A relação da psicanálise ao social e ao político

Comentários sobre os textos

Regina Orth de Aragão

Em primeiro lugar, gostaria de externar meus agradecimentos a René Major pela idéia genial dessa proposição dos Estados Gerais, e por sua realização . Nesse sentido gostaria também de agradecer ao Comité Francês de Preparação, que tornou possível esse encontro, acolhendo-nos nesse espaço tão especial, não só por sua beleza, como também por sua inscrição na história francesa, e portanto na de todos nós, que de certo modo, a ela estamos ligados.

Ainda uma lembrança, para dizer que, mesmo tendo sido numerosos a trabalhar no Brasil para a preparação dos Estados Gerais, cabe ressaltar o papel fundamental que lá tiveram Cristina Magalhães, em São Paulo, e Helena Besserman Viana, no Rio.

Gostaria ainda de agradecer muito especialmente aos autores dos textos que me foram dados a ler, os quais me proporcionaram , ao percorrê-los, um vivo prazer. Por isso mesmo , permito-me sugerir fortemente a todos que tomem o tempo de ler esses textos, marcantes que são por sua qualidade, diversidade, e, para a maioria deles, pela originalidade que atesta do movimento criativo no qual foram engendrados.

É necessário agora dizer uma palavra sobre o meu trabalho de leitura. Trata-se, não há dúvida, de uma" tarefa impossível", como bem disse René Major no sábado de manhã. Tarefa impossível, aliás, como outras que desempenhamos na vida, e creio mesmo que só as realizamos por serem justamente impossíveis. Objetivamente, porém, dado o grande número de textos, será realmente impossível relatar todos. E de todo modo, as escolhas foram inevitáveis, ligadas ao que em mim, nesse momento, faz eco em relação às minhas próprias interrogações. Tentarei atender ao pedido feito aos leitores, de não se "apagarem" diante dos textos, mas procurarei evitar, em contrapartida, fazer desaparecer os autores atrás de minha leitura.

Nas escolhas que terminei fazendo, privilegiei um conjunto de textos que dizem respeito, de um modo ou de outro, à articulação da psicanálise com a problemática da subjetividade contemporânea. Porém, antes de passar a referir-me , brevemente, a alguns desses textos, gostaria de fazer um apanhado geral dos trabalhos que se apresentaram para esse tema. Meu primeiro comentário é o de assinalar o grande numero de textos no site, perto de cinqüenta, creio, testemunhando do grande interesse que o tema suscitou. Aqui também, como ocorreu com o tema sobre a instituição psicanalítica , o maior numero de textos veio da América Latina, com a presença mais marcante de autores argentinos e brasileiros, mas também com contribuições de outros países latino-americanos, com o México, a Colombia e o Perú. Da França, há um conjunto de trabalhos tratando da regulamentação do estatuto de psicoterapeuta, que toca diretamente ao estatuto do psicanalista. Há aí um projeto interessante a esse respeito, redigido pelo grupo A.P.U.I.. Há ainda dois textos norte-americanos, vindos do grupo de Chicago, que remetem à história e à situação da psicanálise no Brasil. E gostaria de mencionar três textos alemães,. que infelizmente não pude ler, por desconhecimento da língua.

Como não poderia deixar de ser, um grande número de textos sul-americanos refere-se à história ainda recente de nossos países, em seus contextos de perseguições políticas, com suas conseqüências nefastas, e por vezes mortíferas. No entanto, como já disse acima, meu interesse voltou-se hoje para um outro conjunto de trabalhos, e eu gostaria de explicar-me rapidamente sobre isso.

Tendo feito parte da geração universitária dos anos 60, que sofreu duramente os efeitos da repressão ditatorial no Brasil, passadas já algumas décadas, pergunto-me se nossa urgência agora não seria a de tratar e de refletir sobre a nova face que adotou o sistema social e financeiro no qual vivemos, onde a repressão explícita e brutal não mais parece ser necessária, já que métodos de controle social muito mais eficazes estão colocados em prática, dentro de um contexto de democratização aparentemente permissiva, onde não falta, muitas vezes, me parece, uma dimensão de cinismo que permeia as relações de poder e a própria moral social contemporânea.

