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Uma ficção sobre Saber e Poder em Psicanálise

Jô Gondar

Resenha do livro: "O Silêncio da Acrópole. Freud e o trágico: uma ficção psicanalítica" de Glaucia Dunley. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária/Editora Fiocruz, 2001. 158 p. ISBN: 85-218-0292-7

A psicanálise é tecida com conceitos e ficções. Mas exige um certo modo de travessia. Freud condensou esses três planos em trabalhos de grande beleza literária. Dificilmente encontramos, nos escritos dos psicanalistas que o seguiram, o mesmo prazer de leitura que nos é proporcionado por alguns de seus textos, nos quais o cuidado estético nada deixa a dever à densidade teórica. Entre eles se destaca Um distúrbio de memória na Acrópole, de 1936. Em menos de dez páginas, Freud nos apresenta a dimensão mais essencial da psicanálise sob uma forma estética que poderíamos aproximar à do conto: uma história secreta surge dos interstícios de uma história visível, produzindo, ao final, um efeito de surpresa. E não seria essa também a proposta da psicanálise e a forma de uma sessão psicanalítica?

Buscando elaborar um episódio ocorrido em 1904 - sua experiência de estranheza em Atenas, ao se postar diante da Acrópole - Freud vai desdobrando não apenas os conceitos psicanalíticos, mas aquilo mesmo que os encadeia e lhes fornece a sua razão de ser, na tentativa de resolução do enigma - o que se passou? E, de súbito, num movimento que condensa toda a exposição anterior, o suspense se interrompe e a "solução" nos é apresentada: a estranheza se relacionava à idéia de haver realizado mais do que o pai, como se ainda fosse proibido ultrapassá-lo.

É também a partir de um episódio da obra freudiana - no caso, o próprio texto de 1936 sobre um distúrbio na Acrópole - que Glaucia Dunley faz emergir os conceitos fundamentais da psicanálise em ato. Isso significa que os conceitos não são apresentados metonimicamente, de maneira desafeiçoada, configurando uma espécie de receituário acadêmico; ao contrário, eles surgem no gerúndio, trabalhando, na medida em que a discussão os convoca. Nesse sentido, O Silêncio da Acrópole- Freud e o Trágico - Uma ficção psicanalítica é um livro extremamente fiel a Freud. Fiel porque nele se conjugam o ato da escrita e o ato psicanalítico, incidindo sobre a própria construção freudiana. Num momento em que predominam, em nosso meio, os trabalhos de exegese, os comentários minuciosos sobre a palavra de um mestre que nada mais fazem senão sacralizá-la - e, nessa mesma medida, a traem - não podemos deixar de saudar um livro não simplesmente sobre, mas principalmente de psicanálise. Justamente por isso, trata-se de um texto de fruição, no sentido que Barthes lhe confere: "aquele que coloca em situação de perda, aquele que desconforta, faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência dos seus gostos, dos seus valores e das suas recordações".

Em O Silêncio da Acrópole a ficção está presente de diversas maneiras. Há, primeiramente, um cuidado estético, a partir do qual se produzem passagens com beleza literária. O estilo, porém, não é o do conto suscinto ou da sobriedade freudiana. A escrita se desdobra e se derrama, animada por uma hybris que impõe ao texto um tom poético e tempestuoso. Tom, de fato, condizente com a aliança que o texto estabelece entre Freud e Hölderlin (sendo este último um participante do Sturm und Dräng - tempestade e paixão, movimento que inicia o romantismo alemão), e condizente também com a pergunta que atravessa todo o livro: haveria um pensamento trágico em Freud? Para responder a esta pergunta, Glaucia Dunley produz um entrecruzamento entre a psicanálise, o campo filosófico (Nietzsche e Deleuze, em especial) e a esfera poética (Hölderlin lendo Sófocles), estabelecendo circunvoluções, avanços e retomadas do episódio de estranheza experimentado por Freud em 1904, em sua visita à Acrópole, e por ele elaborado no texto de 1936.

