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A atualidade das Teorias Sexuais Infantis

Jean Bergès e Gabriel Balbo

Resenha do livro: A atualidade das Teorias Sexuais Infantis


Jean Bergès e Gabriel Balbo singularizam uma prática de discussões teórico-clínicas que guarda toda a importância das <> da tradição lacaniana.

Nesse ato, são eles mesmos - e não os pacientes - que demandam escuta, no mesmo movimento em que tomam a audiência como lugar simbólico da contenção à deriva imaginária que um pas-de-deux poderia conduzir. Colocam assim, à prova, diante do público que pode refutá-los, suas constatações, problematizações e conclusões, abordando e reduzindo, por esse meio, a impermeabilidade do real na clínica. Por isso, levam a teoria aos confins de sua função na psicanálise.

Temos, na transposição escrita de seminários realizados nos anos 1997-98, um fragmento desse dispositivo que, há muitos anos, se oferece como lugar de interlocução privilegiada a todos aqueles que se interessam pelas interrogações clínicas, no quadro da Association Freudienne Internationale, em Paris.

Nesse ensinamento psicanalítico de método, os autores constatam que a Teoria Sexual Infantil é fruto não apenas do movimento pulsional em que o corpo responde ao outro, mas de uma premência induzida pelo discurso da mãe, ao supor um saber na criança, desconhecido para aquela.

Seguindo a trilha dos autores, eles partem da consideração freudiana relativa ao fragmento de verdade da teoria e a não espontaneidade dessas, impulsionadas que são pelas pulsões egoístas, ou seja, pelo corpo erotizado da criança. Os autores ressaltam que esse corpo erotizado é erigido pelo outro como monumento de desconhecimento. Para que haja teoria, é necessário que um fragmento de veracidade seja ligado ao que há de desconhecido, no corpo infans. Por duvidar, por não saber tudo, por se supor desconhecendo algo, a mãe pode formular a hipótese de que seu filho é capaz de fazer uma teoria, ou seja , ela lhe delega a possibilidade de ele lhe ensinar algo disso. Por ser dividida, a mãe transforma sua oferta em demanda, articulando o objeto da necessidade oferecido ao que ela permite de liberdade para a criança responder e ao que ela supõe que a criança lhe diz. É o que será chamado, a seguir, pelos autores, de obliqüidade do olhar materno.

Enfim, o que opera a ultrapassagem do pulsional em direção ao pensar é a articulação da pulsão ao discurso do Outro. Assim, no comércio sexual entre a mãe e a criança, há um trabalho do discurso, devido a que, junto ao avanço do saber da criança, também está em questão, para a mãe, a verdade sobre a sua própria teoria sexual. Assim, o saber da criança é ao mesmo tempo represado e permitido pelo discurso do outro. A mãe espera que a criança um dia lhe diga a causa de estar aí, ou seja, que a criança lhe diga o que é relação sexual.

Os autores se dedicam, a seguir, a analisar as relações da pulsão com as interrogações sobre a causalidade. A capacidade sublimatória da pulsão sexual problematizada pelo próprio Freud ao introduzir o narcisismo (na medida em que o alvo sexual não é mais substituível por um alvo intelectual: o alvo pode ser narcísico e o objeto pode ser o eu), é retomada em O Eu e o Isso (em que Freud aponta que, ao dar assistência às pulsões de morte para dominar a libido, o Eu incorre no perigo de tornar-se objeto delas e expirar). É o que remete à questão: de que lado das pulsões se origina a capacidade sublimatória? Seria preciso situar a sublimação numa posição terceira em relação à pulsão de vida e a pulsão de morte?

Uma parte da libido subtrai-se ao recalcamento e muda de alvo, dando-se outro, não-sexual. Pela não correspondência plena, ou seja, pela obliqüidade do olhar da mãe que introduz o significante, e com ele o equívoco, a criança não pode representar as coisas diretamente, precisando recorrer ao representante da representação que abre a via da sublimação. Portanto, o olhar sublime materno permite jogar com as sombras, com as diferenças que possibilitam uma leitura - e não uma mera inscrição - do que se passa no corpo da criança, ultrapassando a tomada do corpo da criança como simples prolongamento do seu. Essa obliqüidade vetoriza a possibilidade de uma teoria, num afastamento que opera o trabalho de sublimação.