Democracia e psicanálise - quais suas interfaces? Já dissemos aqui, nesses dias, que a psicanálise precisa da democracia para florescer. Mas há algo mais que as liga, ambas partilham o campo do impossível, de algo que se busca, sem nunca realmente conseguir. . Da mesma forma que a psicanálise busca favorecer a expressão da palavra recalcada, produtora do sintoma, mas também da violência e da dor, no plano do sujeito, a democracia o faz, no plano do social.

Mas como pensar, no interior da relação analítica, a expressão da ordem social? É a transferência que nos indica o caminho, e nesse sentido, não podemos separar a teoria freudiana da transferência do campo da cultura, ou da ética que situa o analista diante dessa transferência. Vejamos então como alguns dos textos nos propõem pensar essas questões.

Em seu texto "Filiação no tempo do ecstasy" Fernando Geberovich, ao tratar a toxicomania como a expressão máxima das patologias do agir, toma a questão da temporalidade como um eixo de reflexão na análise da sociedade contemporânea. Diz ele: "a velocidade substitui o tempo. O agora do agir substitui o presente, faz estreitar a perspectiva do outrora e do dia seguinte", e se pergunta se podemos considerar uma cultura sem Tempo, sem Mito, desprovida desse efeito de significação ou mesmo de legitimação que chamamos verdade. Essa aceleração do mundo tornaria impossível aos pais fornecer referências aos filhos, transmitir-lhes limites. Como se o futuro desaparecesse no presente, num agora que inclui tudo. Os jovens se veriam reduzidos a "surfar sobre a vaga das tendências da época, oscilando entre a velocidade e a queda , na direção ou de uma iniciação sem dívida de filiação ou numa auto-destruição patológica."

O desafio para os psicanalistas diante desse quadro seria o de reinventar o tempo do enquadre analítico, para nela fazer caber o agir, retomado na dimensão transferencial da passagem ao ato.

Ainda em relação a essa dimensão do tempo, Wilson Chebabi, no texto em que analise as relações entre as instituições psicanalíticas e a mídia, pergunta-se como, "nesse mundo em que não se pode parar", haveria espaço para o procedimento analítico, em que o sujeito precisa de tempo para o recolhimento e a revisão sentida e sofrida de sua própria experiência.

Claudia Amorim Garcia propõe que pensemos nas mutações que vem sofrendo o super-eu na sociedade contemporânea do consumo e da permissividade. O paradoxo do super-eu contemporâneo se manifestaria por uma oposição inconciliável entre a falta (de lei) e o excesso (de gozo), categorias que ela aproxima, num primeiro momento, da feminilidade, sugerindo então que o super-eu contemporâneo passaria por uma "feminilização", para depois falar em super-eu tirânico e desatinado.

Ela apoia-se em estudo sobre a pós-modernidade que consideram um problema crucial para a subjetividade atual a recepção, elaboração e atribuição de sentido ao excesso de estímulos a que estão submetidos os sujeitos , produzindo uma fragmentação das estruturas simbólicas que sustentam a organização subjetiva. Lembra então a proposição de Baudrillard de que não existe uma sociedade de abundância, como nos querem fazer crer, mas um sistema econômico com diferenças sociais extremadas, no qual a penúria é estrutural.

O sujeito contemporâneo se veria assim submetido a um excesso de estimulação dificilmente "metabolizável", o que se aproximaria da concepção do trauma em psicanálise, e que o mergulharia num estado de desamparo, fazendo emergir um super-eu primitivo, basicamente dependente da ameaça externa. Esse super-eu pouco reteria do "caráter do pai", mas tendo sido constituído a partir de uma situação traumática de desamparo, apresentar-se-ia tirânico e desatinado. Preso assim num sentimento de culpa primitivo, esse super-eu se deixaria facilmente aprisionar e fascinar pelas imagens e engodos que lhe são oferecidos pelas novas tecnologias de comunicação, produtoras de uma realidade virtual onde predominam a homogeinização dos desejos e a mesmice especular, na ausência de reconhecimento da diferença e da alteridade.