Mas não é apenas pelo tom ou pelo recurso à esfera poética que o livro possui uma estrutura ficcional. A originalidade do texto está no fato de apresentar-se, ele mesmo, como uma ficção sobre o modo pelo qual Freud teria chegado a construir sua teoria. Trabalhando numa zona indeterminada onde verdade e ficção se encontram, Glaucia Dunley propõe que o episódio de estranheza na Acrópole possa ser lido como um momento privilegiado, "um ponto secreto" a partir do qual se vislumbra o trágico, na relação da vida com o destino. Dito de outro modo: na estrutura ficcional do texto, este é o momento preciso para onde convergem os relatos de auto-análise de Freud e o panorama conceitual da psicanálise, condensando a vida e a obra de um homem num instante único que define o destino de sua obra.

Vejamos, em linhas gerais, a ficção proposta por Glaucia Dunley. Em 1904, quem sofre na Acrópole uma "reação paradoxal" é um Freud que recentemente publicara A Interpretação dos Sonhos. Um homem confiante em seu saber e em sua capacidade criadora, sendo capaz de estender os achados sobre sua própria pessoa a toda a raça humana. Ora, o que se coloca em xeque com o episódio da estranheza é justamente esta pretensão: Freud se confronta com um não-saber a respeito da reação que nele se produz e se sente desamparado diante de uma Acrópole silenciosa, ela própria um templo do saber. A partir desse momento, inicia-se para Freud um "espetáculo do luto" (esta seria a tradução literal do termo alemão Träuerspiel, tragédia). Um luto do complexo paterno e das esferas que lhe são correlatas - Deus, deuses e ideais, como o saber ou a felicidade; enfim, tudo aquilo que pode funcionar como garantia.

É um outro Freud que escreve o texto de 1936, no qual se interroga sobre o desejo e a interdição de superar o pai, numa espécie de auto-análise tardia. Aos 80 anos, o criador da psicanálise não mais se coloca como um Édipo-Rei, guiado pela ilusão de um grande saber ou de grandes feitos, estando mais próximo de Édipo em Colona, guiado por Antígona - aquele que, segundo Hölderlin, é o herói realmente trágico, porque realmente ateos, termo que em grego significa abandonado pelos deuses. Desse modo, é um Freud trágico que encontramos no texto da Acrópole, um Freud que atravessou um tempo vazio a partir do qual pôde elaborar um luto, sendo o texto de 1936 um resultado dessa elaboração. Dunley lê esse trabalho de luto sob a ótica holderliniana, na qual a separação entre a esfera humana e a esfera divina - entenda-se: a perda da garantia - envolve um duplo movimento de infidelidade, de parte a parte. No momento de estranheza diante da Acrópole, Freud teria experimentado a infidelidade dos deuses através do silêncio da deusa Atena, indiferente ao seu não-saber e ao seu desamparo. Na ética de Hölderlin, todavia, o homem responde a essa infidelidade divina com a sua própria infidelidade, através da qual o desamparo é afirmado. Queixar-se do abandono, procurar preencher o vazio com consolações de qualquer espécie, ter desejos parricidas ou acreditar que o pai não pode ser superado - todas essas são formas de negar o desamparo, buscando ainda, mesmo que seja pelo avesso, a garantia divina.

O trágico se dá no momento em que o herói aceita sua condição errante, tornando-se também infiel aos deuses. Freud não seria trágico porque reconhece seu desejo parricida e sua impossibilidade de superar o interdito, mas, ao contrário, porque é capaz de ir além do interdito quando constrói a psicanálise como um saber sem garantias, saber disposto num outro estatuto que não o da arrogância de um poder. Nesse ponto, a ficção construída a propósito da experiência da Acrópole é capaz de questionar não apenas a obra freudiana, mas também as instituições psicanalíticas, em geral mais próximas das pretensões de um Édipo-Rei do que do ateísmo, no sentido grego, de um Édipo em Colona. Sem desapossamento, não há criação, mas somente arrogância conceitual e estancamento da pesquisa.

Fazer do próprio desamparo o motor de uma criação: é essa infidelidade freudiana que estaria na raiz da produção de conceitos como os de pulsão de morte e de supereu, conceitos que provocam uma deriva na teorização freudiana, e que não seriam possíveis, segundo a ficção proposta por Dunley, sem a experiência de estranheza na Acrópole, sem o enfrentamento de um tempo vazio e do espetáculo de um luto que se inicia em 1904.

Jô Gondar. Membro do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos. Doutora em Psicologia Clínica. Professora do Departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Rio de Janeiro.

Publicado no IDÉIAS- JB, 27 de julho de 2002