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A sexualidade, a família e o futuro
'A Família em Desordem', da psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, discute as novas modalidades familiares, entre elas os lares homossexuais

Napoleão Sabóia
Correspondente

PARIS - A evolução atual do desejo de constituir família iria certamente deixar Freud eufórico, fascinado. Só que seus discípulos psicanalistas teimam em não aceitar essa realidade em que a autoridade patriarcal, entre outros valores antigos, perdeu sua força hegemônica sob o impacto dos novos modelos de células familiares. Mas se persistirem na recusa das transformações em curso, os herdeiros intelectuais de Freud acabarão desempregados, com suas clínicas às moscas. É o que pensa e escreve em seu livro A Família em Desordem ( Editora Zahar, 200 págs., R$ 26), a psicanalista e historiadora francesa Elisabeth Roudinesco, cujo maior mérito, nesta obra, é ir além do testemunho sobre a "desordem" familiar aparente para mostrar a transformação dos modelos e analisar serenamente o presente.

O desejo dos homossexuais de constituírem famílias, o direito reconhecido às mulheres de procriarem livremente, a situação dos filhos nascidos e criados em estruturas monoparentais, heteroparentais e homoparentais, entre os tantos temas focalizados no livro, são tratados dentro de uma lógica original, combinando os fundamentos científicos com as razões que impulsionam a dinâmica emancipadora da ordem familiar.

Na entrevista que se segue, Elisabeth Roudinesco aborda algumas das questões essenciais colocadas por seu trabalho.

Estado - O que foi determinante na transformação da família?
Elisabeth Roudinesco - Duas coisas, sobretudo: a adoção do divórcio, que legalizou o caso da família recomposta. Saiu-se pois do modelo em que só havia uma forma de família possível - aquela constituída pelo casamento ocidental, forma que ainda subsiste entre outras e que continua tendo seu equivalente no mundo islâmico. O divórcio permite que as pessoas se casem como elas desejam e não mais uma vez por toda a vida. A liberdade individual se impôs no caso, a instituição familiar se secularizou, perdeu aquele caráter sagrado. A segunda coisa foi o controle da procriação pelas mulheres. Com isso, a família se liberou do poder patriarcal. Hoje, graças aos métodos anticoncepcionais e mesmo ao aborto são as mulheres que modelam em larga medida o destino demográfico de uma nação. Nessa evolução, o instinto maternal já não desempenha o mesmo papel do passado, pois, uma vez livre para procriar ou não, a mulher passa a fazer menos bebês.

Estado - Com a autoridade paternal posta para escanteio, como vai ficar a família? Para que vai servir o pai?
Elizabeth - O medo da perda da autoridade paternal existe desde quando a família surgiu. Não penso que o pai tenha perdido toda a sua autoridade; ele perdeu apenas aqueles poderes exorbitantes, ou seja, o direito de vida e morte sobre a mulher e os filhos, tudo aquilo que não se coadunava com os direitos e liberdades assegurados pela democracia. A autoridade paternal agora é compartilhada. A propósito, gostaria de precisar que se as mulheres detêm o poder da procriação, elas não vão exercê-lo de qualquer jeito, até porque, naturalmente, tal poder só se concretiza com a mediação dos homens. Vale notar também que nessa reformulação da estrutura do poder familiar intervieram igualmente os direitos conquistados pelos filhos, que se puseram de certa modo em pé de igualdade com os pais.

Estado - No livro, a sra. se mostra cautelosa na análise dos rumos que a sociedade poderá tomar neste século, inclusive sobre o tema polêmico de sua feminização...
Elisabeth - Não sou nem otimista nem pessimista sobre a evolução da sociedade. Não tomei qualquer partido sobre a questão. Mas não creio que nossos valores entrem em decadência absoluta ou que vá se assistir a algo capaz de lembrar a queda do império romano. Também não acredito na feminização da sociedade, o perigo não vem daí. O verdadeiro perigo viria de uma ordem mundial em que só exista uma única potência ou que propicie a multiplicação dos conflitos. Mas, com o surgimento de uma opinião mundial que tende a constituir uma forma de poder incontornável, podemos assistir uma evolução sem precedente na história da civilização.