Eliana Mendlowicz nos fala da dor da solidão na sociedade contemporânea, e critica a inércia da psicanálise diante dos novos sintomas que se apresentam na clínica, decorrentes das novas condições sociais. Ela vê essa inércia basicamente nas construções da metapsicologia psicanalítica, que precisaria refletir sobre os novos desafios clínicos com os quais estão lidando os psicanalistas. Lembra o paradoxo que indica ao mesmo tempo a submissão do homem à ditadura do sucesso financeiro, dentro desse sistema político globalizante, mas que permite, ao mesmo tempo , várias maneiras de viver a subjetividade. Essa ampliação das possibilidades nos expõe a um maior desamparo, a uma solidão mais difícil de suportar. A mudança radical dos códigos em que estávamos imersos, a reviravolta dos valores em que fomos "moldados" provocam colapsos psíquicos, e a autora descreve uma forma de patologia que ela chama de depressão-solidão. Na depressão-solidão, tratar-se-ia de impossibilidade de constituir um objeto corpóreo, consistente, substituto do Outro primordial, impossibilidade ligada à dificuldade de manter vínculos afetivos estáveis e contínuos, mergulhando assim o sujeito num estado de desamparo recorrente.

Na sua abordagem da questão do laço social no mundo contemporâneo, Gilda de Oliveira reforça também a visão do mundo globalizado, dominado por imagens, instantâneo e sem memória. A ordem da palavra é substituída pelo imediatismo da imagem. O que fazer então com o desejo, quando o imediato ocupa o seu lugar. Dois apontamentos de seu texto: o primeiro é o da super-valorização da eficácia, que "ordena imperativamente que tudo ande e funcione. A fim de satisfazer a esse comando, os sujeitos sacrificam suas escolhas para não se arriscarem a cometer o crime de pensar". O outro apontamento é sua notação do desafio para a psicanálise de preservar a descoberta freudiana como um artefato ético-político e como um dos raros espaços para falar de vida e de história.

Isabel Marin busca relacionar a violência social ao desamparo. Ela afirma que na sociedade contemporânea, onde predomina o ideal de autonomia, e na qual a meta é o individualismo, a simples proposição de sua própria vontade dirigida ao outro parece comportar um violência inominável; "respeitar o outro", mote atual, não conduzirá na verdade a um desamparo ainda maior? No desenvolvimento de seu argumento, ela propõe que a mãe, em sua função junto ao bebê, deve ser capaz de suportar ser vista como "violenta", como representante do ódio, o que parece contraditório com o imaginário contemporâneo, e eu diria mais particularmente com o brasileiro, marcado pelo ideal de cordialidade nas relações sociais. Prossegue a autora afirmando que é preciso dispor de tranqüilidade com o ódio, para lidar com o bebê enraivecido. Passando para o campo social, ela propõe que possamos assumir nossa própria violência, inevitavelmente presente em cada relação com o outro, sob pena de nos deixarmos levar, e ao outro também, a um estado de desamparo tal que deixaria a porta aberta, aí então, para a violência destruidora.

Mônica do Amaral desenvolve uma reflexão sobre o desafio colocado pela clínica dos casos-limite, pautados pelo sofrimento diante de uma existência sem promessa de continuidade, patologia que seria reveladora das condições atuais da subjetivação. Ela pergunta se "numa sociedade em que o avanço tecnológico entra, muitas vezes, em descompasso com a própria possibilidade de absorção/metabolização por parte das forças sociais...o esgarçamento do tecido social e o empobrecimento decorrente da experiência coletiva , não estariam deixando de oferecer as bases para o processo de individuação".

Ainda nesse conjunto de reflexões entrelaçando a clínica psicanalítica ao social, Carmem da Poian interroga-se sobre as formas do vazio na contemporaneidade. Ela afirma que a sociedade atual não se apresenta como suporte vital, ao poupar o sistema e culpar o indivíduo por não ter a competência necessária , fazendo-o sentir-se cada vez mais o único responsável por seus sofrimentos e fracassos. Diante dessa patologia do vazio, a posição do analista se transforma. Sua responsabilidade está em fazer o analisante entrar em contato com sua realidade psíquica entrando em contato com a realidade que o cerca. Para isso, é preciso que ele esteja inserido na cultura e no momento de sua história. Mais do que nunca, pensa ela, os limites da analisibilidade seriam os limites do próprio analista. Ela termina dizendo que cabe a nós inventarmos uma nova maneira de ser o que somos, maneira esta que tem dois únicos imperativos: comprometer-se e continuar.

