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Maria Auxiliadora de Almeida Cunha
Arantes e Maria José Femenias Vieira
São Paulo, Casa do Psicólogo, 2002.
Estresse: conceituar é preciso
O termo estresse hoje faz parte do linguajar coloquial. Pode ter uma infinidade de significados, e por isso mesmo perdeu a força e a especificidade: o que hoje se chama de estresse nada tem a ver com o conceito primeiro. Somos "estressados", ou usamos expressões tais como "rolou um estresse", que poderiam dar a entender que estamos diante de alguém meio "nervosinho", ou diante de alguma situação que causou algum mal estar; enfim, um termo que serve para designar algum incômodo, e que pode ser de ordem psíquica ou física.
Isto se deve em parte à própria origem do conceito, cunhado pelo fisiologista Hans Selye, que tentou dar conta da síndrome de se sentir doente como sendo uma resposta específica ou não específica a agentes agressores. Aí já está postulada a plasticidade da resposta do organismo como um todo, corpo e mente, bem como a idéia de defesa sistêmica e de adaptação a agentes patogênicos ou nocivos, no sentido de manutenção da homeostase. Trata-se de um conceito polivalente, a que Selye nomeou de Síndrome de Adaptação Geral, e que passou a ser conhecida como contendo três fases: 1) de alarme; 2) de resistência; 3) de exaustão.
Este livro faz parte da Coleção Clínica Psicanalítica, editada pela Casa do Psicólogo (abril, 2002), dirigida por Flávio Carvalho Ferraz, que propõe discutir temas contemporâneos da psicopatologia. Nele, Maria Auxiliadora Arantes, psicanalista, e Maria José Femenias Vieira, médica gastroenterologista, com formação em psicossomática psicanalítica, fazem uma ponte entre os estudos mais recentes deste tema e o pensamento psicanalítico. A primeira irá desenvolver uma conexão entre as fases de alarme e resistência e o conceito de angústia, até chegar à fase de esgotamento, sob a ótica da psicanálise. Maria José fará a mesma leitura, visando oferecer ao leitor leigo uma compreensão da fisiologia do estresse. Rara combinação na literatura. Em meu entender a grande contribuição destas autoras foi a de resgatar a riqueza do conceito, ou desta figura, devolvendo-lhe seu devido estatuto. E estaremos então, no âmago do solo perigoso mas fértil do sofrimento humano.
O livro consta de duas partes. A primeira, de Maria Auxiliadora, contém quatro capítulos, que vão desde o histórico e conceituação do termo estresse, passando pela questão do desamparo e da angústia, pelo estresse no trabalho e finalmente uma abordagem do burnout. O último capítulo é de Maria José, e diz respeito às inter-relações entre as condições internas e externas do estresse.
Quanto à parte I, parece-me valer a pena considerar em maior detalhe o Capítulo 2, por julgar ser sua parte mais preciosa, pela forma com que conduz a relação entre estresse, desamparo e angústia. Tomando como baliza autores de peso que se debruçaram sobre questões que guardam parentesco com o conceito, a autora vai tecendo, de maneira muito interessante, uma trama delicada com as três fases postuladas por Selye, de tal forma que nos faz necessariamente recair no mal estar de nossos dias: angústia e desamparo são os males de nossa civilização.
Maria Auxiliadora se detém em Spitz e suas observações com crianças institucionalizadas, onde nos apresenta de forma didática como se operam estas três fases. Além disso, cita outros autores tais como Mario Eduardo Costa Pereira, ao referir-se ao desamparo e pânico, e outras questões atuais da clínica. Rastreando a angústia e seus correlatos, medo e ansiedade, e a angústia como elemento estruturante do existir humano por sua função defensiva, chega à bela metáfora de Zeferino Rocha, de angústia como "sombra do ser". A sombra atesta a existência, fala de um corpo próprio, confere materialidade ao que não é visto sem a luz. (p.57)
A autora segue ainda acompanhada de Laplanche, que trabalha a hipótese da angústia no lugar de resistência, de vacina-sinal, a convocar as defesas do corpo a não sucumbir ao ataque sofrido. Este autor fala também em elaboração do registro psíquico; em deixar escoar no corpo a dor, para que não se entre em colapso; na escolha da neurose como determinada por fatores hereditários, sem no entanto deixar de propor uma "imaginarização" do somático. Além destes, Pierre Marty, Joyce Mc Dougall, Christopher Bollas, Flávio Ferraz, são outros dos tantos a quem a autora recorre. Joyce Mc Dougall, por exemplo, coloca a idéia de re-psiquização do conflito do sintoma, no sentido de ressimbolizar o que o paciente tenha excluído de sua vida psíquica. Finalmente, Monzani parece resumir, afirmando que "o susto, o golpe, a surpresa, têm o poder de desarranjo do funcionamento psíquico, e quando isto acontece e este arranjo é violado, o aparelho psíquico irá funcionar de acordo com as exigências primitivas , até conseguir a rearrumação". (p. 64)
Ao longo de todo o livro fica muito clara a função protetora e a resposta que vem a desencadear futuros desarranjos. É o que ambas autoras chamam de "bom" e "mau" estresse.
O capítulo 3 se refere à análise das condições do trabalho e seus desdobramentos sobre o físico e o psiquismo do trabalhador. Oferece um excelente quadro do entrelaçamento das condições sociais, econômicas e de trabalho como agentes estressores do trabalhador.
Até aqui estamos no campo do alarme e suas defesas. No entanto quando estas se esgotam, o sistema entra em colapso . Para tanto, utiliza-se da síndrome de burnout, termo usado para se referir ao colapso dos motores a jato e foguetes, e transportado para a psiquiatria. É um termo mais freqüentemente usado para se referir a profissionais afetados por características da profissão, mas que pode também ser estendido aos demais. É a manifestação mais radical do estresse em sua fase mais aguda e de esgotamento.
Por fim, Maria José nos oferece um "panorama" do funcionamento e das interfaces dos sistemas nervoso, endócrino e imunológico que atuam no embate e nos mecanismos de defesa do psiquismo e do soma às ameaças ou agentes agressores, na tentativa de manter a homeostase. De forma didática, nos mostra as reações fisiológicas do organismo nas diferentes fases do estresse, do alarme ao colapso, sem deixar de apontar para a possibilidade de manejar de forma mais criativa e eficiente os eventos estressores. E termina citando P. R. Sousa (1992): "... As palavras que saem dos doentes são, além da queixa, uma teia de significações, pedidos, desejos. Por isso mesmo é que saem e é como se não saíssem, são só o expelido: palavras imaginárias, de dor vivida no coração."
Por fim, pela atualidade das duas abordagens, recomendo a leitura. É quase um mapeamento de boa parte da psicopatologia contemporânea, e feito com a delicadeza de quem observa e escuta o que há de mais humano no humano: a dor.
Lilian C. R. Quintão
psicanalista, membro do Departamento
de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae