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Relação da Psicanálise ao Social e ao Político
Helena Besserman Vianna
PARIS - JULHO 2000
"Um espírito livre não pode passar sobre os acontecimentos e os seres, um olhar indiferente".
Raymond Aron
Nesses "Estados Gerais da Psicanálise", as idéias psicanalíticas estão sendo submetidas a uma avaliação crítica, que inclui sua praxis, a transmissão da psicanálise, suas instituições e ainda suas relações com outras disciplinas do saber atual.
Em questão, nos vários textos apresentados, o futuro da psicanálise e de seu exercício, aguarda, como deliberação deste encontro, um veredicto que poderá ser acomodado, equilibrado, exagerado, melancólico ou de esperança, na dependência das discussões e proposições apresentadas por seus legítimos representantes, ou seja, os psicanalistas que aqui vão se dedicar a debater e propor modificações quanto às dificuldades que se apresentam na atualidade.
Atualidade na qual a linguagem dos mercados tem poder incondicional e absoluto, sendo cega e surda a quaisquer valores que não o lucro. Atualidade na qual os mercados de capitais derrubaram as fronteiras nacionais operando em todo o globo terrestre com velocidade e mobilidade incalculáveis, acompanhadas do que já foi denominado de "exuberante irracionalidade". A mundialização (globalização), entretanto, é uma realidade apenas para o capital. Penso, como entre outros, Habermas tem apresentado em textos recentes, que os habitantes do mundo, imersos na mais grandiosa desigualdade social onde sobressaem fome, violência, agressividade, insegurança e desamparo, aliadas às diversas facetas de política anti-ética, aguardam e anseiam não pela mundialização dos mercados, mas sim, por uma mundialização que signifique expansão planetária de espaços democráticos e éticos, maioritariamente aceitos e consolidados.
No tema relação da psicanálise ao social e ao político, foram apresentados cerca de 50 trabalhos, dos quais, 50% da América do Sul, sendo a maioria do Brasil. Praticamente quase todos os textos ressaltam as dificuldades institucionais, clínicas e sociais de seus países. Mesmo trabalhos oriundos de outros continentes, destacam impasses sócio-políticos da América do Sul e especialmente do Brasil, no que se refere aos tempos de ditadura militar e a presença de um torturador em uma das sociedades oficiais do Rio de Janeiro, levando a longa história que já dura mais de 25 anos sem solução explícita e a formação do grupo denominado Pró-ÉTICA. Outros trabalhos destacam aspectos que nos levam à reflexão de que o mundo está em desequilíbrio não só econômico, social e político, mas também emocional. Ora, como cada sujeito faz parte do mundo, quando nos referimos a um mundo subjugado à ação das pulsões destrutivas, estamos, em realidade, colocando também em questão as conseqüências afetivas que desorganizam a vida de cada habitante do mundo.
Não vou deter-me em cada texto apresentado, pois os autores reconhecerão, debaterão ou contestarão minha leitura de suas idéias e todos os presentes poderão questionar o que vou expor, ainda que resumidamente. Face as diversas proposições e questões manifestadas sobre o tema, elegi dizer algumas palavras ainda que repetitivas tanto em meus escritos quanto em outros textos, partindo inicialmente da seguinte questão: Podemos separar o pensamento psicanalítico da reflexão sobre os Direitos do Homem e da concepção tradicional da ética?
Penso que a relação entre psicanálise, política e o social deve ser colocada de forma ampla, isto é, considerando a relação dos psicanalistas com a atividade social e política. Atividade política que não deve ser expressa apenas no fato de pertencer a um partido ou corrente política, mas, especialmente, na participação dos psicanalistas nos diversos tipos de movimentos sociais em diferentes países do mundo. Estou de acordo com vários textos apresentados no que concerne a que cada psicanalista deve enfrentar os conflitos existentes no mundo e na condição de cidadão, e de psicanalista, quando solicitado, tomar partido. Entendo que tomar partido não significa apenas se declarar eventualmente de acordo ou contrário a decisões concretas de um partido, um movimento político-social, ou conflitos institucionais de sociedades psicanalíticas. Tomar partido tem o significado, para mim, de não ficar indiferente aos impasses e alternativas sociais ou institucionais. Em outras palavras, penso que o psicanalista pode e deve participar, criar e produzir dentro dos limites de seu conhecimento, com os conflitos e polêmicas da vida civil e social de seu país e do mundo.