Ainda uma palavra breve sobre três textos que, tratando da contemporaneidade, não se referem diretamente à clínica. Maria Rita Kehl , em " Fratrias Órfãs", descreve os modos de expressão, tanto gestuais como musicais, de um grupo de jovens músicos da periferia de São Paulo, trazendo a reflexão sobre a estruturação e a experiência da fratria como uma possível saída diante do vazio da função paterna.

Leandro de Lajonquière e Sandra Almeida, cada um com sua abordagem própria, tratam das relações entre psicanálise e educação, e das conexões (im)possíveis entre ambas.

Para Sandra Almeida, em seu texto propõe que possamos "utilizar o saber oriundo da teoria e da experiência psicanalíticas para construir algumas observações e hipóteses ..., visando produzir novos conhecimentos sobre o campo educativo, especialmente sobre as posições subjetivas do aluno e do professor frente ao objeto de conhecimento e sua mediação". Uma de suas hipóteses é a de que " educar e educar-se implica, sobretudo, estar em contato permanente com a alteridade e ter de se haver com a castração e a diferença. Assim, aquele que suporta o ato de educar não se confrontaria apenas com a criança viva (para a qual formula um projeto), mas sobretudo com a criança recalcada que o inspira na maioria de suas ações".

Leandro de Lajonquière , após percorrer as idéias freudianas sobre a educação e a pedagogia, propõe ver de outro ângulo o uso da psicanálise no social e no político, pelo menos no que concerne as crianças, no seu recorte com a educação. Ele encerra seu texto sugerindo que a "aplicação" da psicanálise à educação consistiria na "tarefa de corroer as ilusões pedagógicas no interior mesmo do campo educativo a fim de tentar uma educação para a realidade impossível do desejo, ou seja de buscar inocular nas crianças o germe do movimento visando tentar o impossível".

Para terminar aponto brevemente algumas questões que me ficaram:

- sendo o Inconsciente o objeto por excelência da psicanálise, como pensá-lo, ou repensá-lo, nessas novas condições que a contemporaneidade impõe à construção da subjetividade?

- como o trabalho psicanalítico poderia permitir uma resubjetivação do sujeito em sua relação com o coletivo?

E lembrar por último que, na condição de analistas, somos também sujeitos constituidos e submetidos aos mesmos avatares da sociedade contemporânea , o que nos indica a necessidade de interrogar continuamente nossa própria construção identitaria e nosso próprio sofrimento, no mesmo movimento em que oferecemos nossa escuta ao sofrimento do outro.

E-mail cindi@tba.com.br

Nota- Textos citados no comentário, por ordem de citação:

GEBEROVICH, F. - La filiation au temps de l'ecstasy. Psychanalyse, drogue et culture.
CHEBABI, W. - As instituições psicanalíticas e o contato com a mídia.
GARCIA, C. A.- Mutações do Superego.
MENDLOWICZ, E. - Psicanálise e contemporaneidade: A dor da solidão.
TARRÉ DE OLIVEIRA, G.F. - Foraclusão e laço social. Os avatares da função paterna no mundo contemporaneo.
MARIN, I. da S.K. - Sujeito - Desamparo e violência.
AMARAL, M. do - No entrelaçamento da crise da subjetividade contemporanea com a crise da psicanálise.
Da POIAN , C.- Inquietações contemporaneas. Formas do vazio.
KEHL, M.R. - Fratrias órfãs.
De LAJOPNQUIÉRE, L. - Freud et l'éducation des enfants: entre la psychanalyse et le politique.
ALMEIDA, S.F.C. de - Psicanálise e educação: algumas observações e hipóteses sobre uma (im)possível conexão.