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"A Paixão Indignada" traça o perfil do psicanalista Hélio Pellegrino
Maria Rita Kehl
Sempre que leio alguma biografia da série "Perfis do Rio", da Editora Relume-Dumará, sinto pena de não ter nascido carioca. Nesses pequenos retratos - rápidos, sintéticos, como penso que uma biografia de ser, uma vez que nem o próprio Sartre deu conta do projeto de esgotar "tudo o que se pode saber sobre um homem" - a cidade é sempre personagem na vida dos escritores, artistas, intelectuais que ela ajudou a produzir. O Rio, (narcisicamente?) ama suas "personalidades" públicas, sejam cariocas, baianos ou mineiros.
"A Paixão Indignada", perfil do psicanalista e escritor Hélio Pellegrino pelo jornalista Paulo Roberto Pires, não foge ao espírito da série. A vida de Hélio Pellegrino é traçada aqui como pulso acelerado, desde a formatura do jovem médico em Belo Horizonte, em 1947, até sua morte causada por um infarto (precoce? as pessoas queridas sempre morrem precocemente) no Rio, em março de 88, aos 64 anos.
A morte, aliás, abre/conclui o livro; no enterro de Pellegrino a comoção causada pela sua perda, as homenagens e declarações dos amigos e admiradores dão a medida do seu tamanho - um tamanho "maior que a própria vida", escreve Pires, mas que, ainda assim, como nos ensinaram os gregos, só na hora da morte pode ser avaliado.
Se o autor dispensa a pretensão de "dizer tudo" sobre seu personagem, nem por isso deixa de nos apresentar, na própria organização dos capítulos do livro, a matéria-prima de que é feito um homem: como todos sabem, um homem se faz de outros homens/mulheres, na interface das trocas, influências, identificações, recusas.
Assim, Paulo Roberto Pires escolheu compor a figura multifacetada de Hélio Pellegrino por meio da importância que amigos, mestres e amores tiveram na vida dele. Cada capítulo apresenta o ponto de vista de um ou vários amigos: "Fernando, Otto, Paulo", "Nelson" (Rodrigues) "Zuenir"; "Iraci" (Doyle) e "Dona Catarina" (Kemper), analistas e mestras de Hélio; além das mulheres amadas, "Maria Urbana", "Sarah", "Lya".
O Rio de Janeiro, para onde Hélio e Maria Urbana se mudaram logo depois de casados, também figura como capítulo. A inclusão não é gratuita: Hélio Pellegrino foi, nas quatro décadas em que viveu no Rio, um homem da sua cidade, para quem a palavra "cidadão" ainda parece fraca - mais que o exercício contínuo da cidadania, a vida de Hélio Pellegrino consistiu numa série incansável de intervenções e invenções que afetaram diretamente o pensamento e a vida política da cidade em que escolheu viver - e, a partir dela, de todo o Brasil.
A dimensão do homem político, "lato sensu", predomina neste "A Paixão Indignada" sobre todas as outras - com prejuízo, a meu ver, do psicanalista, que fica em segundo plano. Mas talvez fosse esta mesma a hierarquia das paixões na vida de Pellegrino, apelidado homem-comício pela força do verbo com que, segundo Pires, fascinava multidões. Terá sido a indignação sua marca mais constante? Ou é impossível se evitar, ao compor um retrato, um certo traço de caricatura? Ou mais: até que ponto a popularidade não reduz um pouco a face pública de um homem a uma certa caricatura de si mesmo?
O compromisso (do biógrafo? do biografado?) com a indignação ofusca um pouco a face reflexiva, contemplativa - não nos esqueçamos do poeta -, levemente melancólica, do mineiro Hélio Pellegrino. A indignação e a pressa, que fizeram dele um articulista agilíssimo, interferindo no calor da hora sobre os acontecimentos nas páginas dos jornais, irreverente, radical.
A generosidade deste homem, que afirmava o "estar-com-o-outro" como valor maior, fez com que ele estivesse sempre presente na tumultuada cena carioca do período da ditadura militar, fosse preso em 1969, expulso da Sociedade Brasileira de Psicanálise em 81, acusado pelo ensaísta José Guilherme Merquior de ser um "escritor sem livros". Mas como a generosidade, quando não se origina da pura culpa, pode ser uma estratégia inteligente para o bem-viver temos neste perfil traços de um homem alegre, cheio de senso de humor, cuja sensualidade fazia par com um amor quase sagrado pela vida - a qual, para este cristão convicto, era vista como dom de Deus.
Uma generosidade que o autorizou, a partir de sua sincera boa vontade, a conceder uma hora de escuta (analítica, sim) ao coronel que o mantinha preso num quartel da Polícia Militar. E que criou a lenda segundo a qual, em seu primeiro consultório, havia uma placa dizendo: "Só um louco se analisa com Hélio Pellegrino". Nós, psicanalistas brasileiros das gerações seguintes, ainda não nos demos conta do quanto temos a aprender com essa loucura.