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Estados Gerais da Psicanálise: um e muitos
Durval Mazzei Nogueira Filho
O valor deste escrito (testemunho? Reportagem?), talvez, possa ser deduzido de um detalhe. O detalhe é: quem o escreve não tem participado dos vários grupos de discussão que se reúnem em prol da transmissão e permanência da Psicanálise, sob a égide dos Estados Gerais da Psicanálise. Transmissão e permanência para o terceiro milênio. Revela-se, assim, a presença de um entre muitos garante a ausência de partidarismo e um grau maior de isenção.
Este foi o segundo Encontro Latino-Americano que quem escreve participou. E Esta segunda experiência deixou na memória a mesma agradável sensação que restou da primeira. Há algo neste encontro que está plenamente de acordo com uma preocupação, relativa ao campo psicanalítico: a multiplicação de grupos e a insularização de correntes. O Encontro desmonta a má impressão que impressiona o espírito, quando este olha o fluir do campo psicanalítico. É interessante o desfilar de kleinianos, freudianos, lacanianos, winnicottianos e até entusiastas da Psicanálise norte-americana que, por sua vez, pertencem a grupos distintos: Escola Brasileira de Psicanálise, Departamento Formação em Psicanálise, Departamento de Psicanálise, Laboratório de Psicopatologia Fundamental, Fórum de Psicanálise e, provável, outros grupos que desconheço ou desconheço a pertinência dos participantes. Havendo, claro, oportunidade para os que se posicionam como "independentes" apresentar o trabalho a uma reunião. Trata-se, para quem escreve, uma topologia bastante animadora.
Espere: não se trata aqui de um sujeito que aguarda o momento de redenção da igualdade, do narcisismo, do Imaginário. Pelo contrário, o sujeito que escreve está mais para "the dream is over" do que "imagine all the people". A importância deste colóquio de disparidades não é interessante por superá-las, é interessante por vê-las e ouvi-las debatidas e argumentadas. A presença destas diferenças não assegura o bem estar. Arrisca, na verdade, a presentificação do mal estar. Na medida em que os participantes das mesas pouco convivem, não se estabelece o prévio "é melhor eu não falar isso, pois..." e fala-se, nos limites da boa educação. Para ilustrar, tal fato ocorreu na mesa "Psicanálise para quê? O quê o Inconsciente sabe?". Primeiro o debate entre Ângela Coutinho, Marco Antônio Coutinho Jorge e Octávio Souza sobre a condição de "lacaniana" , imputada pelos dois últimos à primeira, que negava a referência peremptoriamente, dizendo-se "foucaultiana" tendo Lacan como interlocutor. E, nesta mesma mesa, a minha pontuação sobre as críticas de Lacan à Psicanálise como desenvolvida nos Estados Unidos, encontrou um Octávio de Souza disposto a julgá-la importante e não encampar e assumir as críticas do psicanalista francês. Creio que, em outras mesas tais cenas devem ter se repetido.
Portanto: nada de falsa igualdade mas a presença do mal estar da diferença passível de instrumentação linguageira e debates. O psicanalista não deve ser politicamente correto.
E para dizer que não falei do bem, nesta mesma mesa Marco Antônio Coutinho Jorge - psicanalista admirado e lido por mim - elogiou o texto "O significante: contribuição ao pensamento psiquiátrico" que quem escreve apresentou. Do mesmo jeito, Octávio de Souza manifestou-se interessado em discutir mais a ponte que liga a Psiquiatria e a Psicanálise, na vertente do uso ou não de medicação durante a cura psicanalítica. Faltou-nos tempo. Mas sobrou sacar: a diferença radical em um ponto - a Psicanálise norte-americana - não impediu a cumplicidade em outro ponto: o diálogo Psiquiatria e Psicanálise.
Espere: não se trata aqui de um sujeito que faz do embate um ato sagrado e o melhor meio para a produção. A diferença não obriga ao combate. A possibilidade de ouvi-la constitui uma oportunidade de, ao decantá-la, perceber que ali estão psicanalistas. Sujeitos cujo encontro com o Real levou-os ao Simbólico, ao divã e, em algum lugar, podem conviver. Mais que isso, a discordância e a concordância salientadas acima são, apenas, para servir de exemplo de que o mutualismo não é, necessariamente, uma via. E salientar tais fenômenos não serve para obscurecer a importância do que foi dito. E "importância" é o destaque dos temas apresentados também nas outras mesas que quem escreve esteve presente.