Mesmo quando a reflexão psicanalítica sobre a ação político-social escolhe espaços de silêncio tático, esta reflexão exige que este silêncio seja manifestado em voz alta, pois o silêncio total ou a omissão de ocorrências anti-éticas no panorama social, não excluem as responsabilidades pessoais. Considero que, parafraseando preceitos talmúdicos, e Umberto Eco, a alienação política e social, é pior que um delito - é um desperdício. Desperdício de discernimento, desperdício de amor , de generosidade, desperdício de vida e seus conflitos, juntamente com descaminhos na trilha da racionalidade.
A política da psicanálise ou a psicanálise do político não podem ser desligados dos valores humanos e estão intimamente correlacionados com o social, a ética e as responsabilidades individuais, pois sabemos que a dimensão ética começa quando entra em cena o outro - externo e interno. Sabemos também ser impossível construir o sujeito sem reconhecê-lo em suas conexões histórico-sociais e políticas. O sujeito isolado de sua historicidade não existe e não pode existir, já que não pode existir sujeito sem objeto. Não há convivência social respeitável, sem ética. No entanto, o sistema fixo da ética normativa que sempre restringiu o espaço dos psicanalistas na maioria das sociedades psicanalíticas ditas oficiais, tem se constituído em uma forma de alienação da ética. Os exemplos estão em vários trabalhos apresentados para discussão neste encontro: entre outros, a incessante luta do grupo Pró Ética no Rio de Janeiro contra distorções, falsificações e omissões na historia da primeira sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro, nas questões apresentadas pelo grupo de Chicago , nos impasses institucionais acontecidos em Los Angeles e em vários outros textos.
Ética sempre significou e continua a significar que cada sujeito desenvolve uma relação com os sistemas de valores da sociedade à qual ele pertence. Penso, entretanto, que a essência subjetiva de toda escolha ética e/ou política, não significa em nenhum caso que o comportamento ético face ao político e o social seja visto unicamente como produto subjetivo. Dito de outra forma: o subjetivismo sempre que possível, deve ser conduzido ao conhecimento da objetividade. Conseguir conjugar subjetivismo com objetividade é ficar livre para pensar, falar e questionar o que a objetividade representa, ou seja a sociedade com seus conflitos e sua historia. Quando as reflexões psicanalíticas ficam alicerçadas somente no subjetivismo ou em "slogans" abstratos, tem-se como conseqüência o aprisionamento da vida real. Deixo para discussão a proposta que apresento, ou seja, a de que os psicanalistas devem se manter sempre sensíveis à tensão que existe entre o pessoal o social e o político, sem abdicar de um deles ou reduzir um ao outro. Penso que aqueles que defendem a idéia de que é preciso deixar de lado a objetividade quando se é psicanalista, ou que abdicam da possibilidade de assumir postura no sentido de transformar a realidade quando esta se apresenta com poderes maléficos, tornam-se co-responsáveis pelo imobilismo. Resumindo: se agimos no social, somos responsáveis pelas conseqüências de nossa ação; se alijamos qualquer tipo de ação político-social, somos responsáveis pelo que não fizemos.
Entretanto, para o psicanalista, é também importante considerar uma outra dimensão em sua postura sócio-política-ética: separar o que é privado do que é público. A correção profissional não se desliga inteiramente do compromisso que o psicanalista assume como ser humano com determinados valores postos no horizonte histórico do mundo e da sociedade em que vive.
Esta questão está presente em alguns dos trabalhos apresentados neste tema e também em outros itens do programa. Por esta razão não vou prolongar-me senão apenas enfatizar que SEPARAR o que é privado é uma coisa, OMITIR o que deveria ser público, é outra. Lamentavelmente, a transparência com o que deveria ser público não tem sido o habitual na historia das mais antigas sociedades psicanalíticas.
Sem descartar aspectos importantes apresentados nesta e em outras mesas, eu me pergunto se o distanciamento cada vez mais alarmante de muitos psicanalistas das noções fundamentais concernentes ao inconsciente, às funções das pulsões, a resistência que caracteriza muitos psicanalistas a discutir uma política da psicanálise, a prática maléfica do poder exercida através da transferencia tanto no interior de seu ofício quanto em atividades públicas, a manutenção no gosto pelo autoritarismo em cargos institucionais e no resguardo supostamente permanente do poder dos segredos de atos anti-éticos perpetrados institucionalmente, não seriam também fatores importantes no que hoje tanto se discute como sendo "crise da psicanálise"?
O desenvolvimento destas questões, me leva a solicitar maior reflexão quanto ao aspecto que se segue: Pode o psicanalista, no campo político, em nome de sua necessária "neutralidade benevolente" em seu trabalho privado, esquivar-se da confrontação da ética do sujeito face aos direitos do Homem?
Penso que os psicanalistas deveriam estar sempre em oposição radical aos atos totalitários (dentro e fora das instituições psicanalíticas), uma vez que o desenrolar do percurso de uma análise, e, especialmente, seu término, deveria outorgar ao desejante do exercício da psicanálise, a possibilidade de obter liberdade interna para questionar, não se submeter cegamente a dogmas teóricos ou normas institucionais estabelecidas em contexto diferente de nossa atualidade. Citando J.R. Freyman (Le sujet face au totalitarisme-1989), "mesmo que o totalitarismo e suas conseqüências no exercício maléfico do poder, não sejam conceitos psicanalíticos, conduzem consigo a marca da denegação e da castração, o que não deixa de produzir efeitos na constituição do desejo".
No desenvolvimento muitas vezes contraditório, lento e desigual em obter através do processo psicanalítico subjetividades mais livres, o futuro ainda é enigmático no que concerne aos rumos que tomarão os indivíduos e as comunidades para obter sua autonomia.
No que concerne à lucidez, resta ainda muito a conquistar, pois a ilusão e a obstinação em manter certos paradigmas e dogmas psicanalíticos já estabelecidos, tal como a Phénix, renascem sempre de suas cinzas. Ainda assim, a psicanálise poderá contribuir de forma grandiosa para desarraigar o obscurantismo e o fanatismo, colaborando, ainda que modestamente, na procura de chegarmos a uma humanidade menos narcísica, apesar de seus paradoxos. O conhecimento do inconsciente, na medida do possível, pode favorecer o consciente no que concerne às responsabilidades de cada sujeito face ao respeito e prática dos Direitos do Homem.
Certamente, é muito difícil obter transformações apenas dizendo que devemos mudar o "status quo", buscar novas teorias e aplicações clínicas, ou tentar alterar o que já está estabelecido, utilizando idéias e reflexões de ordem psicanalítica para explicar e compreender a constituição sócio-econômica e política deste novo século. Pode ser difícil: mas tudo isso é necessário, como podemos apreciar nos trabalhos apresentados ao tema.
Modificar o estabelecido confronta-nos com os limites de nossas possibilidades. Apesar disso, como ressaltam vários textos desse tema, o trabalho dos psicanalistas permanece sendo o de nos transformarmos de sujeitos enclausurados no subjetivismo, em sujeitos engajados no mundo e suas complexidades, a fim de sabermos administrar o nosso eu particular e poder também agir nas condições objetivas da sociedade, juntamente com outros campos do saber.
Podemos e, talvez devamos, colaborar - no trabalho clínico e como seres conscientes que deveríamos ser - para diminuir as desigualdades sociais que hoje perpassam todos os continentes, contribuindo na educação desde a infância, na diminuição da discriminação racial, religiosa, das mulheres, bem como na utilização indiscriminada das drogas e da violência. Enfim, influir no conjunto de mal-estar da civilização que na atualidade se reflete nas crises existenciais, agora exploradas sob o signo de depressão .
Termino com James Baldwin: "Nem tudo que se enfrenta pode ser modificado. Mas nada pode ser modificado até que seja enfrentado".
Helena Besserman Vianna - Brasil - R.de Janeiro
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