, que mais poderia ser pensado a respeito? Nossa presença maciça nos "Estados Gerais"é um dado positivo ou negativo? Continuamos nos alienando no chamado do grande Outro detentor do saber, ao qual temos que nos submeter? Não confiamos na nossa própria autonomia? Fomos de forma adulta e madura, falar com pares ou como colonizados visitando a meca da sofisticação psicanalítica francesa? Porque psicanalistas de outros países "ignoraram" ou não deram a mesma importância que demos ao evento? Estariam eles mais autônomos, mais centrados em sua própria realidade local ?

A esse respeito, lembro que após o final de nosso encontro preparatório em novembro passado, aqui em São Paulo, conversando com Maria Cristina Guimarães, disse-lhe que - em minha opinião - independente do que acontecesse em Paris, o encontro tinha revelado uma situação local específica, nossa: a existência de uma demanda reprimida por um espaço transinstituicional e não universitário, onde a produção teórico-clinica pudesse ser exposta e discutida. Assim, naquela ocasião, propus que independente da evolução dos "Estados Gerais", tínhamos condições de manter um encontro periódico nosso, nos mesmos moldes do que acabava de acontecer.

Não estou, com isso, propondo qualquer desvinculação entre nosso desdobramento local, brasileiro, do mais internacional. Apenas faço o registro dessa situação específica.

Isso nos remete a questão que ocupava centralmente o grupo Caraíbas: qual nossa identidade como analistas? Devemos propugnar por uma "psicanálise brasileira"? O que seria isso? Como conciliar isso com uma psicanálise universal, internacional? Caterina Koltai em sua fala em Paris, disse: "Outra coisa que, apesar dos pesares, me faz defender a existência das instituições é o internacionalismo que possibilitam, ou deveriam possibilitar. Quando falo em internacionalismo, não estou falando numa sede e suas filiais espalhadas pelo mundo como muitas vezes, infelizmente, ainda é o caso e sim num internacionalismo que, de fato, venha a permitir a livre circulação de idéias e transferências que, como bem sabemos, não conhecem fronteiras. Caso contrário , temo que caíamos no perigo das psicanálises nacionais e, a meu ver, o pior internacionalismo ainda é de longe preferível ao melhor dos nacionalismos".

A presença da psicanálise na universidade, louvada por Roudinesco, é uma realidade incontestável, a ponto de criar uma situação na qual a psicologia passa a ser confundida - no imaginário social - com psicanálise. Que problemas essa situação levanta? Provocaria uma dissociação entre o corpo teórico e a prática clínica, proporcionando o aparecimento de elegantes e elaborados desenvolvimentos teóricos ao lado de uma clínica empobrecida e equivocada? Como diz Regina Alberti em seu trabalho, na universidade o psicanalista não pode ter o discurso do mestre, e sim da histérica.

Ainda falando de aspectos locais, chamou-me a atenção que os colegas da Suécia e da Áustria falaram dos impasses da psicanálise frente aos serviços de saúde e seguros, além de problemas ligados à regulamentação da profissão de psicanalista. Aqui no Brasil, vivemos problemas semelhantes ou até mais graves, como este criado por uma auto-intitulada "Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil", sediada em Niteroi (home page www.spob.com.br) e que está inundando o país com promessas de cursos de psicanálise, a serem realizados em "vinte meses corridos". No folder que é distribuido está estabelecido no ítem "a profissão": "A profissão de Psicanalista Clínico é livre no Brasil, regulada pelo aviso 257/57 do Ministério da Saúde, podendo ser exercida em todo território nacional em consultórios, colegios, clínicas e instituições que atuem na área do comportamento humano e da saúde mental".

É verdade que o problema da regumentação da profissão é muito complicado, mas não exigiria uma tomada de posição nossa?