Estado - Qual será a marca essencial da família neste século?
Elisabeth - Haverá famílias de diferentes maneiras ou formatos: com caráter tribal por momentos, sem que isso leve à tribalização da sociedade. Teremos famílias mais abertas, recompostas, famílias monoparentais, homoparentais, etc. O que restará essencial é tudo o que se refere aos filhos. Uma criança não pode existir, se desenvolver normalmente sem amor. Mas o amor não basta - é preciso que, ao lado, a palavra lhe seja dada. Isso porque, segundo observações comprovadas, os meninos criados em comunidades em que não haja relações personalizadas, passando pela palavra, o papo, ficam sujeitas a desequilíbrios que podem levar à loucura. Portanto, é necessário um núcleo familiar restrito, digamos quatro pessoas entre homens e mulheres, para que a criança se desenvolva corretamente. No mais, será por causa dos filhos que se frustrarão todas as tentativas de abolição da família, cujo futuro me parece dos mais promissores. Basta ver que, depois de ter sido tanto contestada, ela é desejada por todos agora, talvez mais do que nunca.

Estado - É certo que a sra. começou a se interessar pela família a partir do momento em que os homossexuais resolveram se casar e ter filhos?
Elisabeth - Não foi bem assim. Há muito tempo eu queria escrever sobre o modelo edipiano da família, não para atacar a psicanálise, mas para criticar o uso que numerosos psicanalistas fazem do complexo de Édipo. E me dispus de vez ao novo trabalho quando vi numerosos psicanalistas se confinarem no mais absoluto conservadorismo ante as mudanças em curso na sociedade, esquecidos de que seus predecessores, durante um século, encarnaram a vanguarda. Foram acusados por membros das diversas confissões religiosas e por setores da burguesia de pregar o divórcio, de querer destruir a família com a teoria subversiva de Freud, denunciado como pansexualista, etc.

Estado - Esse conservadorismo se expressa como?
Elisabeth - Pela maneira como os psicanalistas se agarraram e se agarram ainda a uma concepção - a meu ver, falsa - do complexo de Édipo, no pressuposto de que a incontornável diferença de sexos vai desaparecer pelo fato de os homossexuais fundarem famílias. Tal visão é absolutamente aberrante! Coloquei-me então a questão-chave de saber por que os homossexuais queriam constituir famílias - um desejo que, ao contrário do que pensam os psicanalistas conservadores, não se opõe em nada ao complexo de Édipo. Ora, um conceito é falso se a realidade se revela o contrário do que ele desenvolve. No caso, os psicanalistas pareceram raciocinar como Brecht na famosa peça sobre o totalitarismo. Ou seja, se o povo não está contente com o governo, então que se mude o povo! Em síntese, os psicanalistas não souberam compreender que nesse grau superelevado de civilização que atingimos em diferentes registros - sexual, familiar, em matéria de liberdades individuais - eram absolutamente legítimas as aspirações dos homossexuais por normalidade institucional, pela constituição de família e pelo conseqüente desejo de ter ou de adotar filhos. Afinal, os homos não são criminosos, não atentam contra as leis antropológicas fundamentais, como a proibição do incesto, etc. A verdade é que assistimos a uma transformação ligada, aliás, à própria psicanálise, a saber: se os homossexuais são o que eles são, hoje, emancipados, com uma identidade reconhecida e acatada, isso se deve em parte ao fato de que Freud os liberou da idéia de tara, de degenerescência, sem falar da contribuição relevante da psicanálise na afirmação das liberdades individuais.

Publicado no Jornal "O Estado de São Paulo", Caderno 2, Domingo, 18/05/2003