Uma delas, "Medicina e Psicanálise", contou com cinco textos. Dois textos sobre a Toxicomania, dois sobre a Psicofarmacologia e a Psicanálise. E um belo texto, dito por Maria Eliza Pessoa Labaki, sobre a escuta de uma psicanalista diante das falas de portadores do HIV. Um exemplo muito instigante de uma Psicanálise ao mesmo tempo verdadeira e aplicada. Os textos sobre Toxicomania pontuaram questões diferentes: o de quem escreve sobre acontecimentos peculiares durante o tratamento psicanalítico dos toxicômanos que requerem a participação de outros discursos terapêuticos; o texto de Márcio Peter Souza Leite perguntou sobre o fenômeno toxicomaníaco e sua condição social. Marisa Rodulfo e Sara Hassan discorreram sobre a invasão da clínica pelos psicofármacos e sobre as formas estandardizadas de diagnosticar que a mais moderna Psiquiatria tem legado à cultura, sem a menor preocupação com as conseqüências éticas deste estilo. Textos - os cinco - interessantes e merecedores de discussões mais aprofundadas. O que quem escreve pode recuperar da discussão, passeou pela condição na qual um toxicômano, de fato, está em análise para além de caminhar ao gabinete analítico e a conveniência ou não - a partir do discurso analítico de colocar sob o mesmo emblema as Toxicomanias e o grupo de circunstâncias - certamente, outros fenômenos contemporâneos - onde o sujeito se define como diante de um impulso incontornável: não comer, comer demais, jogar, trepar, etc. Claro que houve a oportunidade de colocar em pauta as agruras do psicanalista no contexto, também muito contemporâneo, de reduzir a clínica do sofrimento humano à imanência dos neurotransmissores e à escolha do fármaco correto para dirimi-lo.
Outra mesa que quem escreve participou foi "Pesquisa em Psicopatologia". Devo dizer que ao receber o convite de Manoel Tosta Berlinck para esta mesa, considerei-me literalmente laureado. Por duas razões: pelo puro convite e pelo convite partir de quem tenho mantido um interessante intercâmbio amistoso e intelectual. A configuração da mesa foi outro prazer. Além de Manoel, a presença de Sônia Alberti, Mário Fuks, Mário Eduardo Pereira e Edilene Queiroz. E a mesa não decepcionou. Da Psicanálise pura de Mário Fuks analisando a condição fetichista dos gadgets à instalação da situação psicanalítica em um ambulatório psiquiátrico público por Mário Eduardo Pereira, passando por pontuações à pesquisa em Psicanálise e Psicopatologia por Edilene Queiroz e quem escreve. Temas que são caros à cultura e à sociedade contemporâneas, cenário onde, obrigatoriamente, o discurso tem que fazer-se presente. Se não pela submissão, pela possibilidade de demonstrar-se um interlocutor válido. Para isso, os psicanalistas estão instados a refletir e a produzir pontuações que sirvam intra e extra-muros.
Em suma, duas lições o Encontro dos Estados Gerais trouxe. Possibilidade de concordar e discordar, sem que o Imaginário dê as cartas e obscureça a importância do dito. Possibilidade de re-constatar a presença do discurso psicanalítico na era pós-moderna.
Não morremos. Permanecemos desejando.
E há mais: livros foram lançados durante o evento apesar de, nitidamente, o evento não Ter alcançado o objetivo. Há que pensar melhor a fórmula.
E há mais: estive, nas dependências da Livraria Pulsional e Editora Escuta, antes ainda do I Encontro Latino-Americano, em um debate (uma conversação?) na presença de Rene Major e Helena Besserman (ausência notada neste II Encontro). Não transformar os Estados Gerais em mais uma Instituição foi a marca deste debate. De acordo. Mas pareceu a quem escreve, que os Estados Gerais têm contornado, sem tocar, no delicado ponto da formação de analistas. Caso não seja esta apenas uma enviesada interpretação deste que escreve sob o signo do um entre muitos e, portanto, esta constituir-se em uma pontuação válida, fica a sugestão.
É isso. E mais uma vez deixo público aos organizadores deste Encontro a oportunidade de participar e a oportunidade desta manifestação escrita. Obrigado.
Novembro 2001
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