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Mesas

René Major

Mesa de abertura

Não há democracia sem a psicanálise

Texto enviado por René Major e lido por Michel Plon.

René Major me pediu, formalmente, de ser, como foi dito anteriormente, seu porta-voz. E eu o faço com grande prazer, devo dizer mesmo que é uma grande honra poder corresponder a esta confiança que ele depositou em mim. Seu texto, que se segue, se intitula Não há democracia sem a psicanálise.

No momento em que dei uma entrevista para Leneide Duarte-Plon para a Folha de São Paulo, parcialmente reproduzida na edição do domingo 12 de outubro e duas curtas respostas ao Jornal do Brasil, do mesmo dia, para juntar minha voz a todas as vozes daqueles e daquelas que trabalharam por três anos na preparação deste Segundo Encontro Mundial dos Estados Gerais da psicanálise, estava longe de pensar que eu pudesse estar impedido de estar entre vocês hoje. Os membros do Comitê de organização do Rio, e Joel Birman em particular, com quem tive inúmeras trocas, sabem que puderam contar com minha inteira solidariedade, ao mesmo tempo em que dispunham de total liberdade de conceber estas Jornadas como eles achavam que deveriam ser. Os que assistiram aos Estados Gerais de Paris em 2000 lembrarão que, após as primeiras sessões, chegou-se à conclusão que qualquer continuação que lhes poderia suceder seria deixada à iniciativa daqueles que assim o desejassem e formassem o projeto dentro do espírito do que o Chamado inicial inaugurara.

Que tenha sido o Brasil a tomar a iniciativa de continuar não deveria provocar surpresa pelo simples fato da grande participação brasileira nas Jornadas da Sorbonne mas também, e talvez principalmente, pelo fato de que o impulso primeiro à realização dos Estados Gerais surgiu da reunião acontecida em Paris em 1997, em torno do livro de Helena Besserman Vianna, Não conte a ninguém..., que chamou a atenção internacional para o retorno nefasto ao real do esquecimento, do recalque ou da forclusão do político no campo do pensamento psicanalítico, tanto em sua prática, sua teoria e suas instituições quanto na sua necessária e inevitável participação com outros campos do pensamento na reflexão sobre os graves problemas contemporâneos de que são testemunhas as violências, as crueldades, a selvagem economia de mercado, a sede desenfreada de poder, em uma palavra, o desrespeito pelo outro.

Vocês prestarão homenagem, eu sei, a Helena Besserman Vianna. É com um aperto no coração e uma imensa “saudade” que eu me imaginava estar no Rio sem que ela também estivesse. Desde nossa primeira visita em 1979 e durante cada uma das visitas que se seguiram, ela estava presente junto a nós e cuidava de tudo, até o último workshop com Jacques Derrida que ela organizou aqui mesmo há dois anos. Uma troca sem interrupção de cartas, quase cotidiana, marcou nossa amizade de mais de 20 anos. Sua morte teria significado um fim do mundo, mesmo eu sabendo que este fim do mundo quase aconteceu mais de uma vez. O luto impossível da obra que ela deixou e à qual está ligado e sobrevive seu nome, uma obra cuja gravidade se apóia em documentos incontestáveis, faz parecer infâmia qualquer tentativa, como na verdade existe, de minimizar seu alcance. O que ela viveu e o que ela escreveu terá sido a chance e a terrível condição de leitura do que acontece em nome dos Estados Gerais. O que significa que, em sua relação com o mundo e em sua relação com ela mesma, a psicanálise estará sempre em crise e que ela faça apelo à manutenção permanente aos Estados Gerais por todos aqueles que considerem que o inconsciente tece a trama de nossas relações com o outro e que essas relações são intrinsecamente psíquico-social-políticas.

Joel Birman me pediu para falar na abertura destas Jornadas da idéia mesma dos Estados Gerais. O bom senso, do qual deve-se desconfiar, quis que fosse esperado que eu ocupasse este lugar pelo fato de que a história teria querido que meu nome estivesse ligado à primeira convocação em Paris, mesmo se este nome próprio designasse então tanto uma coletividade quanto uma singularidade e que nesta própria coletividade figurem, ao lado daqueles que estão presentes pelo seu nome próprio, todos aqueles que podem desejar que esta reunião aconteça e todos aqueles que lamentam ou deploram sua existência, tal como ela se manifesta novamente. Uma vez, uma única vez, ainda passa. Mas que ela se queira cada vez única, é o cúmulo. Todos aqueles que aprovam secretamente sem poder infringir algum código institucional, aqueles que protestam abertamente ou se opõem insidiosamente, estão todos virtualmente presentes. Esta reunião conta para eles e deve contar também com eles.