Assim, no orgânico, que é a representação exata do sexual, algo vem faltar. O significante, no discurso, se intercala entre o orgânico e a representação, tornando obrigatória uma teoria. A hipótese que uma mãe faz, de uma demanda subjacente que, para ela, a criança exprime, é uma demanda que faz dela algo da ordem significante, mostrando que a estrutura está aí desde o começo.

O recalcamento do sexual obriga à obliqüidade, permitindo evocar o discurso sublime: um quinto discurso que deixa cair o objeto a, discurso que tem um buraco no lugar de um objeto. É a partir desse vazio central que se cria a pulsão à sublimação, que recalca não apenas a pulsão sexual, mas também a pulsão de morte.

É a dupla negação que opera o ponto de passagem entre as teorias sexuais infantis e a sublimação. Afinal, o próprio pensamento está ligado à Verneinung, à denegação. Primeira negação: a criança sabe algo que não deveria saber, havendo uma negação que incide sobre esse saber. Segunda negação: a criança deve saber algo que ela sabe não ser verdade nos discursos que lhe sustentam os pais. A dupla negação situa-se não só entre a teoria sexual infantil e a sexualidade (em que a criança, organicamente faz hipóteses justas) mas também pelo fato de que permite pôr-se a pensar (em que o imperativo dos pais de mentir e de se mentir a convocam a crer na mentira em relação à sexualidade). Esse imperativo opõe-se à hipótese implicada na teoria sexual infantil. Tal hipótese, fruto do movimento de antecipação operado pela criança, é interrompido pelo imperativo mentiroso dos pais. Por isso, no movimento postural da criança no espelho, ela opera essa antecipação negando sua falta de coordenação motora. A instalação da negação de sua falta de coordenação atual permite antecipar sua maturação psicomotora, apreendendo a sua imagem e sua totalidade.

A disparidade entre uma Gestalt (do exercício do instinto animal) e as Imagos, (o conhecimento) entreabre o campo das teorias sexuais infantis. Essa disparidade permite a permanência e a identidade dos objetos, pela instauração do processo de identificação imaginária e simbólica ligada ao Dom de amor não especular da mãe, como objeto a. A criança é a encarnação desse amor como objeto da necessidade materna e é dele que origina toda a linguagem privada do laço da mãe com sua criança, campo em que a criança circula para tentar manter essa língua específica.

A incidência de um pequeno outro no espelho (um irmão real, temido ou fantasmatizado, ou mesmo o pai na posição de filho) é destruidora e destitui a criança de sua onipotência. Essa frustração na antecipação totalizante da criança produz a teoria sexual que assegura que não haverá outras crianças. A sexualidade dos pais fica assim sob o controle da criança: ela é única. Entretanto, é com essa frustração que a criança ultrapassa sua encarnação de um gozo Outro, como objeto a, ou seja, como amor da necessidade de mãe para supor-se, através da teoria, objeto causa do desejo materno, acedendo ao gozo fálico.

É sobre essa base de articulações que os autores desdobram considerações para abordar a tomada da palavra pelo corpo. As crianças em estados depressivos, autistas, surdas, hipercinéticas e hipotônicas, as manias e as perversões servem de mote para fazerem não apenas uma análise crítica da posição de Piaget e da visão cognitivista mas também para relançarem, em outro registro, a proposição neurológica da dita Síndrome do déficit de atenção e hiperatividade.

Mas isso ainda não é tudo o que os autores tratam. Da passagem ao ato para nada saber, do desconhecimento como significante-mestre, da lógica entre o pensamento e a ação e da articulação do mito de narciso à pulsão de morte, os nove seminários dos autores nos instigam a interrogar a teoria à luz da clínica e a reduzir o que há nelas de imaginário.

É o que faz, desse livro, lançado em 2001 pela CMC Editora, de Porto Alegre, uma iniciativa tão viva para todos aqueles que estão dispostos a enfrentar e a acolher os impasses que a teoria psicanalítica afetada pela clínica de crianças nos propõe.

Angela Vorcaro
Psicanalista da equipe técnica da DERDIC/PUCSP,
Doutora em Psicologia Clínica,
Membro da Association Lacanienne Internationale,
Membro da Associação Paulista de Estudos Psicanalíticos.
Resenha encaminhada à Revista Psychê (ISSN 1415-1138), em 26 de janeiro de 2002