<< BACK

Comentários dos Participantes

Elisabeth Roudinesco

Mensagem para os Estados Gerais da psicanálise de Rio de Janeiro

É por razões pessoais, devido à minha agenda e a circunstâncias excepcionais, que não posso estar no Rio neste Segundo Encontro dos Estados Gerais da Psicanálise. Gostaria, portanto, com esta breve mensagem, de estar presente entre vocês e cumprimentar primeiramente o sucesso dos organizadores desta reunião. Não foi fácil e eu sei que houve conflitos e dificuldades. Mas hoje, eu sei também que esta segunda reunião será ao mesmo tempo diferente da de Paris - o que é necessário - e bem dentro do espírito do que foi feito no início por nosso amigo René Major. Entre 2000 e 2003 o mundo estremeceu. E as apostas na psicanálise que surgirá não são mais as mesmas, pois a destruição do World Trade Center tornou visível, na realidade, mesmo no real, no sentido lacaniano, uma divisão política do mundo originada com o fim do comunismo, consecutiva mesmo a este fim e que opõe um ultraliberalismo a um obscurantismo: o mercado, de um lado, que esmaga o sujeito transformando-os em objeto de prazer, o integralismo religioso de outro, que os aniquila em um formidável fascínio pela morte. Na sua época, a respeito de Antígona, Lacan denunciou, com justiça, a selvageria que se dissimula sob a apelação da martirologia.

O que pode, pois, fazer a psicanálise no caso desta nova divisão política quando temos a impressão que se enfrentam, de maneira simétrica, duas formas de barbárie, uma pós- moderna, outra ancestral?

Faço parte daqueles que pensam que não existe verdadeira simetria inconsciente entre a barbárie ultraliberal e o islamismo radical, uma produzindo outra e reciprocamente. É por isto que, contrariamente a Noam Chomsky e a outros intelectuais engajados na mesma direção, eu me coloco claramente no plano político, no campo da área ocidental, a única onde, até agora, se desenvolveu a psicanálise: a velha Europa, os Estados Unidos, o continente latino americano e, por extensão, o Japão que adotou os princípios leigos do Estado de direito e da democracia necessária à implantação do freudismo.

Pois, se a psicanálise deve ser uma vigilância extrema frente a toda deriva de um imperialismo liberal devastador que pretende, quase sempre, dirigir o mundo segundo o eixo do bem e do mal, ela não pode, de forma nenhuma, olhar o islamismo político - que se manifesta neste momento em todo o seu horror - como um veículo de um antiamericanismo positivo, suscetível de substituir uma antiga contestação esquerdista. Este obscurantismo se amplia, hoje, na forma de uma revolução conservadora e se alimenta dos erros políticos do Estado de Israel. Nestas imprecações contra "o grande satã americano", contra os Judeus, contra a "civilização ocidental", contra Marx, contra o sexo, contra um sistema democrático julgado "decadente", "pornográfico", faz da psicanálise seu inimigo absoluto: inimigo incriminado, inimigo judeu-cristão, inimigo endiabrado, inimigo tanto mais perigoso quando se apóia numa teoria da subjetividade que libera os homens das amarras tradicionais ligadas à procriação, que reconhece aos homossexuais o direito de viver e que enfim, pela revalorização da proibição do incesto e do mito da morte do pai, assim como pela sua ruptura com o tribalismo, afastou-se de um modelo de organização familiar fundado na poligamia, no repúdio, na marca ritualística dos corpos femininos e enfim, na condenação à morte das mulheres adúlteras e das mães solteiras.

Eu disse um dia que o futuro da psicanálise encontrava-se no continente latino americano, neste continente que, através da diáspora dos imigrantes argentinos, depois graças à força das universidades brasileiras, terminou por suplantar em poder uma velha Europa, muito acadêmica, e o continente americano devastado pelo cientificismo. Após ter sido o espelho da Europa, sua nova Atenas, sua nova Jerusalém ou ainda seu outro lado "antropofágico" este continente nos envia hoje, a nós europeus, uma imagem idealizada de nós mesmos. Mas às vezes também, nos oferece a sombra detestável do que nós não queremos que ele seja, principalmente quando se opõe erradamente um culturalismo a um colonialismo assumindo assim o risco de fazer desaparecer o universalismo freudiano em inúteis querelas nacionalistas.

Para combater esta tendência ao isolamento chauvinista, étnico ou diferenciador é necessário, me parece, reinventar uma alterglobalização psicanalítica que permitiria repensar a questão do internacionalismo não mais baseado no modelo da Internacional Psychoanalytical Association (IPA) ou de diversas outras "associações mundiais", mas baseado no do federalismo ou da transversalidade, mais conforme ao movimento de desconstrução - emprego de propósito este conceito derridiano - que caracteriza a dialética mesma da psicanálise - desconstrução da figura do mestre ou seja, desconstrução da soberania unificadora das centrais freudianas.

Ou seja, a psicanálise deve, no meu entender, politizar-se, intelectualizar-se de novo, posicionar-se frente aos grandes debates da sociedade, entrar na cidade, interessar-se pela miséria, pelas minorias oprimidas, portanto, intervir sem cessar sobre todas as formas de descriminação. Resumindo, ela deve restaurar este espírito das Luzes que parece ter desaparecido de um grande número destas instituições para com isto pensar a modernidade.

Sob este aspecto, me parece que a escolha dos três conferencistas "excepcionais" está perfeitamente de acordo com este futuro da psicanálise que acabo de evocar, com este futuro de exílio e de rebelião mas também com esta história da psicanálise feita de migrações sucessivas.

Tariq Ali, escritor exilado do Paquistão, em ruptura com sua religião de origem, "muçulmano não muçulmano", como Freud era um "judeu não judeu", editor londrino das obras de Sartre. Toni Negri, italiano exilado durante anos em Paris, por razões que conhecemos, filósofo "espinosista" que saúdo como a um amigo, um amigo que foi durante seus anos de exílio, já que morava a dois passos da minha casa. Saúdo-o também como um grande amigo da psicanálise. Sérgio Paulo Rouanet, finalmente, filósofo brasileiro germanófilo que soube exilar-se de sua própria cultura para situar a invenção freudiana no campo de uma cultura filosófica e literária tipicamente européia...

Uma palavra ainda: eu queria prestar homenagem uma vez mais a René Major que foi o primeiro a organizar, em Paris, encontros franco-latino-americanos, que foi sempre radical em sua luta contra as ditaduras e que, enfim, sempre teve a paixão por uma psicanálise sem pátria e sem fronteiras.

Elisabeth Roudinesco