O que não é evidente, e que eu teorizei demais para não lembrar, é o paradoxo que é caro ao pensamento em psicanálise. Tanto quanto a consistência da teoria não saberia transpor o impasse dos vínculos que a ligam ao nome próprio daquele que a elabora, tanto ela deve poder consistir independentemente deste nome. Isto acontece também com todo movimento, nem puramente religioso, nem teológico-político, nem ilusoriamente objetivista, que tem pretensão a alguma consistência. É no que a posição analítica se vê exigida a produzir um laço social que não se aparenta nem à estrutura subjetiva que produz a Igreja nem àquela que prevalece no Exército. O que não quer dizer que não há um Um, mas que há também múltiplo e diferença. Por conta desta diferença no seio da qual se exprime igualitariamente a singularidade, há aqueles que presumem saber um pouco mais. Para demonstrá-lo, fez-se um apelo a eles para avançar. Mas o que os faz manter a posição propriamente analítica, é o fato de não tirar disso nenhum poder. É um outro paradoxo que quer sustentar o que tem nome de Estados Gerais: que todo poder possa se assumir em posição de desistência. A palavra é lançada: o poder. É também ilusório que não existe o fato de ser destruidor, que ele se mata por querer unificar. Eu já insisti o suficiente em A Democracia em Crueldade e em outro lugar sobre a inevitável autodestruição que habita o exercício soberano do poder, tal como a atualidade política internacional exacerba à evidência a mortal aposta, não querendo retomar aqui, quando sabemos que desde antes da última guerra mundial Freud já indicava como a pulsão de poder poderia assujeitar os outros registros pulsionais para se ver, no final das contas, presa inevitavelmente à única pulsão capaz de pôr um freio a isso, a pulsão de morte. Só podemos lamentar amargamente que os velhos países da Europa tenham passado muito recentemente ao jugo da lei do mais forte, quaisquer que sejam as restrições de que esta submissão se apoderou, pois se encontra assim reduzida a quase nada ou pouco de crédito que conservava ainda a Organização das Nações Unidas e seu obsoleto Conselho de Segurança composto pelos países vencedores da última Guerra e os únicos autorizados a possuir armas de destruição em massa. O crescimento inquietante do ódio no mundo sai daí fortalecido.

Disseram que a democracia era a condição de existência da psicanálise e, sem dúvida, isto é justo na medida em que a revolução psicanalítica teria sido impensável sem a instauração da República originária da Revolução Francesa. Daí o nome dado àquilo que nos reúne desde a borda desse novo século e de novos tremores que não tardarão a ser desencadeados, todos emprestados do fantasma teológico da soberania e do poder de morte que ele se outorga. Ousarei dizer que se a psicanálise não existe sem a democracia, a democracia tampouco poderia existir sem a psicanálise, isto é, sem o trabalho de desconstrução que ela deve realizar com os mitos teologico-políticos que tentam organizar a “globalização” do mundo e dos quais nossas democracias reendossam os velhos modelos positivistas ou espiritualistas e seus axiomas metafísicos do direito, da ética e da política. Ao invés de realizar um tal trabalho, é a psicanálise mesma que corre o risco de ser levada em toda espécie de derivas ou de apropriações, como já temos infelizmente numerosos exemplos.

Diante dos álibis obscenos que se dão as democracias hoje, e aquela em particular que, dizem, ser a maior delas, para satisfazer a sede de poder e de dominação de uma classe política, e que só fazem adiar e trair a promessa que traz em si mesmo o nome de Democracia, os psicanalistas trabalham com outros - como podem testemunhar os outros participantes notáveis deste Encontro que são Tariq Ali, Antonio Negri e Sérgio Paulo Rouanet - numa prática em uma outra via que não a da razão cínica, numa prática de uma via balizada por sua incondicionalidade a uma relação ao outro desprovida de álibis e livre da obscenidade imaginária. Michel Plon não deixará, estou certo, de lembrar, como Lacan teria querido, que o laço social que é testemunha da análise traz sua marca.

Não poderia concluir essas poucas palavras à guisa de saudação sem evocar o que minha ausência poderia suscitar de fantasmas, de rumores ou de cálculos. Minha presença também teria suscitado tanto quanto. Diferentes sem dúvida. Podemos avaliar indiretamente os cálculos daqueles que fazem correr os rumores. Originam-se geralmente das questões de poder às quais eu fazia alusão, à inquietude e à perturbação que deixa esse movimento ao qual vocês participam, que tenta, sem nenhuma segurança, abrir uma passagem em direção ao desconhecido, em direção ao que falta sempre ser pensado, sem o recurso aos convencionais guarda-corpos super conhecidos. A um tal projeto que procura evitar os obstáculos do passado e sua repetição, pode-se também supor todos os cálculos. A aposta que vocês fazem é a de escapar deles.

A ironia do inconsciente teria querido que fosse por uma razão de cálculo que eu ficasse preso em Paris. Um cálculo renal que implicaria, neste momento, certo risco. O irônico da coisa é que, tendo eu mesmo antecipado a noção de “cálculo inconsciente do político” , não tenha podido me subtrair a sua análise. Teria eu calculado inconscientemente cortar alguns rumores de domínio? Ou ainda: preocupado em ser coerente com o que já pude dizer e que retomarei agora, teria eu calculado que a consistência do que foi iniciado sob o nome de Estados Gerais poderia ficar sem a presença de seu iniciador? Vocês me dirão que eu vim, apesar de tudo, marcar minha presença na ausência. O que relança o trabalho e o cálculo da aporia que a análise esforçou-se em manter viva.

Obrigado a anular as reservas que havia feito, certo de poder estar aqui com vocês hoje, desejei saudar, com toda solidariedade , meus amigos do Comitê, nossos convidados e vocês todos que estão aqui presentes, do fundo do meu coração.

René Major

 

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