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Babel e a Criação da Necessidade Estrutural da Tradução

Sérgio Telles

Resenha do livro: Torres de Babel


Jacques Derrida
Editora da Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte - 2002 - 76p. (*)

O pequeno ensaio "Torres de Babel" de Derrida faz parte de seu livro "Psyché", de 1987.

O tema central é a tradução.

Ao invés de se contentar com o convencional "Traduttore, traditore", ditado que classicamente condensa as dificuldades e impasse inerentes à tradução, Derrida aborda o tema bem a seu estilo. Mais uma vez, seguimos os tortuosos caminhos de seu pensamento, que, a cada volta surpreende e encanta o leitor com sua sutileza e finura, mas só se ele (o leitor) estiver atento. Caso contrário, logo ficará perdido no labirinto de suas complexas frases, cheias de parágrafos digressivos, parênteses pretensamente esclarecedores, comentários, adiantamentos, flash-backs e ilustrações.

Na verdade, "Torres de Babel" está centrado em um comentário de Derrida sobre o famoso ensaio de Benjamin sobre a tradução, o "A Tarefa do Tradutor" ("Die Aufgabe des Übersetzers"), texto que, por sua vez, ele o lê já numa tradução, realizada por seu mestre Maurice de Gandillac. É interessante lembrar que o próprio texto de Benjamin é, por sua vez, o prefácio de uma tradução por ele feita de "Tableaux Parisiens" de Beaudelaire. Está montado então um jogo de espelhos lingüísticos, a refletirem infinitamente o enigma das línguas.

O livro abre com o texto bíblico sobre a Torre de Babel. Ali está escrito que, naquela ocasião, os homens orgulhosamente planejavam a construção de uma torre com a qual chegariam aos céus, marcando uma cidade que os uniria e protegeria para sempre, evitando sua dispersão pela face da terra. Ao mesmo tempo, com isso, se fariam um nome. Esse projeto ousado e audacioso não agradou a Deus, que o interpretou como fruto da arrogância e soberba dos homens, desafiando-o em sua posição de criador supremo. Deus então raivosamente "clama seu nome: Babel, Confusão", o que estabelece a confusão de línguas, impede a consecução do projeto, provoca a dispersão dos homens e a incompreensão entre eles.

Segundo Derrida, Deus destrói o nome que os homens queriam se dar, construindo sua própria língua e sua identidade humanas. Deus reafirma seu próprio nome, que se confunde, nesse momento, com o de Babel e de Confusão. Está imposta a confusão de línguas, assim como a necessidade da tarefa impossível do tradutor, que deve trabalhar com a língua de Deus, que é Babel e confusão. Desta forma, fica estabelecida uma ligação entre a linguagem e Deus, a língua falada é a sua, e está imposto o nome-do-pai. Pergunta-se Derrida qual língua era falada durante a construção da torre, antes de ter sido proclamada "Babel". Pode-se traduzir um nome próprio (Deus, Babel)? Pode-se confundi-lo com um nome comum (confusão)?

Ao projeto humano, que visava a racionalidade de uma comunicação clara e direta entre os homens, Deus impõe a sua própria língua, que - fragmentada numa miríade de línguas humanas - será para sempre estranha e estrangeira para os homens, que estarão irremediavelmente condenados à falibidade e incompletude, além de necessitarem de uma sempre falha tradução.

Antes de abordar o texto de Benjamim, Derrida lembra os três tipos de tradução segundo Jakobson: a intralingual (que se dá dentro da própria língua), a interlingual ou tradução propriamente dita, (feita entre diferentes línguas) e a tradução intersemiótica (interpretação de signos lingüísticos através de signos não lingüísticos).

Do texto de Benjamim, Derrida sublinha o título, "A Tarefa do Tradutor", insistindo no aspecto de missão, compromisso, obrigação, dívida, responsabilidade, restituição, todos eles elementos implícitos no ato de traduzir.

Dos trechos pinçados por Derrida do ensaio de Benjamin, o mais importante é onde se estabelece o vínculo entre a linguagem dita "pura" e a "verdade" a partir de um texto de Mallarmé que Benjamin, significativamente, cita em francês, sem traduzi-lo para o alemão, língua em que escreve.

Eis a tradução em português desse trecho: "Às línguas imperfeitas porque várias, falta a suprema: pensar sendo escrever sem acessórios, sem cochicho mas tácita ainda a imortal palavra, a diversidade, sobre a terra, dos idiomas, impede pessoas de proferir as palavras que, de outro modo, se encontrariam, por um golpe único, ela mesma materialmente a verdade".

Para Benjamin, a tarefa do tradutor não é a recepção, a comunicação ou representação do original. Ele deve centrar seu interessa basicamente sobre a forma, como evidencia qualquer tentativa de traduzir textos sagrados ou poéticos. Fica aí caracterizado como o conteúdo não deve ser o interesse maior do tradutor. Dizendo de outra forma, a tarefa do tradutor é "fazer amadurecer a semente de uma linguagem pura".

Essa "linguagem pura" parece remeter à mítica linguagem primeira, originária, da qual todas derivaram e que garante o parentesco essencial entre todas elas, sendo ela a portadora da mais depurada verdade. É a língua de Deus, que ao se impor em Babel, o fez para "deixar entender que é difícil traduzi-lo e assim entendê-lo".

Toda grande obra literária, todo original importante impõe-se como algo a ser traduzido (ele "suporta" e "exige" uma tradução) por ser portador de um fragmento dessa "linguagem pura". Cabe ao tradutor captar esse fragmento, essa "semente de linguagem pura" e produzi-la em sua própria língua. É aquela "verdade" anunciada por Mallarmé.

Reside nisso também o que Benjamin chama de "sobrevida" de uma obra: o fato de ela ter uma vida própria, distinta da do autor, cuja existência natural se extingue, enquanto ela - por estar inscrita num universo simbólico - persiste e cresce toda vez que é traduzida.

A importância da tradução se dá pela promessa que estabelece de que é possível um acordo entre as línguas, a transmissão de algo, a base de todo entendimento.

A relação entre as línguas e a "linguagem pura" portadora da "verdade" fica bem sintetizado na bela "metáfora da ânfora" criada por Benjamin: "Pois, da mesma forma que os restos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o todo, devem ser contíguos nos menores detalhes, mas não idênticos uns aos outros, assim, no lugar de tornar-se semelhante ao sentido do original, a tradução deve de preferência, em um movimento de amor e quase no detalhe, fazer passar na sua própria língua o modo de intenção do original: assim, da mesma forma que os restos tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma mesma ânfora, original e traduções tornam-se reconhecíveis como fragmentos de uma linguagem maior".

Se as línguas se aproximam e tendem para uma linguagem maior, também é verdade que elas se afastam e que há algo intocável e intransferível na passagem de uma para outra, visível na absoluta singularidade com que cada língua expressa cada conteúdo. É isso que marca a diferença entre o original e a tradução, expressa por Benjamin na metáfora do caroço, do fruto e do invólucro, do caroço e da casca.

No original,iz ele, está o caroço, o núcleo duro que permite a tradução, a reprodução. Ali, teor e linguagem formam uma unidade determinada como a do fruto e do invólucro. Já a tradução, "envelopa seu teor como um manto real de largas dobras". Enquanto no original há uma natural harmonia e integração entre teor e língua, na tradução há uma solene e severa sobreposição de um "manto real" sobre o teor, que representa a autoridade do simbólico.

Chegamos finalmente à questão já mencionada da verdade. Diz agora Derrida: "A verdade seria de preferência a linguagem pura na qual o sentido e a letra não se dissociam mais. Se um tal lugar, o ter-lugar de tal acontecimento, permanecesse não encontrável, não se poderia mais, fosse esse de direito, distinguir entre um original e uma tradução".

A relação entre original e tradução tem, evidentemente, conseqüências jurídicas sobre direitos autorais que estabelecem a legitimidade das traduções, reconhecendo-lhe inclusive uma parcela de originalidade e trabalho autoral.

Embora o texto faça muitas referências ao sagrado e a palavra de Deus como aquela primeira, instauradora da estranheza e da impossibilidade de entendimento direto, impondo-se a tradução, mas também evocando uma inefável e fugidia verdade, penso que isso não deve ser confundido com qualquer posição religiosa ou mística. O nome de Deus aqui parece evocar a nostalgia frente ao próprio mistério indecifrável da existência das línguas. Afinal, o que querem elas dizer? O único que podemos constatar é que elas querem dizer. Elas - todas - querem simbolizar, representar. Elas falam.

Mais ainda, o nome de Deus é uma metáfora na própria língua para simbolizar o enigma da origem de tudo - nosso anseio de paternidade, nós, pobres homens órfãos, condenados à vida sem sabermos o porquê.

A meu ver, as grandes obras são portadoras dessa "linguagem pura" e da "verdade" não tanto por expressarem revelações sagradas ou divinas, mas por apontarem profundas verdades humanas produzidas e buriladas pelos autores e prontamente reconhecidas pelos leitores.

O problema da tradução, abordado aqui em profundidade, necessariamente interessa a todos nós analistas. Ao interpretar e construir, estamos sempre fazendo traduções do inconsciente para o consciente, tarefa ainda mais complicada e comprometida do que a do tradutor, tal como vista por Benjamin e comentado por Derrida.

Penso que essa afinidade de teores se concretiza no artigo "A Casca e o Núcleo" (1), de Abraham, que, como se vê, não acidentalmente aproveita no título a metáfora de Benjamim sobre o caroço, o fruto e o invólucro, sublinhada em "Torres de Babel" por Derrida. É também significativo que Derrida tenha feito um pequeno artigo para apresentar este texto de Abraham nos Estados Unidos, o "EU, a Psicanálise" (2).

O artigo de Abraham tendo como ponto de partida o aparecimento do "Vocabulário de Psicanálise" de Laplanche e Pontalis, faz uma interessante análise sobre o complexo trabalho de tradução entre a língua da psicanálise e a língua na qual se expressa, tendo antes enfatizado o ainda mais peculiar e inaccessível - que a língua da psicanálise não deve ser confundida com a língua do inconsciente, desde que esse é um discurso que prima pela ausência, pelo negativo, a ser apreendido nas entrelinhas, nos lapsos, nos erros.

Abraham aponta para a radicalidade nova da descoberta freudiana. O inconsciente é um sistema de símbolos, "mensageiros", representantes, dispostos numa sucessão de traduções em cadeia, em busca de uma possível significação.

Este artigo, em uma versão mais concisa, foi publicado no suplemento MAIS do jornal Folha de São Paulo, 17/11/02
Referências
1 - Abraham, Nicolas, "A Casca e o Núcleo", in "A Casca e o Núcleo", de Nicolas Abraham e Maria Torok - Editora Escuta - São Paulo - 1995 - p. 191
2 - Derrida, Jacques - EU, a psicanálise - Pulsional - Revista de Psicanálise - no 158 - junho 2002 - p. 11
(*) Uma versão mais curta desta resenha foi publicada no suplemento MAIS do jornal "Folha de São Paulo" em